sexta-feira, 27 de julho de 2007

Conivências

Dez anos não são dez dias. A mãe da noiva já se impacientava, aconselhava a filha a pressionar o noivo. Alegava que já se conheciam suficientemente bem, que precisavam casar-se. Falava de netos que dariam continuidade a ambas as famílias, tão escassas em elementos procriantes. Usava argumentos excêntricos, às vezes explicitamente ridículos, como lembrar ao futuro genro que ele “deveria mirar-se no exemplo dos seus próprios pais e contribuir para a preservação da espécie humana sobre a terra”. Por diversas ocasiões evocou a passagem bíblica em que o próprio Deus nos estimula a ocupar o Planeta de forma progressiva: “Crescei e multiplicai”.

Em contrapartida, a mãe do noivo fazia de tudo para desestimular o filho e mantê-lo afastado dos laços — traiçoeiros — do matrimônio. Alertava-o sobre as dificuldades que advêm de um casamento: as despesas sobrepondo-se aos orçamentos; expectativas frustradas; decepções nos relacionamentos interfamiliares, além de tantos outros problemas conjugais específicos de cada casal. Costumava adverti-lo: “Não existe liberdade na vida a dois; aproveite a vida enquanto há tempo; casamento é renúncia, é resignação...” — em renúncia e resignação ela imprimia um tom grave, lastimoso, conotando-lhes os significados de perda e fracasso.

A mãe da noiva era toda pressão; a do noivo, exagerada precaução. A mãe da noiva transpirava impaciência; a do noivo, excessiva prudência. O rapaz ficava entre a dieta e a gula..

Finalmente a pressão venceu a precaução, e a impaciência marcou mais pontos que a prudência. Casaram-se.

Edu (ardo) e Luci (lene) foram morar no “quarto e sala mais amplo da Tijuca”, conforme anunciava a propaganda do incorporador. O rapaz havia aderido ao plano de compra do apartamento na planta, há cerca de seis anos. Finalmente, com as chaves na mão, a sogra nem precisou fazer mais qualquer tipo de pressão, pois casar-se logo que tomasse posse do imóvel era um compromisso assumido no dia do noivado. Sim, porque Edu e Luci noivaram à antiga, com aliança na mão direita indicando o caráter das relações que viviam. Ninguém acreditava, mas a mãe da noiva afirmava que a filha se casara virgem, aos 26 anos de idade — ele era cinco anos mais velho que ela.

A lua-de-mel em Parati, o primeiro dia na nova residência, as primeiras experiências da vida a dois, tudo fazia a felicidade dos recém-casados.

Conheceram-se ainda bastante jovens, ela aos 16 anos, ele aos 21. Tiveram tempo suficiente para se descobrir um ao outro, identificando virtudes e defeitos. Dez anos. O bastante para consolidar ou transformar sentimentos; amadurecer idéias; estabelecer compromissos, projetos e metas; firmar explícitos acordos e tácitas conivências.

Edu ainda teve oportunidade de conhecer o pai de Luci, que morreu de enfarte durante uma discussão com a esposa, Adelaide. Fato que rendeu falatório. Houve quem culpasse Adelaide pela morte de Orlando, o seu marido. Alegavam que ela nunca evitava contrariá-lo, mesmo sabendo que ele era cardiopata. Insinuou-se, à boca pequena, que ela insultava o marido propositadamente, a fim de provocar-lhe o ingurgitamento cardíaco que o vitimou. Quando os mexericos chegaram ao conhecimento de Adelaide, ela fez lembrar aos fofoqueiros de plantão que o falecido era um tabagista inveterado, sedentário por natureza, glutão, obeso e dado a exagerar na cota de cerveja dos fins de semana. “Assim não tem coração que agüente” — defendia-se. No entanto não resistiu às constantes insinuações da vizinhança; acabou se mudando da Glória; foi morar em Vila Isabel — Edu desconhecia esses meandros.

* * *

Suzana, a mãe de Edu, morava no Flamengo. Também era viúva. O falecido marido fora um bem sucedido executivo de conceituada multinacional. Praticava pesca submarina. Morreu mergulhando. O equipamento de mergulho falhou. A perícia não chegou a uma conclusão precisa sobre a verdadeira causa do defeito do equipamento. Não teve elementos suficientes para determinar se o problema ocorreu durante o mergulho, num choque acidental, ou se o enguiço já estava estabelecido desde a superfície. Se confirmada esta segunda hipótese, restaria ainda averiguar a origem do problema: se fora sabotagem ou produzido por acidente; ou mesmo se teria sido em conseqüência de um defeito de fabricação — Suzana torcia para que se concluísse por esta última suposição, pois neste caso teria elementos para instaurar processo legal contra a empresa fabricante do equipamento de mergulho, pleiteando uma considerável indenização pela morte do marido.

* * *

Edu e Luci já estavam casados há oito meses, no entanto o casamento ainda não havia produzido expressivas mudanças em suas vidas: ela continuava tão apegada à sua mãe o quanto ele permanecia atencioso aos conselhos da sua. Ao casal, faltava suficiente confiança para orientar-se por suas próprias regras. Quando precisavam tomar decisões que implicassem um considerável grau de importância, submetiam-nas a prévias avaliações das matronais sogras — às vezes de uma, outras vezes da outra e, em muitos casos, de ambas.

“Se soubesse que a vida de casado era tão boa, teria me casado no dia em conheci Luci” — exagerava Edu, para que os amigos o identificassem como um homem extremamente feliz. Também para provocar inveja nos solteiros que viviam dizendo que ele agora estava “amarrado”. Talvez até para dissimular algumas de suas frustrações mais incômodas, ambições mal resolvidas, projetos aparentemente irrealizáveis.

O primeiro dos dois filhos que pretendiam ter estava planejado para vir ao mundo a partir do segundo aniversário do casamento. Discutiam planos, somavam esforços, entendiam-se bem. Viviam uma felicidade convencional; mas, uma felicidade. Não obstante os dez anos de noivado, pouco sabiam a respeito do passado familiar um do outro. Conheciam apenas o que parecia inocultável.

Certa ocasião, encontrando-se sozinho na casa da sogra, à espera de Luci, que havia saído em companhia da mãe, Edu atendeu ao telefone. Do outro lado da linha, uma voz estranha, diria até cavernosa, falou com afetado tom autoritário:

Cadê a velha?! Chama a coroa pra mim, quero falar com ela.

— Que velha?! Que coroa?! De quem o senhor está falando?! — Edu acreditou que se tratasse de engano.

Ué! isso aí virou asilo de velho, foi?! Por acaso agora tem mais de uma bruaca morando aí, é?!

— Desculpe, mas não sei do que o senhor está falando.

Escuta, eu quero falar com Adelaide, chama ela pra mim, faz favor, vai.

— Dona Adelaide não está em casa, no momento. O assunto é só com ela? Posso ajudar em alguma coisa?

Pode, pode sim (tosse). Diga pra ela que Argemiro ligou, tá? Só isso, Argemiro ligou, tá? — desligou.

Nunca ouvira a sogra mencionar alguém com aquele nome. Argemiro. Também não conseguia imaginar que ela se relacionasse com um indivíduo tão grosseiro. Contudo a forma como ele se expressou indicava uma exagerada intimidade sua com Adelaide. Aliás, mais que isso, porque, baseado no que ouvira, podia até afirmar que aquele sujeito exercia mesmo uma certa autoridade sobre ela.

Outro dia foi a vez de Luci. Ela estava saindo de um shopping, aproximando-se do seu carro no estacionamento a céu aberto, quando viu a mãe de Edu conversando com um homem de meia-idade, branco-bronzeado, alto e forte. Caminhou em direção aos dois, pretendia falar com a sogra; porém, ao se aproximar deles, antes de ser notada, observou que o homem parecia estar nervoso, visto que este gesticulava agitado. Então, Luci preferiu não se revelar a Suzana, por entender que sua presença, naquele momento, poderia causar algum constrangimento à sua sogra. Amparou-se numa árvore, contudo não pôde deixar de ouvir um trecho da conversa que se desenvolvia entre eles; teve a certeza de que o homem falou claramente: “Eu levei muito pouco nessa história, corri todo o risco. De tudo, só me resta o arrependimento. Mas preciso que você me ajude”. E a resposta de Suzana: “Agora, não tenho esse dinheiro disponível. Não esperava que, depois de tanto tempo, você me procurasse. Amanhã lhe telefono. Por enquanto, fique com isto” — viu a sogra entregar um cheque àquele homem; não pôde ouvir mais nada, devido à passagem de uma motocicleta barulhenta; mas tudo indicava que apenas se despediram. Ele entrou no carro e partiu, ela pegou um táxi.

O incidente ao telefone instigou a imaginação de Edu, assim como o ocorrido no estacionamento do shopping impressionou Luci. Porém eles não comentaram tais fatos entre si, nem com qualquer outra pessoa. Preferiram mantê-los em segredo.

* * *

Luci estava fazendo um curso na UFF, em Niterói. Fazia a travessia da baía de Guanabara quase sempre de aerobarco. Numa de suas idas, caminhando pela área de acesso ao píer da estação, observou que um grupo de mergulhadores embarcava numa lancha atracada ao cais da Praça XV. Três homens e uma mulher transportavam o equipamento de mergulho para a embarcação. Surpresa, reconheceu entre os homens aquele que ela vira conversando com sua sogra no estacionamento do shopping. Ele auxiliava os demais nas tarefas de embarque. Quando todos já estavam acomodados a bordo, o personagem da misteriosa conversa com Suzana assumiu o comando da lancha e partiu.

Tudo aquilo estimulou ainda mais a imaginação de Luci, que, desde quando presenciou o encontro da sogra com aquele homem, andava beirando as raias da divagação. Sabia que o pai de Edu havia morrido num acidente subaquático, mas desconhecia as circunstâncias do fato. Lembrava-se vagamente de certos comentários que uma colega de classe fizera, dando conta de que haviam levantado suspeitas sobre a morte de Jonathan Novaes, o falecido marido de Suzana. Coisas envolvendo altas somas de indenizações das companhias de seguro. Porém tudo aquilo não passava de falatório, do tipo diz-que-diz-que. Foi no início do namoro com Edu. Nunca havia se interessado muito por aquelas especulações; mas agora, depois do que presenciou no estacionamento do shopping, parecia disposta a saber mais sobre a morte do sogro, que ela nem mesmo chegou a conhecer pessoalmente.

Edu, por sua vez, não havia transmitido o atrevido recado do tal Argemiro à sua sogra; mas, sempre que ficava a sós com ela, tinha vontade de lhe perguntar sobre a identidade do arrogante sujeito. No entanto, continha-se, esforçava-se para não se tornar indiscreto. Sabia que, se lhe contasse como aquele sujeito se expressou ao telefone, procurando por ela, Adelaide não se sentiria à vontade para explicar como alguém pôde ter sido tão insolente. Por isso resolveu pôr um termo naquela questão. Tinha mais em que pensar, como, por exemplo, nas obras que pretendia fazer no apartamento.

Consultou Luci sobre os planos de reforma da cozinha. Ela não só os aprovou como se lembrou de um bom pedreiro, um que sempre trabalhou para sua família, “seu Argemiro” — falou, mas não notou a reação de Edu ao ouvir aquele nome: ele, de sobressalto, olhou para a esposa; entretanto logo se recompôs, dissimulando a surpresa. Luci o orientou: “Fale com Bené, o zelador do prédio onde a gente morava, lá na Glória. Deixe o telefone e peça pra ele entregar ao seu Argemiro, o pedreiro lá do morro Dona Marta. Bené conhece bem ele; está sempre passando por lá”.

Edu pensou em fazer algumas perguntas sobre o Argemiro, mas preferiu deixar para outra ocasião. Luci fez uma revelação que instigou ainda mais a curiosidade do marido: “Seu Argemiro socorreu meu pai no dia em que ele enfartou. De vez em quando ele estava lá em casa fazendo uns servicinhos. Tem certeza de que não o conheceu, amor?”. Edu não se lembrava dele, mesmo assim respondeu: “Acho que sei quem é”.

Naquele mesmo dia, à tarde, Edu foi ao prédio onde Luci havia morado. Conversou com Bené. Este confirmou que Argemiro fora um bom pedreiro, um profissional competente; porém agora não passava de um alcoólatra. Pela ficha do zelador, Argemiro transformou-se num indivíduo irresponsável. Já fazia um bom tempo que ele não circulava por aquela área, esquivando-se das pessoas a quem causara prejuízos. O dinheiro que lhe adiantaram por conta de mão-de-obra, ou para a compra de material, serviu apenas para atender ao seu etílico vício, que, pelas cores pintadas por Bené, certamente já teria extrapolado e aderido à cocainomania. O zelador concluiu com uma advertência: “É um perigo, doutor! Argemiro tá um perigo! Quando o camarada chega nesse ponto, acabou-se o homem, o profissional, o pai de família”. No entanto, mesmo sob esse temível alerta, Edu deixou seu cartão, dizendo que talvez pudesse ajudar o pobre homem, que não deveríamos dar as costas aos mais necessitados, principalmente a quem, de certa forma, devemos algum favor. Falou que agora se tratava de uma questão humanitária. Bené concordou plenamente e ainda se lembrou de um detalhe: “Ah! doutor, da última vez que ele teve aqui, me pediu o telefone da dona Adelaide. Tava procurando serviço. Eu dei. É que eu ainda não sabia dessas coisas... Aí, achei, sabe?, que não tinha probrema...” Edu tranqüilizou-o dizendo que estava tudo bem.

* * *

Numa boa oportunidade, Luci expôs ao marido a sua intenção de aprender a mergulhar. Logo explicou que não se tratava de um desejo impulsivo, nem de simples busca de aventuras radicais ou de mera atividade de lazer. Pretextou a necessidade de estudar o comportamento de determinadas espécies marinhas em seus próprios hábitats e, com isso, melhorar suas chances de conseguir apoio empresarial para o desenvolvimento de um dos seus projetos de pesquisa.

Entre eles, qualquer despesa extraordinária deveria ser analisada criteriosamente. Nesse caso, a questão financeira não seria empecilho: tinham folga de caixa. Porém Edu se punha contrário à idéia da esposa devido ao que ocorrera com seu próprio pai. Luci contra-argumentava alegando que o perigo está por toda parte, mesmo dentro de casa, onde o pai havia morrido, ainda relativamente jovem, sem praticar qualquer esporte ou atividade perigosa; levando consigo o seu mais íntimo fator de risco: sua obesidade, 145 perigosos quilos.

Finalmente concordaram. Luci faria seu curso de mergulho. Ela só não esperava que o marido lhe indicasse um instrutor formalmente capacitado. Fora amigo e instrutor do seu pai. Celso, o seu nome. Era sargento reformado da Marinha de Guerra. Tinha uma lancha. Podia ser encontrado na marina da Glória. Edu ainda salientou: “Lá, todo mundo conhece ele como ‘Celso da Susi’. Susi é o nome de sua lancha”.

(“Susi”. Luci acreditava que teria sido este o nome que ela viu gravado na popa da lancha pilotada pelo homem que teve aquele misterioso diálogo com Suzana.)

Combinaram que não falariam sobre aquilo com as suas mães (ou sogras), pois estas certamente não os apoiariam.

Talvez ensaiando suas verdadeiras emancipações, a fim de livrarem-se daquela incômoda tutela maternal, também resolveram não contar a elas sobre as obras do apartamento. Quando concluídas, fariam surpresa.

Preparavam-se para jantar, o telefone tocou, Luci atendeu:

— Alô! (...) Ah! sim, seu Argemiro...

Ao ouvir aquele nome, Edu ficou atento; Luci continuou:

— É meu marido sim, seu Argemiro, ele precisa falar com o senhor. (...) É isso mesmo, nós pretendemos fazer algumas obras aqui no apartamento. (...) Como? (...) Não, não é uma reforma geral. São pequenas obras, adaptações... Eu vou passar pra ele, está bem? O Edu vai lhe explicar melhor.

Edu pegou o aparelho.

— Alô, seu Argemiro, boa noite.

É o doutor Eduardo?

Edu reconheceu aquela voz, era a mesma do telefonema na casa da sogra. Apenas mudara a entonação, já não parecia tão sinistro.

— Sim, e certamente o senhor recebeu meu cartão.

Recebi, sim, senhor. Foi o Bené que me deu. Ele disse que o senhor tinha uns serviços pra fazer

— É verdade. Se o senhor quiser, podemos acertar uns serviços, calcular o material, os dias e as condições gerais da obra. Não é muita coisa, mas é uma boa empreitada.

Quero sim, senhor, quero, quero sim...

— O senhor pode passar no meu escritório amanhã de manhã?

Posso, posso sim!

— Então eu lhe darei todas as informações sobre os trabalhos que pretendo fazer. Aí, se o senhor topar, virá ver de perto e me dizer o que precisa pra executar a obra. Está bem assim?

Tá, tá bem. Amanhã eu passo no escritório do senhor. O endereço é esse aqui do cartão? Rua México...

— É esse mesmo. Pode chegar depois das dez. Está bem pro senhor?

Sim, tá, tá bem. Amanhã eu tô lá, depois das dez.

— Eu aguardo. Até lá, boa noite — desligou.

* * *

Dia seguinte, onze da manhã. Luci estava no portão de acesso ao ancoradouro da marina da Glória. Falava com um guarda:

— Por favor, eu preciso falar com o senhor Celso, instrutor de mergulho.

— Celso?

— Sim, sargento Celso, ou é professor Celso... acho...

— Celso que ensina mergulhar?

— Sim, ele mesmo!

— Ah! a senhora deve tá procurando Celso da Susi, né?

Luci animou-se.

— Isso mesmo! Celso da Susi, é ele mesmo. O senhor sabe onde eu posso encontrá-lo?

— Olha, moça, ele saiu de manhã com uma turma. Deixou até um recado. Disse que se algum aluno procurasse por ele, era pra dizer que ele só volta depois das duas da tarde. Mesmo assim é pra se encontrar com ele lá na Praça XV. No ponto de sempre.

Luci agradeceu pela informação e retirou-se. Caminhou pelo Aterro, precisava fazer hora. Acreditava que o “ponto de sempre” na Praça XV deveria ser o mesmo do embarque que ela presenciou.

* * *

Edu tinha à sua frente o pedreiro Argemiro: negro, magro, estatura mediana, banguela e já bem maduro. Talvez até por influência do que Bené lhe falou, mas o fato é que o achou bastante debilitado. Aparência característica de um alcoólatra crônico: pescoço afinado, rosto cadavérico, voz ligeiramente balbuciante, olhar sonolento. “Tremendo pinguço” — pensou Edu.

— Então, seu Argemiro, aceita a obra nas condições que estou propondo?

— Aceito sim, senhor. Quando é que começo?

— Pode ser amanhã?

— Claro! deixa comigo.

Edu pegou uma pequena quantia, entregou-a a Argemiro e disse:

— Isso não é um adiantamento. É por conta da consulta — brincou.

— Obrigado, doutor.

— Bem, o senhor já tem o meu endereço e, conforme combinamos, vai poder trabalhar até um pouco mais tarde, para adiantar a obra, certo?

— Sim, senhor.

— E eu me comprometo ainda a trazê-lo de carro toda noite. Está bem assim?

— Pra mim tá tudo certo. Amanhã cedinho eu tô lá.

— Aguardo.

Argemiro retirou-se.

O pedreiro morava na subida do morro Dona Marta. Evidentemente, a intenção de Edu era aproveitar a oportunidade, enquanto o transportasse de volta para casa, e sondá-lo, na tentativa de desvendar algum possível segredo que estivesse guardando, a respeito da morte do seu sogro. Ou simplesmente saber que tipo de relacionamento aquele camarada mantinha com a sua sogra. Pelo visto, não seria difícil fazê-lo falar.

* * *

Luci e Celso já haviam se encontrado e acertado horário e dias apropriados para as aulas de mergulho. Ela omitiu o nome do marido e lhe disse que um amigo dela o indicara como um dos melhores instrutores de mergulho do Rio de Janeiro.

Mesmo aos 56 anos, Celso aparentava uma certa jovialidade. A natação preservou-o da flacidez muscular própria do envelhecimento e o trabalho ao sol imprimiu-lhe um bronzeado de surfista. Sua atividade profissional produziu-lhe o aspecto de um cinqüentão conservado, um biótipo esportivo.

Sorriam, demonstravam mútua simpatia.

— Até quarta, seu Celso.

— Por favor, sem o “seu”.

— Ah! desculpe. Sargento.

— Também não, nada disso! Celso, apenas Celso. Gostaria que me tratasse assim, está bem?

— Então, até quarta, Celso.

— Até lá.

* * *

As obras do apartamento tiveram início. Edu chegou em casa após as 20h00. Argemiro já havia concluído a sua etapa de trabalho daquele dia, portanto deveria levá-lo de volta para casa, conforme haviam combinado.

No carro, Edu falou um pouco sobre a obra, mas logo mudou de assunto:

— O senhor conhece dona Adelaide há muito tempo, seu Argemiro?

— Sim, já faz um tempão!

— Conheceu o marido dela, o doutor Orlando?

— Doutor Orlando?! Sim, conheci, conheci sim... o doutor Orlando... conheci...

Edu percebeu que Argemiro não se sentiu à vontade ao falar do seu falecido sogro. Logo imaginou que o pedreiro desconversaria. Acertou.

— Olha, doutor, a gente vai precisar de uma furadeira. A minha tá quebrada, é muito velha, acho que não tem conserto...

— Não tem problema, amanhã eu providencio isso — Edu resolveu apelar: — Toma uma cervejinha, seu Argemiro?

— Sim... tomo... quer dizer... quando não tô trabalhando, claro! Aí, de vez em quando, eu tomo uma pra variar, né?

— Nesse caso, como já encerramos nossos expedientes, podemos tomar umazinha agora, certo?

Argemiro sorriu bestamente.

— Eh! eh! eh! Já, já encerramos sim. Eh! eh! eh!

Ainda estavam na Tijuca, Edu entrou na primeira rua à direita e parou em frente a um boteco pouco movimentado. Desceram do carro e sentaram-se a uma das mesas. Eduardo mandou servi-los. Argemiro era todo sorriso.

Já estavam ali há mais de duas horas. Além das cervejas e salgadinhos, também foram consumidas algumas doses de conhaque, que, segundo o pedreiro, serviam para rebater a poeira do dia. Edu apenas bebericava cerveja e beliscava os tira-gostos. Argemiro exteriorizava ares de embriaguez e, àquela altura dos acontecimentos, já havia dado com a língua nos dentes. Além disso, quanto mais bebia, mais se expunha. Até que resolveu revelar um dos seus maiores segredos.

Antes de falar, ele fez Edu jurar, “por todos os santos”, que jamais transmitiria aquilo a quem quer que seja. “Juro” — falou Edu com a voz impostada, a fim de caracterizar um estado de cumplicidade ebriosa.

Argemiro lhe contou a respeito de determinado fato relacionado com a morte do doutor Orlando, coisa que até aquele momento somente ele e Adelaide conheciam e mantinham em segredo, numa atitude conivente.

Por um instante, Edu ficou pasmo. Queria acreditar que tudo aquilo não passava de uma história fantasiosa, conseqüência do inebriamento provocado pelo conhaque misturado à cerveja, uma espécie de êxtase alcoólico. Contudo o sujeito referiu-se a determinadas particularidades que, certamente, confirmavam algumas de suas mais insistentes suspeitas sobre o caso. Pediu a conta, pagou, e saíram.


Edu deixou Argemiro nas proximidades da subida do morro Dona Marta. Entregou uma boa quantia ao pedreiro, por conta de adiantamento, e mais uma determinada soma para aquisição de uma furadeira.

Na verdade, lembrando-se do que Bené lhe falou, Edu pretendia criar condições para que Argemiro lhe passasse a perna e não mais retornasse à obra. Estava tão horrorizado com o que aquele sujeito lhe havia revelado que já não queria mais vê-lo por perto. Enquanto retornava para casa, em sua mente ecoava insistente a advertência de Bené: “É um perigo, doutor! Argemiro tá um perigo! Quando o camarada chega nesse ponto...”

* * *

A lancha Susi atracou no cais da Praça XV. Luci estava retornando de sua primeira aula prática de mergulho. Os outros dois alunos se despediram e se foram; ela ficou, a pretexto de conversar um pouco mais com Celso, sobre segurança e primeiros socorros aos mergulhadores, em caso de acidente.

Foram para um restaurante na Cinelândia, um lugar que Celso costumava freqüentar após as aulas. Pouco falaram sobre mergulho. Luci estava mais interessada em investigar a vida pessoal do seu instrutor, queria saber onde esta se cruzava com a de sua sogra.

Apesar da grande diferença de idade, parecia existir bastante afinidade entre eles.

— Por que deu o nome de “Susi” à sua lancha?

— Era o apelido de uma ex-namorada minha.

— Apelido?

— Sim, apelido carinhoso... coisas de namoro. Você sabe.

— Claro! Eu mesma, de Lucilene, virei Luci. Isso quer dizer que, se meu namorado tivesse uma lancha...

— Tenho certeza de que seria “Luci”. Entre namorados, isso é quase regra.

— Mas esse é o tipo de homenagem feita geralmente por quem está apaixonado à vera.

— Sim.

— Isso quer dizer que você estava muito apaixonado?

— Acho que não existe ninguém “pouco” ou “mais ou menos” apaixonado. Paixão é sempre uma explosão de sentimentos.

— Nossa! Pelo visto, essa Susi arrebentou seu coração!

— Eu gostava muito dela. Era paixão de verdade, roxa!

— Vocês se casaram? Ah, me perdoe, se eu estiver sendo indiscreta!

— Não está. Falar sobre isso não me incomoda — fizeram um breve silêncio. Com um olhar vago, ele parecia querer se situar no passado, como se pretendesse plasmar um momento perdido. — Bem, eu mesmo nunca me casei de papel passado, o preto no branco, mas ela sim.

— Mas, se ela casou-se com outro, então, você não tinha motivo para manter a homenagem. Ou tinha?

— Acontece que, quando eu a homenageei, ela já era casada.

— O quê?! Acho que não entendi.

— Foi na nossa fase de amantes.

— Tornaram-se amantes?! Incrível! Bom, agora você vai ter que me contar mais. Quem mandou atiçar?!

Sorriam.

— O fato é que, mesmo depois de ter sido abandonado por ela, eu permaneci apaixonado. Você sabe: o amor é cego, quem ama não percebe os defeitos da pessoa amada. Aliás, uma pessoa apaixonada fica tão abobalhada que os defeitos morais da pessoa por quem se apaixonou passam a ser vistos como virtudes.

— Chega-se a tanto?

— Se você ainda não chegou, é porque nunca se apaixonou pra valer.

— Mas... quais eram os desvios morais da Susi, e como você os encarava?

— Pra você ter uma idéia, o seu egoísmo, por exemplo, eu o via como a expressão de sua auto-estima. Ou seja: ao meu ver, ela não era egoísta; apenas valorizava a si mesma. E, se uma pessoa dessas me tinha como namorado, isso queria dizer que eu estava sendo valorizado.

— Nossa! Isso é paixão ou cegueira sentimental?

— Qual a diferença?

— Bem, depois do que você falou, acho que, quando falamos de “cegueira sentimental”, nos referimos a uma manifestação emotiva mais parcimoniosa. Uma coisa mais zen.

Riram e brindaram-se com as tulipas de chope.

Depois de beber, Celso fechou-se num aspecto grave. Novamente parecia olhar para dentro de si mesmo, revolvendo o arquivo morto de sua alma.

— Tínhamos planos. Tudo parecia correr muito bem entre nós — Celso falava com a melancolia dos ofendidos. — Até que um dia ela conheceu um alto executivo de uma empresa multinacional, na verdade um testa-de-ferro. E foi aí que manifestou sua mais cruel deformidade moral: a ambição desenfreada, a ganância.

— Ganância?! Bom, pelo que você falou, antes da traição, o que nela se expressava como “ganância desenfreada” seria, pra você, uma manifestação de garra, de perseverança...

— Isso mesmo. Você pegou o espírito da coisa.

— Chegou a odiá-la?

— Já vi que você nunca se apaixonou de verdade.

— Se é pra agir como você, prefiro ficar no campo da simpatia, da amizade sexualmente correta.

Celso consultou o relógio.

— Acho que está um pouco tarde, preciso recolher a lancha.

— Antes precisa mesmo é concluir essa história. Não vou sair daqui curiosa, esperando o próximo capítulo. Quer dizer que, depois que ela se casou, vocês se tornaram amantes? Como conseguiram manter um relacionamento desses? O marido dela nunca soube do caso de vocês?

— Não. Por indicação dela própria, ele se tornou meu aluno, passou a praticar pesca submarina. Pela forma como a gente se comportava, dificilmente Jonathan Novaes desconfiaria que o “Susi” da lancha referia-se a sua esposa, Suzana.

Luci atrapalhou-se ao tentar pegar sua tulipa de chope: nervosa, derrubou-a espalhando a bebida sobre a mesa. O garçom os acudiu. Celso brincou:

— É pro santo.

Ela forçou um sorriso, desculpou-se pelo desleixo. O garçom secou a mesa, trocou a toalha e copos.

— Traga a saideira — pediu Celso.

Luci ainda estava se recuperando do susto que tomou ao ouvir o nome do seu falecido sogro e o de Suzana envolvidos na história de Celso.

— Bem... onde mesmo que a gente estava? — perguntou ela, querendo retomar a conversa, ou dissimulando o seu embaraço.

— Eu estava falando que Jonathan Novaes nunca desconfiou que aquele nome gravado na popa da lancha estivesse relacionado com o de sua esposa, Suzana.

— Ah! sim, foi isso. Mas ele nunca lhe perguntou, mesmo por simples curiosidade, por que você havia denominado a embarcação com aquele nome?

— Olha, tem uma coisa que até hoje mexe comigo. Não gosto de falar sobre isso, mas...

— Se não quiser, não precisa se expor. Compreendo que existem coisas muito pessoais, muito nossas...

No fundo, Luci temia pelo que Celso viesse a lhe contar. Já se sentia por demais envolvida naquela história. Não queria comprometer-se ainda mais. Talvez alguns aprofundados detalhes daquela intriga transformassem-na, de casual confidente, em ocasional conivente.

— Prefiro falar. Digo mais: preciso falar. É a primeira vez que encontro alguém que me inspira confiança suficiente para falar sobre isso.

— Se é assim, se isso vai fazer você se sentir melhor, então estou pronta pra escutá-lo.

— Jonathan morreu num acidente de mergulho. Estávamos juntos, os três: eu, ele e Suzana. Antes do seu último mergulho, não sei por que cargas-d’água, ele, brincando, sugeriu: “Celso, muda o nome dessa lancha pra ‘Suzana’. Acho que ela vai gostar”. Foram suas últimas palavras. Sorriu e mergulhou para a morte.

Luci teve a impressão de ter sido envolvida por uma corrente de ar frio. Cruzou os braços, abraçando-se a si própria; esfregou-se, a fim de conter o arrepio emocional provocado pela revelação de Celso.

— Nossa! como está frio! — disse ela — Talvez até chova ainda hoje. Já está bem tarde, preciso ir.

— Tem razão, está anoitecendo. Vou recolher a Susi.

Despediram-se.

* * *


Argemiro não abandonou a obra, continuava trabalhando na pequena reforma do apartamento. Quando Luci chegou em casa, deu-lhe dinheiro para o metrô — Edu, alegando sobrecarga no trabalho, esquivava-se de transportá-lo conforme haviam combinado, porém lhe dava o dinheiro da condução.

Nos últimos dias Edu só chegava em casa um pouco mais tarde, a fim de evitar encontrar-se com Argemiro. No entanto decidiu que, no próximo sábado, ficaria em casa, acompanhando a obra, que já durava mais que o previsto, pois o pedreiro remancheava e estava sempre pedindo adiantamentos. Já recebera acima da quantia contratada, mas fingia desconhecer a soma das antecipações feitas por Edu.

Luci havia combinado com Celso que ele lhe daria uma aula extra de mergulho naquele sábado. Saiu de casa antes da chegada de Argemiro e deixou Edu ainda na cama. Este só se levantou quando o pedreiro chegou.


* * *

Manhã de domingo, Adelaide pegou o jornal que a empregada deixara na mesinha da sala de estar. Folheou-o, desinteressadamente, até que a ilustração de uma matéria lhe chamou a atenção: a foto de um prédio de apartamentos, na qual havia uma outra foto sobreposta, um detalhe, o busto de um homem negro, em três por quatro. Leu a manchete: PEDREIRO TEVE MORTE INSTANTÂNEA AO CAIR DO 9º ANDAR. Rápido, ela voltou a observar a ilustração. Reconheceu o prédio e o homem negro do detalhe: o edifício onde sua filha morava e Argemiro. Sentiu um tremor nas mãos e a vista ligeiramente embaçada. Tirou e recolocou os óculos, parecia não acreditar no que estava vendo. Iniciou a leitura da matéria: Ontem pela manhã... — saltou o primeiro parágrafo, reiniciou no segundo: — Argemiro Lourenço desequilibrou-se e caiu, enquanto tentava fazer um reparo na parte externa de uma janela, no 9º andar de um prédio na Tijuca. O advogado Eduardo Novaes, proprietário do apartamento onde o pedreiro trabalhava há mais de uma semana, disse que ainda tentou dissuadi-lo do risco ao qual se expunha...

Adelaide não conseguiu ler o restante da matéria, estava demasiadamente perturbada. Apenas olhava para a foto principal, na qual havia uma seta indicando a janela do apartamento, sinalizando o local de onde o pedreiro despencou; acima, à esquerda, a foto-detalhe, provavelmente obtida de um dos documentos de Argemiro.

Naquela mesma página do caderno Cidade, outra foto chamava para uma matéria sobre fato igualmente funesto, também ocorrido naquele sábado de bruxas soltas. Porém Adelaide não atentou para esta.

* * *

Suzana estava pasmada, olhava para aquela outra foto, a que Adelaide não havia notado: uma equipe do Corpo de Bombeiros retirando o corpo de um homem de bordo de uma lancha atracada ao cais da Praça XV. A manchete chamava para: BOMBEIROS RESGATAM CORPO DE INSTRUTOR DE MERGULHO. E a reportagem noticiava: O instrutor de mergulho Celso de Paula, 56 anos, morreu afogado, vítima de um provável acidente, quando treinava uma aluna, ontem pela manhã, nas proximidades da Ilha de Paquetá...

Também Suzana não leu mais que algumas linhas.

* * *

Todos temos nossos momentos de recolhimento em profunda introspecção. É quando olhamos para o passado e fazemos um balanço de nossas vidas. Nessas ocasiões, os erros e acertos nem sempre são identificados separadamente, quase não os consideramos pelas vias do antagonismo que os caracterizaria se fossem analisados com isenção dos nossos próprios interesses. Às vezes perdemos o senso de distinção entre o certo e o errado. O bem e o mal se tornam tão-somente um ponto de vista. Aquilo que nos convém se sobrepõe à realidade que possa nos incomodar. Em muitos casos invertemos a ordem das causas e efeitos que determinam os fatos, fazendo parecer o princípio o que na verdade seria o fim. Não raro, os culpados se nos apresentam como vítimas, e estas recebem de nós a sentença condenatória que as necessidades da alma determinam, com o propósito de acalentar nossas consciências.

Adelaide sentia a necessidade de um momento de reflexão. Dispensou a empregada, concedendo-lhe folga. Precisava estar realmente só, para garimpar reminiscências e reencontrar a paz que há muito não experimentava. Lembrou-se de sua infância nas Laranjeiras, bairro onde nasceu e criou-se. O colégio administrado pelas freiras carmelitas, onde cursou o Normal, chegava à sua memória sem lhe despertar maiores interesses. Assim como sua própria filha, ela também fora a única cria de um típico casal conservador. Não sabia por que as imagens do pai se sobrepunham às da mãe, uma recatada esposa que se deixava submeter aos caprichos do marido (talvez, por isso mesmo). A adolescência controlada pelos pais inspirou a forma de educação aplicada à sua filha Lucilene. O seu casamento fora arranjado pelas famílias de ambas as partes. Orlando, apesar de ser formado em Direito, nunca exerceu a advocacia. Na época do casamento, trabalhava com o pai, um lojista do ramo de calçados. Herdou o estabelecimento que administrou até se aposentar. Ao contrário da mãe, Adelaide exercia uma certa autoridade sobre o marido, ao que muitos chamavam de dominação conjugal. Naquele dia, fez desfilar na complexidade de sua memória praticamente toda a sua vida, mas se deteve com especial interesse nas lembranças do fatídico dia do passamento de Orlando.

Argemiro sempre fora uma espécie de faz-tudo, e Adelaide requisitava seus préstimos com freqüência. Desde pequenos reparos na rede de esgoto, restauração de móveis e até consertos de avarias nas instalações elétricas do apartamento, tudo era motivo para convocá-lo. Orlando não tinha habilidades para coisas desse gênero. Aliás, era inabilidoso em tudo que se referia às questões domésticas e mesmo conjugais. No dia de sua morte, logo pela manhã, Adelaide exigira que ele fosse ao Centro em busca de um material especial para a instalação de um aparelho de ar condicionado. Voltou mais cedo do que a mulher esperava, por isso flagrou-a na cama com Argemiro. Transtornado, atracou-se num corpo-a-corpo com o rival. A obesidade de Orlando tornava-o impotente em relação àquele vigoroso mulato, ainda dotado de força suficiente para dominar opositores até mais resistentes que ele. Adelaide tentou separar os contendores. Tarde demais, Orlando fora acometido de fulminante infarto cardíaco. Quando Luci chegou do colégio, soube pela vizinhança que sua mãe e o pedreiro Argemiro, com a ajuda do porteiro Bené, haviam saído às pressas com o seu pai, a fim de socorrê-lo de mais um “princípio de infarto”.

Adelaide pegou o jornal, olhou para a foto de Argemiro, lembrou-se das pressões que o infeliz lhe fizera durante tantos anos e falou murmurante: “Aqui se faz, aqui se paga”. Subitamente, sentiu um arrepio percorrer-lhe o braço esquerdo e teve a nítida impressão de ouvir uma voz familiar ecoando pela sala: “Tenha absoluta certeza disso, mulher...”. Num sobressalto, praticamente gritou: “Orlando?!!!”

* * *

Suzana, como Adelaide, navegava pela cadeia de recordações do seu enigmático passado. Não suportando a frieza daquele apartamento (ou daquele domingo), pensou em visitar o filho. Desistiu. Resolveu sair, caminhar pelo Aterro.

As pessoas circulando pelos jardins projetados por Burle Max tornavam-se, para ela, apenas traços da paisagem. Caminhava lentamente, o olhar perdido parecia buscar elementos que respondessem às suas insistentes auto-indagações. Precisava livrar-se daquele angustiante delírio. Avistou a Marina da Glória, percorreu o olhar por entre as embarcações fundeadas até que distinguiu a “Susi” ancorada num espaço isolado, balançando ao impulso das marolas. Transportou-se para o dia em que seu marido mergulhou para a morte. O coração acelerou, prendeu a respiração por um instante e sentiu os olhos marejando.


Nas divagações induzidas pelas aflições da alma, somos capazes de recordar, em segundos, acontecimentos que exigiram longos períodos para se desenrolar.


Alguns meses antes do sinistro, Jonathan Novaes havia lhe apresentado os resultados de exames médicos que revelavam ser ele portador de um câncer de pâncreas já em estágio muito avançado. Renomados endocrinologistas foram consultados. Viajaram ao exterior, onde ele se submeteu a uma cirurgia. Em vão. Apesar dos esforços, apegando-se à esperança de cura, Jonathan sentia que se aproximava o estágio terminal da doença. Temia padecer os martírios de um canceroso agonizante. Preferia uma passagem rápida. A mulher ainda tentou convencê-lo a lutar pela própria vida, exemplificou casos em que se processaram verdadeiros milagres de cura. No entanto cedeu aos apelos do marido e resolveu ajudá-lo a pôr termo à própria vida, antes que viesse a cair prostrado no leito da morte. Fora ele mesmo o autor do funesto plano que abreviaria o fim de sua existência. A participação de Suzana limitou-se ao apoio eutanásico. Quanto a Celso, o próprio Jonathan incentivava o relacionamento amoroso da esposa com o seu instrutor de mergulho, queria deixá-la, de certa forma, protegida; porém o amante desconhecia tal acordo conjugal. Também nada sabia a respeito do funesto pacto do casal.

Às vésperas do passeio de lancha, Jonathan havia preparado o seu equipamento de mergulho, esvaziara o cilindro de oxigênio, deixando apenas o suficiente para uns poucos minutos de mergulho. Sabia que Celso confiava na sua própria inspeção do equipamento, portanto nem chegaria a ver o manômetro indicando a baixa pressão do oxigênio. Apesar da advertência de Celso, Jonathan escolheu uma área de águas profundas. Suzana permaneceu na cabine de comando, de costas para a popa da embarcação. Ainda ouviu o marido dizer: “Celso, muda o nome dessa lancha pra ‘Suzana’. Acho que ela vai gostar”. Chorou em silêncio.

Haviam combinado meia hora de mergulho inicial, porém já se passara pouco mais de uma hora desde que Jonathan se lançara ao mar e até então não se verificava a sua emersão. Duas horas depois, Celso, aflito, resolveu pedir socorro pelo rádio. Enquanto uma equipe de resgate do Corpo de Bombeiros se dirigia ao local, Suzana resolveu contar ao amante os propósitos de suicídio do marido. Pediu-lhe para, nos interrogatórios policiais, confirmar que tudo havia transcorrido conforme as normas técnicas específicas para atividades subaquáticas. Falou do reforço securitário que Jonathan havia feito dias antes, tendo renovado todas as apólices de seus seguros pessoais, elevando os valores das indenizações. Ela não podia imaginar que se tornaria vítima de chantagem por parte do homem que sempre lhe pareceu um eterno apaixonado. Entretanto, diante de dificuldades financeiras, Celso não hesitou em lhe cobrar os favores concedidos e lhe arrancou praticamente a metade das indenizações dos seguros. Mesmo assim, ela não guardava rancores do ex-amante.

Absorta, contemplando o nada, Suzana não percebia qualquer ruído à sua volta. De súbito, despertou para um grito estridente às suas costas: “Jonathan!”. Voltou-se bruscamente, mas logo percebeu que se tratava de uma mãe às voltas com as peraltices de seu filho... Suspirou aliviada.

* * *

Edu e Luci estavam na sala. Ela, no sofá, se ocupava em reorganizar um álbum de fotografias. Ele, numa poltrona em frente, lia em silêncio o jornal que noticiara os acontecimentos do sábado macabro. Edu fechou o matutino e, num impulso, perguntou:

— Você sabia que o sargento Celso foi namorado de minha mãe?
Sem abandonar sua tarefa, Luci respondeu:
— Sim...
— E por que não comentou isso comigo?
— Achei que poderia estar sendo indiscreta...
— Indiscreta?!
— Sim, indiscreta. São coisas muito pessoais. Achei que você podia não gostar
de saber que eu conhecia esse detalhe de sua vida familiar...
— Pensei que entre nós...

Entreolharam-se.

— Não havia segredos?!
— De você, não guardo nenhum...
— Nenhum?!

Edu piscou insistente.

— Nada!
— Mas sabia que seu Argemiro foi amante de minha mãe. Não sabia?

A inquietação de Edu tornou-se mais evidente. Olhou para os lados, pigarreou leve.

— Você tinha conhecimento do caso?
— Os vizinhos sempre falam muito.
— Mas tem razão, essas coisas são difíceis de se abordar, mesmo entre a
gente... Acho que, mesmo entre os casais mais abertos, por mais coniventes que sejam, algumas de suas intimidades devem ser preservadas...
— Concordo.

Até então, eles não haviam se explicado mutuamente sobre o desenrolar dos acontecimentos do dia anterior. Limitaram-se a lamentar os fatos, como se tudo estivesse evidente, subtendendo-se as causas dos acidentes.

Luci continuou rearrumando seu álbum. Edu voltou a ler, observou atentamente a foto de Argemiro, em seguida dobrou o jornal e o atirou sobre a mesinha de centro, deixando à vista as matérias sobre as mortes do sábado.

— Pena que agora já não existem mais segredos entre nós — falou Edu olhando pra a foto de Argemiro.

Luci fez uma pausa no seu trabalho, discretamente olhou para a foto de Celso sendo transportado numa maca dos Bombeiros e falou baixinho:

— É verdade... Já não existem mais... segredos entre nós...

Entreolharam-se.

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sábado, 7 de julho de 2007

A conversão de Santiago

Hoje em dia qualquer picareta 171 pode autodenominar-se "bispo" e fica por isso mesmo. Como bispo? Quem sagrou? Com que legitimidade?
(Fritz Utzeri — OPASQUIM21, Nº 16)



Santiago não estava simplesmente duro; ele era a própria dureza personificada. Naquele dia havia chegado ao fundo do poço, não tinha sequer um centavo para a sua fezinha diária no bicho. Liso, micho, no perrengue, há mais de uma semana. Há um mês... dois... três ou quatro, talvez. Para ser mais... preciso, já fazia mais ou menos um certo tempo que ele não tinha um relacionamento, digamos, mais íntimo com o vil metal. Eu disse “vil”? Disse-o mal, pois Santiago nunca entendeu como uma coisa tão digna, tão nobre, tão pudica, tão decente, tão generosa, enfim, tão cheia de significantes méritos, fosse classificada de vil. “Coisa de comunista!” — sempre achou.

Era um homem de limitados dotes intelectuais, mas nem por isso se podia afirmar que se tratava de uma toupeira. Talvez lhe tenha faltado oportunidade para revelar-se naturalmente, para expressar seus verdadeiros talentos e conquistar um proveitoso sucesso. Ou então não assimilou as mais legítimas chances que se fizeram presentes em dados momentos de sua insulsa existência. Eu disse “insulsa”? Bom, acho que isso ainda vai soar como um verdadeiro insulto.

Apesar da dureza, Santiago trabalhava... Quer dizer, Santiago trabalhava, por isso mesmo, a dureza. É isso, porque ele mesmo vivia repetindo o clichê: “Quem trabalha não tem tempo pra ganhar dinheiro”.

Aquela pindaíba crônica, um miserê que se arrastava há anos, parecia maldição de mandinga, coisa de encosto mandado. Denise, sua mulher, asseverava que existia olho grande, pra lá de dilatado, secando o seu marido.

Dona Arlete, vizinha, conselheira e confidente (portanto mais que parente) de Denise, há muito tempo insistia para que a amiga convencesse o marido a participar de um culto, ao menos um, da Igreja da Bênção Divina, na qual eram fidelíssimas confreiras — laço que, em definitivo, as tornava verdadeiras irmãs.

Denise tanto insistiu que acabou por convencer o cético marido.


— Só vou pra te provar que onde tem pastor tem pasto, e onde tem pasto... tem burro! — Santiago achava o máximo esse trocadilho infame. Ria a gargalhadas quando o expressava.

— Deixe de blasfêmia, homem! Não fale mal do que você não conhece.

— Ah, é?! E quando você manda suas pragas pra cima dos meus amigos, hein?! Você pragueja até os que nunca viu. Pimenta nos olhos dos outros é moleza, né?

— Você há de concordar que tem muita diferença entre falar de pessoas purificadas, de um povo abençoado ou, pelo contrário, falar de gente pecaminosa, afundada no vício, como esses perdidos que andam com você. — Denise pegou a Bíblia que mantinha de prontidão sobre a mesa e a abriu dizendo: — O Salmo...

— Não! — Santiago cortou de pronto a pregação da mulher. — Já disse que vou lá na igreja de vocês, não precisa torturar — ele já não suportava mais ouvir citações bíblicas: capítulos, versículos, parábolas, profecias, milagres; tudo aquilo era badalado diariamente, numa repetição enfadonha. — Dei minha palavra e vou cumprir. Eu vou, vou sim. Quero conhecer esse tal pastor...

— Bispo! — corrigiu a mulher. — Bis-po! — desta vez com o indicador em riste. — E só se diz “esse tal” quando se fala de gente da laia dos que andam com você.

— Que seja! mas não precisa pregar. Eu vou conhecer o bispo Everaldo.

— Everardo.

— Tá bem! tá bem! A gente não vai criar caso só por causa de um erre ou de um elezinho insignificante. Vai?

Marcaram para a próxima quarta-feira, segundo elas, dia de Bênçãos da Prosperidade.

No dia combinado, lá se foi Santiago acompanhando as fervorosas obreiras — ambas prestavam serviço assistencial aos fiéis durante o culto, supostamente os protegendo com uma imaginária infusão de energia, aplicada através da imposição das mãos, e proferindo jaculatórias, em geral de cunho pretensamente exorcista.

A igreja era um amplo salão que bem poderia servir para sediar empreendimentos comerciais, tais como concessionária de automóvel ou supermercado. O mobiliário resumia-se praticamente aos bancos corridos, como se usa em quase todas as igrejas do mundo; à frente destes, um estrado de madeira, atapetado, sobre o qual havia uma mesa forrada com toalha branca de renda, tendo ao centro um arranjo de rosas brancas em vaso de porcelana. À falta de um altar-mor como os da Igreja Católica, um púlpito artisticamente esculpido em madeira de lei dava um aspecto sacro ao ambiente; porém servia apenas como estrutura decorativa. Um coral (à imitação dos que se vê em filmes americanos: um solista branco, alto, calvo, de smoking, e meia dúzia de rechonchudas mulatas usando laqueadas perucas, trajando estilizada bata azul-celeste, com muitos brilhos, e tendo em volta do pescoço um lenço de seda branca) cantava o que nos últimos tempos se convencionou chamar de música gospel; no geral, em ritmo quase frenético de rock&blues, sob o eletrônico acompanhamento de um teclado executado por um negro idoso de terno preto.

Após um considerável atraso do horário previsto para o início da segunda parte do culto (a mais importante), anunciou-se, sob emocionada expectativa, a participação do bispo Everardo Craveiro. “Dando seqüência à sua Cruzada pela Família e Prosperidade” — conforme informou o diácono apresentador.

Surgindo pela entrada principal do salão, o bispo Everardo avançou pelo corredor central, sorridente e acenando para o público que o aplaudia. Tudo ocorria à maneira de certos espetáculos populares. As palmas aos poucos se harmonizavam com o coral, na cadência do hino que este entoava em homenagem ao pregador. O diácono acenou para os fiéis, convocando-os a fortalecer o cântico, no que foi atendido, num crescendo que logo envolveu a todos e culminou no refrão:


“Salve! salve! Aleluia!
Salve, povo abençoado!
Do Senhor, filhos amados.
E dos teus servos, ó Pai,
Os escolhidos, os ungidos,
Que à Luz nos têm conduzido,
Na tua Glória amparai”.

Dona Arlete e Denise eram sem dúvida as duas obreiras mais empolgadas daquela noite. “Um olho na missa, outro no padre” seria uma expressão adequada para descrever seus comportamentos. Pois, enquanto se esgoelavam para destacar suas vozes do coro geral, de esguelha observavam as reações de Santiago, que parecia entre atabalhoado e refletivo, atento àquele evento, para ele singularíssimo.

Tudo aconteceu como das outras vezes: o bispo Everardo subiu ao palco-altar, o coro cessou. Silêncio absoluto. O bispo permaneceu imóvel por alguns segundos, cabisbaixo, tendo numa mão a Bíblia aberta em qualquer parte e mantendo a outra espalmada sobre o peito, como se estivesse meditando, inspirando-se (postura arremedada por todo o público; com exceção de Santiago, que preferia observar os acontecimentos, buscando os detalhes). Diante deste quadro, o tecladista faz soar uns acordes, e o solista do coral passou a entoar um suave cântico, arriscando uns falsetes, uma emocionante ária. Sob esse clima, o bispo ergueu a cabeça (somente ele) e orou. Agora, com o braço estendido, sua mão espalmada seria veículo das “bênçãos emanadas do Divino Espírito Santo” — garantia. — E o público se emocionou. Alguns fiéis se entregaram às lágrimas.

O roteiro daquela mise-en-scène estabelecia os Momentos das Bênçãos Divinas. Em seguida vieram o Momento da Louvação e o Momento da Cura pela Fé, quando algumas pessoas se submeteram ao poder de cura, do qual o bispo Everardo se dizia dotado. Dores de cabeça crônicas, bicos-de-papagaio, sinusites e até cânceres, tudo estaria sendo curado com um singelo “em nome do Senhor”. Também ocorreu o Momento dos Testemunhos, que naquela noite apresentou o depoimento de um ex-viciado em drogas, o qual jurava ter sido libertado do vício “graças ao poder concedido pelo Espírito Santo ao bispo Everardo Craveiro”. Também uma mulher testemunhou exibindo, como provas de cura, duas chapas de raios X, que teriam sido supostamente tiradas “antes e depois das divinas bênçãos do bispo” — pela empolgação com que falava, talvez ela quisesse dizer “...bênçãos do bispo divino”.

(Santiago evidentemente já ouvira falar de tudo aquilo. Denise não se cansava de propalar os prodígios da sua Igreja, mesmo tendo invariavelmente que agüentar jocosos comentários do marido, muitas vezes tocando as raias da estupidez.)

Finalmente, o Momento da Oblação. Ao ver todo o público contribuindo para que o pregador pudesse dar continuidade à sua “episcopal cruzada”, Santiago quase entrou em transe, ficou meio desorientado. E quando a obreira sacudiu a sacola na sua frente, convocando-o a fazer doação, ele já estava bastante confuso: nem acreditava que aquele sujeito com cara de peão de obra, ali ao seu lado, acabara de depositar uma nota de cinqüenta, novinha em folha, na conta do bispo Everardo.

Santiago meteu a mão no bolso e fez contato com os seus dez mangos. Lembrou-se da recomendação de Denise ao lhe entregar o dinheiro: “Isto é pra ser doado durante a Oblação. Com fé, com muita fé!” Mesmo assim ele vacilava entre doar ou aplicar aquelas dez pratas numa outra manifestação de fé: a do jogo do bicho. A obreira insistia exibindo a sacola com a boca arregaçada, aguardando o donativo. Santiago observou que a sua mulher estava espreitando-o. Lá das imediações do palco, Denise policiava o seu procedimento. Doou-os.

Ao término do culto, o bispo Everardo Craveiro deixou a igreja da mesma forma que entrou (um pouco mais abonado, claro): sob os aplausos dos fiéis e o canto do coral americanizado. Naquela mesma noite, ainda faria duas apresentações noutras “paróquias”.

As amigas evangélicas pareciam ansiosas por conhecer as impressões que tudo aquilo havia causado em Santiago. Porém se continham, aguardavam que ele as exteriorizasse espontaneamente.

Na volta para casa, as obreiras, ao comentarem sobre os acontecimentos daquela noite, afetavam a voz, a fim de chamar a atenção de Santiago. Indiretamente o estimulavam a expressar a sua opinião a respeito da Igreja da Bênção Divina. Contudo, apesar de ávidas pelo parecer do convidado, evitavam uma abordagem explícita.

Já haviam descido do ônibus, agora caminhavam pelo meio da rua, em direção às suas residências. Foi aí que dona Arlete não se conteve e, tendo o cuidado de imprimir nas palavras um tom de desdém, dando a entender que a resposta teria pouca importância, perguntou:

— E então, seu Santiago, o que senhor achou da nossa Igreja?


Santiago não percebeu que estava sendo indagado. Alheado, Santiago caminhava olhando ora para o chão, ora para o céu; nem se dava conta da companhia das duas mulheres.

Denise chamou a sua atenção:


— Ei! dona Arlete falou com você, homem!

— Hã?!

— Dona Arlete quer saber o que você achou da nossa Igreja.

— O que eu achei?

— Sim — confirmou dona Arlete.

— Bem... é que eu... — Santiago hesitava, parecia não querer revelar as suas impressões sobre o que acabara de assistir. — Eu... eu não sei...

— Não sabe?! — estranhou dona Arlete, agora externando a sua curiosidade.

— Ah! o que eu achei foi... que... é... — Santiago continuava reticente.

— Desembucha, homem! — impacientou-se Denise.

— Bom, quer que eu seja sincero? Eu achei... tudo... tudo mesmo! tudo simplesmente fantástico. É, é isso aí, fantástico, simplesmente fan-tás-ti-co!

As obreiras pararam no meio da rua, porém Santiago continuou caminhando. Elas entreolharam-se perplexas. Não esperavam aquela resposta. Lá mais à frente, Santiago repetia com ênfase:

— Fantástico! Simplesmente fantástico!

No dia seguinte, toda a vizinhança tomou conhecimento da conversão de Santiago. Dona Arlete e Denise se encarregaram de espalhar aos quatro ventos aquilo que, para elas, se tratava de “uma graça alcançada pela força da nossa fé e pelo poder do bispo Everardo Craveiro”. Garantiam que o fato era “o testemunho vivo” de um prodigioso milagre realizado na Igreja da Bênção Divina.

Apesar de Santiago estar afastado dos amigos há mais de uma semana, mesmo com toda aquela boataria dando conta da sua conversão, ninguém acreditava no fato. Todos se admiravam: “Crente?!” Havia quem dissesse: “Não acredito, nem vendo!”.

Mas todos notaram que o Bar do Onça perdeu um freguês: Fuinha, um cara que sabia beber e era, disparado, o melhor carteador da área. Fuinha também esqueceu o milhar que todo dia cercava pelos cinco na banca do Dagoberto. Fuinha, que há vinte e três anos trabalhava na portaria de uma repartição pública, onde recebia o cerimonioso tratamento de “seu Fuinha”, mas que os atos publicados no Diário Oficial tratavam por Ananias Santiago da Paixão.

“Santiago, pra minha mulher; pros íntimos é Fuinha mesmo” — costumava brincar com o apelido que se referia à sua magreza.

Também, Odete perdeu o amante. Fu. Somente ela o chamava assim, Fu. E nisso rolava uma certa gozação da rapaziada: “Odete, você ainda tem daquele perfume que Fu deu?” — ela ficava uma arara, mas às vezes dissimulava a contrariedade e respondia manso: “Não, tenho não. Dei o restinho pra senhora sua mãe”.

Em pouco mais de um ano após a conversão, Santiago deixou Cordovil, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, onde morava e era bastante conhecido desde muito jovem, e se instalou numa casa mais confortável, na Penha, próximo à sua igreja. Tal mudança teve como principal objetivo afastar-se até mesmo das lembranças de um passado comprometedor. Certo dia ele disse para Denise: “ Fuinha está morto. Morto e enterrado. Aliás, mais do que isso: Fuinha nunca existiu, entendeu? Nunca existiu!” — com o mesmo interesse de “acabar com o Fuinha”, conseguiu transferência da repartição.

Devido a uma dissidência religiosa, um cisma na Igreja da Bênção Divina, fundou-se a Igreja Divina da Bênção Universal. Em menos de dez anos, esta já dispunha de um considerável conjunto de templos afiliados, em geral instalados nas imediações das favelas cariocas. Contava ainda com algumas sucursais em outros estados e até se preparava para inaugurar a sua primeira representação internacional.

Inicialmente a seita comprava espaços nas emissoras de rádio a fim de divulgar os seus cultos e arrolar prosélitos. Agora já dispunha de duas estações próprias, graças ao prestígio de um deputado federal, cuja base eleitoral era formada pelos fiéis daquela congregação.

A matriz em Irajá, de simples galpão adquirido de uma empresa falida, transformou-se numa admirável edificação. Na fachada de mármore, logo abaixo do nome da Igreja, uma mensagem: “O templo é grande porque Deus é infinito”. Naqueles dias havia também uma faixa persuadindo o público a participar de uma “Noite de Obras Divinas”; além disso, informava que aquele seria um evento destinado aos que pretendessem “deixar de sofrer”.

A história se repete

Na noite anunciada...

...após um considerável atraso do horário previsto para o início da segunda parte do culto (a mais importante), anunciou-se, sob emocionada expectativa, a participação do bispo pregador. “Dando seqüência à sua Cruzada pela Prosperidade das Famílias” — conforme informou o diácono apresentador.

Surgindo pela entrada principal do salão, o bispo avançou pelo corredor central, sorridente e acenando para o público que o aplaudia. Tudo ocorria à maneira de certos espetáculos populares. As palmas aos poucos se harmonizavam com o coral, na cadência do hino que este entoava em homenagem ao pregador. O diácono acenou para os fiéis, convocando-os a fortalecer o cântico, no que foi atendido, num crescendo que logo envolveu a todos e culminou no refrão:

“Salve! salve! Aleluia!
Salve, povo abençoado!
Do Senhor, filhos amados.
E dos teus servos, ó Pai,
O BISPO SANTIAGO, o ungido,
Que à Luz nos tem conduzido,
Na tua Glória amparai”


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sexta-feira, 6 de julho de 2007

Vermelhôôô...

Baba, Ouriço e Mancha conversavam. Já passava das duas da matina. A temperatura naquele alojamento provavelmente atingira o pico das madrugadas calorentas daquele verão. Os pernilongos faziam a festa na pele dos outros adolescentes que dormiam amontoados, disputando pequenos espaços de um ambiente superlotado. O forte odor de suor misturava-se ao mau cheiro dos dejetos que transbordavam das latrinas.

Baba, 15 anos de idade, Ouriço, também 15, e Mancha, que já completara 16, são filhos de Ninguém, Não-Se-Sabe e Já-Morreu - não respectivamente, pois qualquer dessas "paternidades" pode ser atribuída a qual dos três se apresente, sem distinção. Na verdade, Baba e Mancha são irmãos pela sorte em comum, quer dizer, pelo mesmo azar, o de terem nascido sob o estigma dos dois pês: pretos e pobres. Ouriço, apesar de branco, é da família pela segunda via.

Quanto aos apelidos, Baba não sabe ao certo qual a origem do seu; diz que o chamam assim desde muito pequeno, no orfanato onde viveu até os doze anos. "Lá até as freiras me chamavam de Baba", afirma. Ouriço é assim conhecido devido ao seu cabelo tipo escovinha, eriçado. No caso do Mancha, pode-se facilmente identificar a origem do seu apelido: uma mancha cutânea, avermelhada, congênita, cobre parte do seu pescoço e do lado esquerdo do rosto; parece uma inflamação por queimadura com água fervente. Quando os colegas lhe perguntam: - "O que foi isso?", a resposta depende do seu estado de espírito, mas quase sempre responde: "Foi um chupão da tua irmã".

Além do calor, àquela hora estavam famintos. O jantar (uma sopa de legumes e um pãozinho francês) fora servido às seis da tarde; desde então, nem água.

Trocavam experiências. Falavam sobre suas perigosas aventuras no submundo do tráfico de drogas, onde Baba e Ouriço atuam. Estes foram presos quando vendiam sacolés de cocaína e trouxinhas de maconha na entrada da favela onde "plantam", conforme designam suas permanências nas bocas do narcotráfico. São vapores, o que na gíria dos traficantes é o mesmo que aviões, pequenos distribuidores de droga; mas espalham que são soldados, que guarnecem a boca com fuzis AR-15, G-3, 762 e outras armas de grosso calibre, sobre as quais falam com uma certa propriedade, citando peças e descrevendo o poder de fogo de cada uma, demonstrando conhecimentos a respeito da matéria. Dá prestígio. E no Educandário Padre Severiano - o EPS - onde agora se encontram cumprindo medidas sócio-educativas, judicialmente prescritas, é sempre bom ter prestígio entre os colegas. Pode fazer a diferença entre os que sofrem mais e os que conseguem sobreviver em condições menos sufocantes.

Mancha está em outra: atua no ramo de acessórios e componentes automotivos. É um exímio depenador de carro. Conhece todas as marcas de CD player existentes na praça. Garante que só cata os mais sofisticados. Gaba-se de ter depenado o carro de uma famosa apresentadora de televisão. Sempre que fala sobre este ganho, diz: "Pô! quando eu era bebel, queria ir no programa dela, mas nunca consegui. Me vinguei!"

Aquela galeria é formada por seis alojamentos, todos com banheiro provido de latrina, chuveiro e lavatório, porém a água é liberada somente pela manhã, durante cinco minutos, para o banho e higiene em geral.

Mancha levantou-se e caminhou em direção à entrada do alojamento-cela. Baba e Ouriço observaram os movimentos do companheiro. Ele encaixou o ouvido entre as barras da grade e apurou a audição: silêncio total, nenhum sinal dos agentes de plantão. Irritado, reclamou:

- Porra! não güento mais essa sede! Os putos desses agentes não tão nem aí. Se algum de nós passar mal, pode até morrer, que pra eles é mesmo que nada.

- Da Penha tá com febre - informou Ouriço. - Parece que tá com dengue. Tudo que come vomita. O "seu" falou que era dengo e que pra isso só tinha um remédio: umas pranchadas no peito e na lata.

- Aqui dentro esses cara são tudo valente! - disse Mancha, expressando profundo rancor. - Quero ver na pista! Se um dia eu bater de frente com um "seu" lá fora, vou detonar! Só mando nos cornos!

Mancha voltou para o colchonete estendido no chão, sentou-se e passou a olhar para o teto, como se estivesse procurando alguma coisa. Baba e Ouriço imitaram seu gesto, também passaram a olhar para cima, querendo identificar o que Mancha estava procurando.

- Que é que tu tá vendo? - perguntou Baba.

- Pô! tô querendo é meter o pé dessa merda!

- Tu e todo mundo que tá aqui! - completou Ouriço.

Mancha correu o olhar por todo o alojamento, observou os adolescentes que dormiam e falou:

- Mas, se todo mundo tá querendo sair no pulo, o que é que a gente ainda tá fazendo aqui?!

- Já sei o que tu tá pensando - disse Ouriço. - Bom, se Baba topar, eu também tô nessa.

Baba, no entanto, esquivou-se da responsabilidade de decisão, afirmando:

- Topar, eu topo, que eu nunca corri de nenhuma parada. Mas vocês sabe que, quando tem rebelião, eles chamam o Bope, né?

- Fala baixo! - alertou Ouriço. - Parede tem ouvido, irmão!

- Mas não tem nenhum "seu" aqui por perto - lembrou Mancha.

- Não tou falando só de agente, cara! É que pode ter algum X-9 de antena ligada.

- X-9?! Peralá, irmão, assim já é demais! - Mancha demonstrou-se indignado com a idéia de conviver com alcagüete. - Que papo é esse de dedo-duro? Tem alguém na mira? Se tem, por que um cara desse ainda tá em pé? Lá na minha área, X-9 vai pro microondas. Com um litro de gasolina e dois pneus, a gente torra o safado.

- E tu pensa que é fácil pegar? - perguntou Baba.

- Ouriço tem razão, nóis precisa ter cuidado com a língua. Tem neguinho aí agindo por debaixo dos pano. Quando tu pensa que o cara é teu amigo, aí tu descobre que ele é o maior juda. Escuta: pelo que eu sei, essa é tua primeira passagem aqui no Padre.

- É - confirmou Mancha. - Das outras vez que me pegaram teve desenrolo, mas nessa eu rodei. Os home acharam que o ganho era pouco.

- Mas tu é comando, né?

- Claro, irmão! Nasci e me criei lá no Turano. Se tiver alguém de lá por aqui, é só me botar de frente. Já faz um tempo que tou morando na rua, mas todo mundo lá no morro me conhece, todo mundo sabe quem é o Mancha. E tem mais: eu nunca me sujei na parada, só faço ganho na pista.

- Eu sei, cara, não precisa se explicar. Só tô querendo dizer que aqui no Padre é tudo separado: comando prum lado e terceiro pro outro. Tu chegou essa noite, pode não saber disso. Os alojamentos dois e três são de terceiro.

- Eu já sabia dessa separação. Tem uns amigos meu que já passaram por aqui e me contaram com é que funciona.

Ouriço sugeriu:

- Se a gente levantar a casa, a gente podia aproveitar pra quebrar uns terceiro. Porque, porra! eu não me conformo de ver esses cara usar a palavra, "comando", na facção deles: Terceiro Comando! Porra! isso tá errado. Comando mesmo só nóis, só o Comando Vermelho.

- Também acho - concordou Mancha.

- Pra falar a verdade - disse Baba - eu não gosto nem de falar essa palavra... é... terceiro...

- Então diz "dois mais um" - sugeriu Mancha.

- É isso aí!, dois mais um, isso mesmo!, eles são os dois-mais-um!, os dois-mais-um! - Baba gostou da sugestão, tanto que ficou eufórico e cantarolou: - Ôôô... vermelhôôô... vermelhôôô...

Naquele dia ficou estabelecido, pelo Comando Vermelho Jovem - CVJ -, que a partir de então seus integrantes deveriam evitar a pronúncia do número três e seus derivados. Sempre que possível, usariam apenas o dois-mais-um. Ainda assim, graças a umas fabulosas ginásticas da imaginação, surgiram expressões como: "um duque mais um ás" (no lugar do terno), "uma dupla mais um solo" (pra substituir o "trio"), dentre outras. Levaram a coisa tão a sério que, para os flamenguistas, naquele ano o clube havia conquistado não o tricampeonato, mas, sim, o "depois do bi", ou, como alguns preferiram, o "antes do tetra". Contudo o dois-mais-um passou a ser usado generalizadamente. O importante era evitar a evocação do Terceiro Comando, a facção arquiinimiga do Comando Vermelho; esses, os dois maiores agrupamentos do crime organizado, na guerra do narcotráfico, no Rio de Janeiro.

Os dias no EPS são todos praticamente iguais, a rotina sofre pequena alteração somente nos dias de visita. Lá, quase nada faz distinguir os sábados, domingos e feriados dos chamados dias úteis. Aliás, se considerarmos que aquela instituição nunca conseguiu efetivar a sua verdadeira função (ressocializar adolescentes que enveredaram pela senda do crime), então diremos que no EPS não ocorrem "dias úteis". Na verdade, os jovens infratores, ali acautelados por via judicial, são devolvidos à sociedade com um certo grau de aperfeiçoamento para a prática de atos ilícitos, devido ao intercâmbio de informações que se verifica entre eles.

Os funcionários responsáveis pela disciplina, agentes-monitores, em muitos casos também são conhecidos por apelidos que, por via de regra, expressam algumas de suas características pessoais. Assim, "Bigode", "Cabeção" ou "Barriga" são alcunhas que revelam alguns aspectos físicos dos apelidados; mas, em "Itaipu", está sutilmente implícito um dado significante: trata-se do agente que prefere a aplicação de choques elétricos ao tapa na cara durante uma sessão de tortura.

Meio-dia - três dias depois daquela madrugada calorenta - os adolescentes estavam sentados no chão do pátio central, formados em fila por alojamento, a fim de serem encaminhados para o almoço. Silenciosos. Nessas ocasiões não se permite qualquer emissão de som, mesmo que seja um simples murmúrio ou pigarro. Aliás, até um involuntário espirro poderia comprometer seu emissor, valendo-lhe a aplicação de uma "aspirina", que, no código interno do EPS, significa uma chavascada nas costas. Em caso de tosse, estaria sujeito a uma bordoada "expectorante" na caixa torácica.

Os agentes estavam distribuídos de forma que podiam observar todos os internos. Caminhavam entre as fileiras, circunspectos, ameaçadores, prontos para agir a qualquer movimento suspeito.

Baba encabeçava a sua fila, Mancha estava no meio, e Ouriço era o último daquela formação. Comunicavam-se por sinais. Foi por isso que Mancha, ao ver Baba coçar a orelha esquerda, olhou para um dos adolescentes da fila do alojamento três e falou em tom agressivo:

- Que é que tu tá vendo, seu dois-mais-um filho da puta?! Vai encarar?! - dizendo isso, levantou-se e caminhou em direção ao desafiado. - Vou te quebrar, safado!

O agente chefe do plantão gritou:

-Volta pro teu lugar, moleque! Porra! tu vai se arrepender, vagabundo!

Mancha não deu atenção à advertência, continuou investindo contra o seu suposto desafeto. Rapidamente, dois agentes o alcançaram e com destreza o dominaram. Um deles lhe aplicou uma gravata, enquanto o outro imobilizou suas pernas, suspendendo-o. Foi aí que Baba levantou-se, com o braço erguido e o punho cerrado, e gritou:

- VERMELHÔÔÔ...!!!

Enquanto os adolescentes da facção Terceiro Comando ainda não se haviam dado conta do que estava acontecendo, os integrantes do CVJ já estavam todos de pé, entoando o ensurdecedor grito de rebelião: ÔÔÔ... VERMELHÔÔÔ... REBELÔÔÔ... VERMELHÔÔÔ... REBELÔÔÔ...

Baba e alguns de seus parceiros previamente escolhidos cobriram o rosto com as camisetas, formando o grupo ninja. Logo surgiram alguns instrumentos (chave de fenda, espátula), estoques feitos com pedaços de vergalhão, cabos de vassoura (divididos em pequenos porretes) e cacos de azulejo arrancados dos banheiros, tudo transformado em arma. Os cinco agentes que se encontravam no pátio logo foram dominados e feitos reféns pelos revoltosos. Tiveram os olhos vendados e as mãos atadas com suas próprias camisas e cintos. De posse das chaves das áreas internas, os amotinados trancaram os reféns em um dos alojamentos.

Alguns adolescentes sangravam pelo nariz e exibiam hematomas em torno dos olhos. Surpreendidos pela ação dos membros do CVJ, os adolescentes do Terceiro Comando tornaram-se presas fáceis e foram massacrados. Três deles ficaram estendidos no pátio, agonizando, gravemente feridos. Os demais conseguiram se refugiar numa galeria, isolando-se e protegendo-se da facção adversária.

Apesar de dominarem a situação no interior do pátio, os rebelados tiveram suas ações limitadas a essa área e às galerias dos alojamentos, pois o acesso ao pátio é controlado pela parte externa, sob os cuidados de um agente-monitor.
Em poucos minutos os setores administrativos do EPS foram evacuados. Um grupo de choque da Polícia Militar colocou-se a postos em frente à instituição, aguardando ordens para entrar em ação. Também a Imprensa já se fazia presente. Um helicóptero da equipe de reportagem de uma rede de televisão sobrevoava a área captando imagens do motim. Agora a população já podia ver, ao vivo e em cores, os rebelados amontoando colchões na quadra poliesportiva, os quais logo se inflamaram, cobrindo o educandário e adjacências com uma espessa fumaça negra. O cenário tornava-se ainda mais sinistro quando o helicóptero se aproximava o suficiente para captar a "trilha sonora": ÔÔÔ... VERMELHÔÔÔ... REBELÔÔÔ...

Durante cerca de oito horas os adolescentes fizeram ameaças contra os reféns. Exigiram dinheiro e carros para fuga. Não foram atendidos. Contudo, depois de insistentes negociações à distância, permitiram a entrada do padre João, o pároco que desenvolvia um trabalho de assistência social e religiosa com os internos e desfrutava da estima desses. O evangelizador atuou como conselheiro e, finalmente, depois de empenhar sua palavra, garantindo que não haveria retaliações, convenceu os adolescentes a pôr termo ao motim.

À saída, o padre João, em depoimento aos repórteres, falou sobre o acordo com os adolescentes:

- Eles temem represálias por parte de funcionários do Educandário, mas eu lhes garanti que isto não aconteceria, pois o próprio diretor da instituição se comprometeu em assegurar a integridade física e moral dos internos. Quanto às reivindicações, eles não exigiram nada que não se possa atender de imediato: querem apenas a transferência de alguns adolescentes para as unidades de semiliberdade, conforme já está judicialmente determinado, a fim de desafogar os alojamentos, e melhorias na alimentação. Isso no que tange à qualidade e até mesmo à quantidade servida. Não podemos nos esquecer de que estamos tratando de adolescentes, pessoas ainda em formação de suas estruturas física e psíquica...

Um repórter de televisão interrompeu sua participação na entrevista, afastou-se do grupo e, falando para a câmera que o acompanhava, concluiu: - "A rebelião no Educandário Padre Severiano chegou ao fim graças à intervenção do padre João, um sacerdote que se dedica à evangelização de adolescentes infratores. Neste momento, uma equipe de resgate do Corpo de Bombeiros está atendendo aos feridos, os quais serão transportados para o hospital mais próximo. Nos acontecimentos ocorridos hoje, aqui no Educandário Padre Severiano, pudemos observar um dado novo, um tipo de comportamento que até agora nos passava despercebido: os adolescentes em trânsito judicial, acautelados nas instituições correcionais do Estado do Rio, também estão organizados em facções, a exemplo do que ocorre nos presídios. As iniciais CVJ, rabiscadas nas paredes do pátio interno, durante a rebelião, significam "Comando Vermelho Jovem". As primeiras informações sobre os feridos nos dão conta de que esses seriam membros do TCJ, quer dizer, do Terceiro Comando Jovem. Agora resta saber se na Febem de São Paulo também já se verifica a versão jovem do PCC..."

"Sala de reflexão" - é como denominam o compartimento de nove metros quadrados onde Baba, Ouriço e Mancha estavam isolados há cinco dias. Despidos, dormiam no chão, sem colchões ou cobertas. Naquela madrugada, quando os agentes-monitores abriram a porta, os três se acordaram e se prepararam para receber o esguicho da ducha aplicada com a mangueira da rede de incêndio, conforme vinha ocorrendo todos os dias. Rápido, levantaram-se e imediatamente se colocaram contra a parede dos fundos do quarto, esperando o impacto do jato d'água nas costas. Porém, daquela vez, nada aconteceu. De tão apreensivos que estavam, nem perceberam os sorrisos sarcásticos e os comentários jocosos que cinco agentes faziam sobre as suas nudezas. Mas logo sentiram os primeiros golpes de porrete desferidos na região lombar. À medida que recebiam as bordoadas, os três aos poucos se arriavam, escorregando as mãos pela parede, dobrando os joelhos e gemendo a cada surda pancada. Esforçavam-se para não cair de vez, pois sabiam que, se isso acontecesse, seriam finalmente massacrados a pontapés.

Súbito, a pancadaria cessou. Os adolescentes já estavam ajoelhados. Ofegavam e gemiam. Três agentes, segurando-os pelo pescoço, ergueram-nos. Em pé, permaneceram de costas para os algozes, que agiam sincronizados como numa espécie de coreografia macabra. Foi assim que, simultaneamente, fizeram os internos recuar alguns centímetros e, de um só golpe, arrebentaram seus rostos contra a parede. Segurando-os bruscamente pelos ombros, os agentes rodopiaram os adolescentes, posicionando-os de frente para si. Todos três exibiam a mesma expressão facial: olhos semicerrados, olhar apagado e boca entreaberta. Sangravam - pelo nariz (Mancha), pela boca (Ouriço) e por um corte no supercílio (Baba).

Ao ver aqueles rostos cobertos de sangue, Bareta, o agente líder do grupo, fingindo surpresa, representou uma reação de desvairado sobressalto: largou sua vítima repentinamente, deixando o adolescente cair desfalecido, levou as mãos à cabeça e exclamou irônico:

- Ih! vermelhou!

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