sábado, 8 de outubro de 2011

Entrando no Chile

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(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo", publicado em 2006)

Urda Alice Klueger

Era a primeira vez na minha vida que eu ia ao Chile – e entrar no Chile foi muito engraçado, pois não havia Aduana. Andaríamos 164 km até chegar a ela, o que me fez pensar de novo nas brigas entre os dois países por causa do Canal de Beagle.

A comida, o sol quente e o bom vento fresco em cima da moto acordaram-me de vez, e agora eu tinha forte consciência de que estava, já, no Deserto do Atacama. É muito interessante e muito lindo, tal deserto. É um verdadeiro espetáculo para quem nunca o viu ou o imaginou – eu, pelo menos, tinha na imaginação as imagens do Deserto do Saara, todo de dunas de areia branca, e fui como que indo de surpresa em surpresa Atacama afora. O Deserto do Atacama às vezes é plano, semeado de distantes vulcões; às vezes é feito de suaves ondulações ou colinas; às vezes é todo de altíssimas subidas e descidas de montanhas – e todo ele é um mar de minério, que o deixa com as mais variadas cores, dependendo do que é feito seu solo. Dependendo da região, uma colina é azulada, outra é creme, outra é lilás, outra é roxa – coisa de louco, beleza como que espargida às mão-cheias, e há que se pensar que a última vez que choveu, lá, foi no século XVI – portanto, há quase 500 anos. Algumas partes do Deserto do Atacama estão fora da biosfera, isto é, são tão secas que não permitem nenhuma forma de vida. Não cheguei a ver, mas soube que nessas partes que estão fora da biosfera, os grandes laboratórios [1] internacionais têm seus centros de pesquisa mais perigosos, por uma questão de segurança. Funciona assim: se um laboratório daqueles acabar produzindo um vírus, uma bactéria, ou qualquer forma de vida que possa ser prejudicial à Humanidade, e se, devido a algum acidente, tal forma de vida escapar de controle e fugir do laboratório, não haverá perigo – ela não atingirá a Humanidade, pois morrerá antes de sair daquelas regiões totalmente secas.

Naquele dia, porém, atravessávamos parte ainda não tão seca do deserto, planícies pontilhadas com distantes vulcões de grande altitude, onde se formavam as neves eternas, e, por causa delas, havia períodos de degelo que formavam algumas lagoas ou outros pontos de umidade, e qualquer umidade é sinônimo de vida, e onde há aquele mínimo de água nasce a vegetação característica do deserto, que no caso podiam ser pequeninos arbustos, ou capins, ou musgos – e lá estavam as alpacas, as vicunhas, as lhamas, os zorros[2], e sabe-se lá quantos outros bichinhos que existiam na cadeia alimentar daquele lugar onde a vida parecia quase impossível! E não se via, nem mesmo casinhas de adobe, mas fico pensando que aquelas lhamas e suas primas não estariam ali de graça – em algum momento do ano seu dono haveria de aparecer, nem que fosse para tosquiá-las dos seus pêlos tão quentes!

Uma coisa ótima que acontecera desde que entráramos no Chile: voltaram as boas estradas asfaltadas, bem sinalizadas com uma forma diferente de sinalização, em placas amarelas. A paisagem soberba me entretinha completamente, e quase não dei pelos 164 km que andamos – o que não deve ter demorado mais que hora e meia – quando paramos com grande estardalhaço, enfim, na Aduana chilena! Havia um rigoroso controle para que não passasse por ali nenhuma contaminação da febre aftosa – e já tive que saltar da moto sobre uma imensa esponja cheia de desinfetante, enquanto patrulheiros vinham aspergir desinfetante em todas as rodas da nossa comitiva.

Eram simpáticos, os chilenos! Enquanto preenchíamos nossas fichas de entrada no país e outras coisas, entre elas uma declaração de que nada levávamos de origem animal (por causa da febre aftosa), um deles deu-se conta de que meu estômago não estava lá muito bom, e foi buscar um limão, e cortou-o, e me falou das suas propriedades terapêuticas, e me ensinou a chupá-lo da forma certa para absorver o ácido necessário para melhorar, e era pura gentileza. Fiz as coisas que se fazem em tais ocasiões: contei-lhe da grande amiga chilena que tinha na minha cidade, a artista plástica Paloma, e ele acabou se despedindo de mim com um beijo no rosto. Deduzi que ele andara vendo muitas novelas brasileiras, para ter aprendido aquele tipo de despedida – tanto quanto sei, os chilenos e outros povos não se beijam assim como nós!

Só quando, enfim, fomos liberados pela Aduana, foi que me dei conta que estávamos.... nada mais nada menos que em SÃO PEDRO DE ATACAMA! Gente, isso aí estava muito além dos meus melhores sonhos!

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[1] O Deserto do Atacama é considerado um deserto costeiro, e vamos desdobrar tal informação em outras, mais adiante. É o mais seco do mundo. Eventualmente pode haver uma chuva que possa ser medida, em alguns pontos dele – algo como 1 mm ou mais – a cada 5 ou 20 anos (http://pt.wikipedia.org/wiki/Deserto – consultado em 15.06.2006), ou como saberíamos um pouco mais adiante, na cidade de Tocopilla.
[2] Zorro = raposa (Nota da autora)

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Urda Alice Glueger é escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Urda colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz

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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Caldeirão que o diabo abominou

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Fernando Soares Campos

Há pouco mais de cem anos, bem no final do século XIX, ocorreu a Guerra de Canudos, quando, depois de algumas tentativas, finalmente tropas federais destruíram uma comunidade no interior da Bahia, matando seu líder, o beato Antônio Conselheiro, e milhares de resistentes, restando apenas alguns poucos idosos, mulheres e crianças. Cinco anos depois, Euclides da Cunha lança “Os Sertões - Campanha de Canudos”, e só a partir do lançamento dessa obra, provavelmente devido ao interesse de um editor que enxergou nela um grande filão, a história de Canudos chegou até os dias atuais. Certamente muitos pesquisadores se dedicaram ao esclarecimento dos fatos; mas, sem “Os Sertões”, talvez Canudos fosse apenas uma história de gente antiga, que não tem o que fazer e fica por aí assustando crianças que fazem xixi na cama.

Euclides da Cunha, na condição de correspondente de guerra do jornal O Estado de São Paulo, foi o “Repórter Esso” de Canudos: testemunha ocular da História. Enquanto os jornais das grandes cidades incitavam o novo governo republicano contra a resistência dos “monarquistas” de Canudos, Euclides da Cunha registrava a carnificina cometida contra um povo relegado ao abandono e à miséria, que se perpetuam através dos tempos, monárquicos ou republicanos.

Sobre Canudos, quase todo brasileiro conhece alguma coisa que seja, mesmo superficialmente, visto que, além da obra de Euclides da Cunha e tantas outras nela inspiradas, mais recentemente o filme Guerra de Canudos foi um grande sucesso de público e palpites da crítica, além de ter sido premiado em importantes festivais. Também muitos são os vídeodocumentários sobre a Guerra de Canudos; e a maioria dos professores de História recomenda a obra euclidiana aos seus alunos.

Porém, se o episódio de Canudos é conhecido mundo afora, principalmente através de “Os Sertões”, o mesmo não ocorre com acontecimentos idênticos que também tiveram como palco os sertões nordestinos, como, por exemplo, a destruição da comunidade Caldeirão da Santa Cruz do Desterro, no Sertão do Cariri (CE).

Em meados dos anos 20, José Lourenço (foto ao lado), um beato que foi preso por pregar em praça pública, acabou sob a proteção do Padre Cícero do Juazeiro, que lhe concedeu o direito de habitar uma propriedade abandonada, num pé da serra. Não demorou muito, o beato atraiu cerca de 500 famílias para o local, onde fundaram um vilarejo, a comunidade Caldeirão, no Sertão do Cariri. O vilarejo prosperou, com suas casinhas simples, igrejinha, escola, trabalho, atividades culturais, religiosas e de lazer, tudo sob sistema de mutirão, sem qualquer ajuda externa. A comunidade era formada por retirantes de diversos estados nordestinos.

Caldeirão tornou-se uma comunidade auto-suficiente, até mesmo ferramentas de trabalho eram fabricadas no local, algumas foram desenvolvidas apropriadamente para o trabalho em condições peculiares. Sobre a agricultura, remanescentes daquela experiência relatam que tudo era tratado de forma ecologicamente correta, atentando-se para a preservação do solo, dos mananciais hídricos, da fauna e flora, cujas explorações atendiam às normas específicas da comunidade. Criações de bovinos e caprinos garantiam o fornecimento de carne e leite, que por sua vez geravam a produção de charque, queijo e manteiga, enquanto as peles se transformavam em calçados, cintos, bolsas e artesanatos. A produção atendia ao consumo interno, e o excedente era vendido nas cidades vizinhas, principalmente nas prósperas Juazeiro e Crato, gerando receita para a aquisição de produtos necessários à sobrevivência naqueles confins.

No Caldeirão, a terra e os meios de produção eram de propriedade coletiva... Epa! Acho que foi aí que o bicho pegou! O leitor também já deve ter percebido o que deve ter acontecido com uma comunidade com essas características, na primeira metade do século 20.

Massacre de Caldeirão

Os coronéis da região, ricos fazendeiros, eram detentores de grandes fortunas, ostentavam fabulosos patrimônios que incluíam: terras, casarões, gado, engenhos, trabalhadores em regime escravo e até alguns políticos amestrados. Delegados e juízes também podiam ser considerados propriedades de alguns desses senhores da vida e da morte. Nesse contexto, prosperava uma comunidade formada por pessoas que ali chegaram arrastando corpos desnutridos, expressando abatimento moral e desesperança, como em “Retirantes”, quadro de Cândido Portinari.

Em 1936, Caldeirão se distinguia como uma comunidade relativamente próspera. Foi aí que os coronéis da região começaram a sentir dificuldade de conseguir mão-de-obra barata, trabalhadores semi-escravos. Logo se iniciou uma campanha contra aquilo que as oligarquias regionais chamavam de “uma nova Canudos”. Não demorou muito e o beato José Lourenço e seus seguidores foram perseguidos sob a acusação de “prática de comunismo primitivo”.

Depois de intensa campanha, a ditadura getulista autorizou a invasão da comunidade Caldeirão pelas forças da Polícia militar do Ceará e do Ministério da Guerra. Seus crimes: haviam encontrado uma maneira de sobreviver à seca, à fome e ao coronelismo, apenas unindo forças e pacificamente trabalhando a terra. Porém, ao contrário do que se propagava, a comunidade não dispunha de armas ou planos para enfrentar os invasores. Caldeirão, ao contrário de Canudos, não ofereceu resistência, exceto alguns gestos isolados de defesa e proteção pessoal sob impulsos do instinto de sobrevivência. Quando da invasão, os armazéns da comunidade encontravam-se abarrotados de algodão, milho, feijão, arroz, rapadura e farinha. Havia máquinas e objetos importados. Tudo foi destruído, inclusive as novas plantações e muitos animais. As mulheres foram estupradas, e os objetos pessoais de valor foram levados como prêmios de guerra.

Sobreviventes da comunidade Caldeirão, entre eles o beato José Lourenço, reorganizaram-se na Chapada do Araripe (CE), fundando nova vila, com a mesma orientação comunitária do Caldeirão. Logo, esta também foi considerada um embrião do “comunismo ateu” que se instalara do outro lado do mundo e, na visão tosca dos fazendeiros, ameaçava migrar para aquelas bandas. Desta vez os membros da nova comunidade se prepararam, ainda que de forma rudimentar, para a luta de resistência armada. Na Serra do Araripe as forças de repressão usaram aviões para bombardear um grupo de resistentes armados de peixeiras, foices, facões e espingardas de caça. A Polícia Militar do Ceará e o Exército getulista destruíram a vila e enterraram mais de mil mortos em valas comuns.

Protegido pelos seus seguidores, novamente o beato José Lourenço escapa e se refugia em Pernambuco, seu Estado de origem.

Tentativa de resgate da história

“A Universidade Regional do Cariri (URCA) planeja percorrer os caminhos trilhados pelo Beato, na busca de locais para implantação de uma sociedade solidária. A URCA pensa, também, revisitar as trilhas utilizadas por José Lourenço, nas suas fugas das forças policiais. Por conta disso, já em outubro de 2005, uma equipe da URCA refez o itinerário de José Lourenço, na fuga do Caldeirão até sua nova morada: o Sítio União, localizado no município de Exu (PE). Com a permissão do atual dono da propriedade, a equipe percorreu o local, em busca de algum vestígio que lembrasse a passagem do Beato por aquele lugar. Infelizmente, somente o alicerce do engenho, o açude e um depoimento de Zé de Teresa, neto de uma testemunha da época, resistem ao processo de esquecimento da memória de José Lourenço.”(*)

A imprensa, sob a censura do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda, do Governo Vargas), quase nada publicou sobre os massacres, e mesmo as matérias obscuras que instigavam as autoridades contra as comunidades sumiram das redações, apagaram o pouco que haviam escrito sobre essa história, um importante capítulo das lutas populares no Brasil.

À comunidade do Caldeirão faltou um Euclides da Cunha para registrar a covardia, até mais brutal que em Canudos, pois o arraial baiano resistia às ofensivas: o fracasso da primeira expedição militar contra Canudos rendeu aos conselheiristas as armas do contingente que investiu contra a comunidade; o armamento adquirido no primeiro confronto serviu para vencer as tropas das duas expedições seguintes e para lutar bravamente contra a quarta expedição militar, aquela que finalmente destruiu o sonho de milhares de pessoas que insistiam em sobreviver com dignidade.

Esta é apenas uma introdução à história do Caldeirão que o diabo abominou.

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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons



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domingo, 2 de outubro de 2011

GLOBO DERROTA LULA

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Raul Longo

Todo mundo sabe que a primeira vitória da Globo sobre Lula se deu em 1989, quando a emissora elegeu “O Caçador de Marajás”. Então a Globo ganhou, e o Brasil perdeu, tal qual se confirmou dois anos depois.

Dr. Roberto Marinho explicou a uma reportagem da BBC que ele elegeu Fernando Collor de Melo quando quis e o tirou quando quis. Qualquer semelhança com os grandes chefes da Máfia e outras entidades do crime organizado internacional, não é mera coincidência. Apenas questão de estilo.

E, mantendo seu estilo e padrão – o então consagrado Padrão Global –, em 1994 a Globo mais uma vez derrotou Lula, conquistando a Presidência da República através de outro Fernando. O Henrique Cardoso. Daquela vez o Brasil parou a inflação.

Inflação que a própria Globo criou em seus governos anteriores quando, através dos militares, construiu a maior hidroelétrica do mundo para as multinacionais não terem problemas de fornecimento de energia, paga pelo brasileiro através da escalada das tarifas da prestação do serviço. Depois de Itaipú, a Ponte Rio Niterói e a Transamazônica foram as mais portentosas obras das duas décadas de ditadura e uns quantos mortos, desaparecidos e mutilados pelas torturas.

Seria ingratidão não lembrar que teve também uns km de Metrô no Rio e em São Paulo que ainda é considerada como a mais desassistida por este serviço entre as grandes capitais do mundo. Pois, com essas e algumas outras, os governos da Globo durante e pós ditadura militar promoveram uma das maiores inflações do planeta.

Mas é como no dizer do Dr. Roberto: o que a Globo põe a Globo tira. Ou para. E parou a inflação para derrotar Lula pela segunda vez.

Parou a inflação e o país todo. Só não parou o índice de desemprego. Esse não parava de subir.

Mas as máquinas pararam, os salários pararam, a infraestrutura parou. Parou tudo!
Só que, então, o que importava é que a inflação parasse e assim a Globo pode derrotar Lula pela 3ª vez, novamente com o mesmo Fernando, o Henrique Cardoso.

No 1º Fernando com que a Globo ganhou do Lula, o Brasil perdeu. No 2ª Fernando com que a Globo ganhou do Lula, o Brasil parou. E no 3º Fernando com que a Globo ganhou do Lula, o Brasil parou e perdeu ao mesmo tempo.

A praga é dos Fernandos ou da Globo?

Mas é preciso retocar, porque parar, na verdade a partir de 98 o país não parou. Para parar, precisaria estar em movimento. Como já vinha quase parando em anteriores governos da Globo e estancou de vez no 2º Fernando, não é que parou. Apenas continuou parado.

Agora, perder perdeu muito! Nunca, em nenhum dos tantos governos da Globo, desde lá o início da ditadura militar, o Brasil perdeu tanto! E olha que nos governos da Globo, o Brasil foi das nações que mais perdeu pros especuladores internacionais em todo o planeta. Mas na fase FHC da governança da Globo, o país perdeu até as calças!

E não é força de expressão, não! Pra fazer ideia é só lembrar que o chanceler (o mais alto representante de uma nação junto às demais) Celso Lafer teve de se submeter à revista no aeroporto internacional de Nova Iorque e o mandaram tirar os sapatos. E tirou!

Meu! Quando um chanceler de um país tem de tirar os sapatos para pisar num aeroporto tão internacional quanto o de Nova Iorque, cidade sede da Organização das Nações Unidas; é porque o país está mais sem dono do que fiofó de bêbado! Depois dessa não tinha mais o que o Brasil perder.

Pra quem não tem mais o que perder, só resta ganhar, não é mesmo? Pois foi só então, em 2002, que Lula ganhou da Globo. E aí o Brasil ganhou o resgate da dignidade e da imagem internacional.

Começou a ganhar no dia em que o novo Chanceler, o Celso Amorim, bateu o pé e não tirou o sapato. Os americanos ficaram muito brabos e pra se vingar criaram mil empecilhos a todos os brasileiros que passavam por aquele país. Aí não teve dúvida, criou-se empecilho para os cidadãos norte-americanos em nossos aeroportos também. E desde então o Brasil começou a ganhar respeito no mundo.

A Globo não gostou nada disso! Reclamou, esbravejou, rugiu, runhiu e reuniu a cambada toda e se não vai por bem vai por mal. Tentou derrotar Lula a 4ª vez, com o impeachment pelo mensalão do Roberto Jefferson.

Lula peitou, foram pro braço de ferro. De um lado os Marinho e todas as demais famiglias reunidas num esforço de execução e extermínio (racial, segundo Jorge Bornhausen) de fazer inveja a qualquer Al Capone. Do outro, um pernambucano, ex-pau de arara, ex engraxate, ex torneiro mecânico, ex líder sindical e, enfim, Presidente do Brasil inteiro.

Pois não é que o cabeça chata ganhou? Ganhou gente! A Globo pôs general, pôs sócio em transmissão de imagens de TV, pôs playboy, pôs poliglota; e não conseguiu tirar o Lula, perdendo pela segunda vez!

Mas como essa foi uma derrota extra, não oficial, nem vamos contar. Faz de conta que não teve! Até porque o próprio Roberto Jefferson já confessou pro STF que aquela história de mensalão era tudo mentirinha. E já que o impeachment não deu certo, não tem mais sentido ficar discutindo mentira que o próprio mentiroso desmentiu. Vamos ser humanos, compreensivos e nada de tripudiar da Globo.

Inclusive porque até ali, à mentira do mensalão, o Brasil também já tinha ganho um monte com o pagamento da dívida externa. Aliás, só o Brasil não, também os netos de todos os brasileiros que, segundo diziam, já nasceriam devendo. Muita gente não queria nem ter filho para evitar ser avô de caloteiro internacional. Hoje, com a derrota da Globo pro Lula, desse risco já não se corre mais.

No entanto, nem por isso o padrão Global mudou e continuou no mesmo estilo, só que ainda assim em 2006 a Globo perdeu pro Lula outra vez.

E o Brasil ganhou aumento de salário, de oportunidades de emprego, vagas em universidades, abertura política, plena liberdade real de expressão, diminuição de injustiça e de miséria. Virou país importante de economia forte. Saiu dos índices das calamidades e descalabros sociais e entrou no meio das lideranças regionais, hemisféricas e até globais.

Se há aí algum exagero, não é meu, mas sim do Conselho de Davos, na Suíça, que é dos mais, se não o mais conceituado do mundo capitalista. Pois foram eles que deram ao Lula o título de Estadista Global.

Nunca houve disso nem nunca vi nada igual. Presidente do Brasil quando era chamado no exterior era pra prestar conta de dívidas. Todos os presidentes dos governos da Globo que viajaram para o exterior ou iam pra tomar empréstimo ou pra pedir prorrogação de pagamento. De repente o mundo se bota contra a Globo e chama o Lula pra Doutor Honoris disso, Estadista daquilo, Líder de não sei o quê.

Claro que isso foi irritando, dando nervoso, deixando o Merval Pereira, o Arnaldo Jabor, as Meninas do Jô, a Miriam Leitão, o Sardemberg, o hipotético Ali Kamel e muitos outros da Globo e demais famiglias numa situação de péssimo hálito. Principalmente depois da 4ª derrota para Lula, ou melhor: 3ª, se tirar a do mensalão desmentido pelo mentiroso, embora ainda mantido pela Globo e demais mentirosos que nem sendo desmentidos trocam de calças. Fiéis escoteiros, continuam preferindo as curtas.

Mesmo sempre alertas e com bolinha de papel e tudo, continuaram perdendo pro Lula em 2010 e o Brasil ganhou a Dilma Rousseff.

Ninguém mais consegue dormir sossegado e a expectativa é de que os Marinhos tomem alguma atitude.

Pois tomou. Quem assistiu o Jornal Nacional viu que hoje a Globo tomou uma atitude inequívoca! Enfrentou Lula e ganhou mais uma vez.

E bem no dia em que o Lula recebeu uma das mais importantes e raras honrarias do mundo. Pra ter ideia, essa honraria é concedida à mais de um século, mas só 15 personalidades internacionais a mereceram antes do Lula. Não é pouca coisa, e essa a Globo não poderia deixar passar.

Foi lá e deu uma nota rápida dizendo que Lula é o primeiro latino americano a receber o título de Doutor Honoris Causa da Sciences Po de Paris. E pronto! Matou o assunto.
Matou o assunto e já chamou pro grande prêmio que a Globo recebeu pela ocupação do Complexo do Alemão. A chamada criou a expectativa pro próximo bloco e o próximo bloco, inteiro, do noticiário da Globo, foi sobre qual notícia?

A Globo!

Sim! A Globo foi a grande notícia da Globo! Discorreu sobre todos seus prêmios como melhor TV do mundo das TVs, mas no centro da questão de tamanha relevância, a maior obra da Globo nos últimos tempos: a ocupação do Complexo do Alemão.

Quem até hoje pensava que aquela ocupação foi obra do governo do estado do Rio de Janeiro, ou de ação conjunta entre Exército e Polícia com apoio da população do Complexo, hoje viu que não é nada disso. Foi a Globo! A Globo quem ocupou o Complexo do Alemão para vingar a morte de seu primeiro combatente caído nessa guerra. Para vingar o Tim Lopes, a Globo foi lá e fez o que fez e isso de UPP não quer dizer nada, porque o certo mesmo é OG – Organizações Globo.

Agora, se você é um desses que não suporta ver a Globo sair vitoriosa e está mais preocupado com coisas supérfluas, premiozinhos de obá-obá pra promover jogadas de marketing, merchandising, show bussines, coisa e loisa; então deixo aí os agradecimentos do Presidente ao título de Doutro Honoris Causa da tal Sciences Po, mas assim mesmo derrotado no Jornal Nacional de hoje.

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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

PASSO DE JAMA

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(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo”, publicado em 2006)

Urda Alice Klueger

Acordamos na manhã seguinte um pior que o outro, todos se queixando da terrível noite nas garras dos quase 4.000 metros de altitude, além das boas doses de vinho que não tinha sido economizado da adega suspensa. Eu, que não tomara uma gota de vinho, acordei na manhã seguinte com a cabeça para explodir, com o mais puro mau humor, morta de fome, e ainda por cima não consegui descobrir na pousada abarrotada um lugar onde depois me contaram que havia um fraquíssimo café da manhã. Sentia-me tão mal que nem cogitei de subir na garupa do seu Chico – enfiei-me direto no carro de apoio, e se na véspera estivera cheia de cuidados para com o Lobo Solitário, com medo de que despencasse de algum despenhadeiro ou algo assim, nesse dia era ele quem cuidava de mim – a falta de oxigênio me fazia dormir como que desmaiada no banco duro do Land-Rover, e penso que nem vi nossa partida de Susques.

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A manhã do dia 29 de Setembro de 2004 foi bem ruim para todo o mundo. Eu, no carro de apoio, dormia como que desmaiada, e os companheiros motociclistas se ferravam no quase único trecho sem asfalto da estrada inteira, que tinha a extensão de 110 quilômetros.[1] Às oito e meia da manhã atingíamos os 4.600 metros de altitude, e a temperatura era de um grau Centígrado negativo. Houve um momento em que estava todo o mundo literalmente congelando, e todos pararam, e passaram a tentar descongelar suas mãos nos motores aquecidos das motos, mais ou menos em vão. Terezinha estava tão mal que Osmar veio ver se ela não poderia ir por um pouco de tempo no carro de apoio – eu me acordara, e cederia sem problemas o lugar a ela, mas penso que os outros, quando olharam para mim, devem ter se assustado com a minha cara, pois ninguém mais falou em botar a colega geógrafa no carro de apoio. Eu tinha saltado, com as forças que ainda me restavam, e Kako sentou-se por um pouco no banco que eu deixara vazio, com o queixo batendo e as mãos congeladas, apesar de todos estarem usando as mais pesadas roupas de lã por baixo das roupas de couro da Harley-Davidson. Kako estava um caco – arranjei um casaco sobressalente e o cobri naqueles minutos em que estivemos ali parados. Penso que ao menos as mãos dele descongelaram um pouco – sei que não havia o que fazer a não ser seguirmos: não havia abrigo, nem fogueira, nem nada que nos consolasse – ficar ali parado era congelar de vez.

Então seguimos e eu como que desmaiei de novo, e pouco vi da estrada sem asfalto, cheia de pedrinhas soltas e barro pouco compactado, uma quase que assombração para aquelas máquinas poderosas, construídas para outro tipo de estrada. Aqui e ali havia obras que comunicavam que um dia, no futuro, tudo por ali teria asfalto, mas por enquanto era necessário amargar a incompatibilidade da estrada com as Harley, que iam muito devagar, creio que a 30/40 km/h, e que pareciam nunca chegar a lugar algum. Ali já era pleno Deserto do Atacama, mas eu estava tão mal que nem me havia dado conta de tal coisa. Dava-me conta que estávamos nos despedindo da Argentina, e pensava vagamente que aquela longa extensão sem asfalto tinha a sua razão de ser: se logo adiante haveria uma fronteira com o Chile, parecia-me muito lógica aquela estrada ruim: desde criança que acompanhava as muitas broncas entre os dois países na disputa pelo Canal de Beagle, que se situava bem ao sul do continente, e que, por diversas vezes no decorrer da minha vida, tinha feito com que Argentina e Chile andassem em estado de guerra um com o outro. Pensava comigo: “Se um dia eles se pegarem de pau para valer, fica bastante complicado um país invadir o outro, com tal estrada!” Não sei se estava certa com este raciocínio, mas era o que conseguia pensar então e o que ainda fico pensando.

Chegamos, afinal, à fronteira da Argentina. Estava-se a 4.200 metros, mas agora havia um bom sol que aquecia. Havia a Aduana e mais umas outras poucas construções no meio do nada, quase tudo coisa pequena, quase tudo pequenas casinhas de adobe. Os guardas da fronteira eram muito simpáticos, e eu morria de fome – perguntei a eles se em algum lugar poderia comprar algo para comer. Indicaram-me distante casinha de adobe, onde uma índia tinha um pequeno comércio. Enterrando na areia solta as botas de D. Rose, fui até lá, e consegui bolachas, água e um potinho de doce-de-leite. Depois que comi alguma coisa senti-me melhor, e pude conversar um pouquinho com os simpáticos guardas, que me contaram que ficavam ali naquela distância perdida 30 dias de cada vez, que estavam acostumados àquilo, etc. Na verdade, eu estava com uma pena danada de estar indo embora da Argentina, daquele país de gente tão parecida com a nossa, com a qual eu me identifico tanto! Disse isto aos guardas, e eles demonstraram contentamento, e até quero falar mais um pouquinho no assunto.

Eu sou uma brasileira com uma grande paixão pelo Brasil – considero que a melhor parte de uma viagem, por melhor que ela seja, é o momento de chegar de volta ao Brasil. Sempre sinto um grande prazer ao encontrar os americanos dito latinos, e este prazer aumenta quando estou longe, muito longe, principalmente em outros continentes, por exemplo.

Encontrar um americano dito latino é sempre bom demais, não importa muito a sua nacionalidade: mexicanos, guatemaltecos, cubanos, venezuelanos, colombianos, equatorianos, bolivianos, e por aí vai. Encontrar um argentino, no entanto, é encontrar um irmão – ninguém no mundo pensa tão parecido com nosostros, brasileños, quanto os argentinos. Eu acho que um argentino é mais parecido conosco que os próprios portugueses, que falam a mesma língua que nós. Os portugueses, apesar da língua, pensam como europeus. Nós somos americanos, não temos a mesma identidade, a mesma forma de encarar o mundo que os portugueses – mas nossos vizinhos argentinos têm. Não somos iguais, claro – mas somos muito próximos! Aqueles dias de viagem pela Argentina, apesar de ter constatado algumas diferenças das quais ainda não sabia, mais me fez ver as semelhanças – viajar pela Argentina é muito parecido a viajar pelo Brasil: usam-se os mesmos cartões de crédito, as mesmas formas de postos de gasolina, de lanchonetes e restaurantes, tipos parecidos de telefones, de hotéis, enfim, temos muita semelhança mesmo, principalmente quando a gente se dá conta que somos mais ou menos comprados/vendidos pelo Fundo Monetário Internacional, de formas muito parecidas, o que se reflete muito na economia. E se tirarmos o futebol, os dois povos são muito parecidos na comunicação, na simpatia, etc. E se pensarmos mais ainda, vamos ver que somos muito parecidos, inclusive, no futebol – mas isto é outra discussão – melhor nem começa-la aqui, pois ela acirra os ânimo.

Então, estava eu com pena de deixar aquele país tão querido, e os guardas da fronteira entenderam e gostaram disso, e como foram amáveis! Eram meninos com carinhas de índios, e tão simpáticos! Como disse atrás, a temperatura subira e eu me sentia melhor – abandonei o carro de apoio, voltei à garupa do seu Chico, e foi assim que deixei a Argentina, lá naquela fronteira que se chama Passo de Jama.


[1] Um ano depois, quando os meus companheiros harleyros voltaram a passar ali, tal trecho estava totalmente asfaltado. Era inverno e havia muita neve, e os motociclistas só conseguiram passar pelo Passo de Jama porque era o momento da inauguração de tal asfalto, e poderosas máquinas haviam retirado toda a neve de sobre a estrada, para que ali chegassem sem percalços os presidentes da Argentina e do Chile, para a cerimônia de inauguração. (Nota da autora)
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Urda Alice Klueger é escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.

Urda colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz

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terça-feira, 27 de setembro de 2011

Novo Linchamento Judicial nos EEUU

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Carlos A. Lungarzo
Anistia Intenacional - USA - N° 9152711

Em Jackson, no estado de Georgia, no Sul profundo americano, região chamada de Biblia Belt (cinturão da Bíblia), por causa da superstição e o fanatismo místico, e seu profundo e visceral racismo, um afrodescendente de 42 anos, Troy Anthony Davis (1968-2011) foi executado na madrugada da 5ª feira 22 de setembro, com uma injeção letal, no presídio da cidade.

Davis sofreu o sadismo doentio do sistema penal-judicial americano, representado por 20 anos de espera por sua execução, enquanto todas as protestas de milhões de pessoas no planeta, e os sucessivos recursos eram ignorados. Como sempre, o réu é submetido a um último ato de cinismo e crueldade. Em épocas ainda piores que as atuais, os esposos comunistas Julius e Ethel Rosenberg (1953) foram eletrocutados com eletrodos mal grudados, sem o uso do fluído condutor, para que a corrente passasse lentamente, e suas cabeças pegassem fogo quando ainda estavam vivos. Hoje, quando se usa o “humanitário” método da injeção, isso não é possível. Então, os juízes demoraram 4 horas o momento da execução, no intuito de que o prisioneiro se desesperasse. Mas isso não aconteceu.

De maneira calma e corajosa, Troy esperou a morte, olhando nos olhos dos parentes do policial cujo homicídio se lhe atribui sem nenhuma prova, e apenas com testemunhas que acabaram se retratando (7 de 9). Nada que italianos e brasileiros não conheçam. Com o olhar fixo, Troy disse calmamente que ele era inocente, e foi levado à sala onde se lhe aplicou a injeção.

Como os aparatos policiais e militares, especialmente em países violentos, procuram apenas vingança, os “espetadores” que assistiram o morboso espetáculo devem ter pensado que não importava se Troy era culpável ou não. Ele pagaria pelo verdadeiro assassino. Veja.

Troy foi defendido durante anos por Anistia Internacional, e celebridades do mundo todo, incluindo o ex-presidente Carter e o Papa Bento 16, pediram seu indulto. No Brasil, o caso passou despercebido. A continuação, transcrevo o comunicado da Anistia.

Comunicado Anistia Internacional

Segue o texto oficial da Anistia Internacional, que reproduz integramente o documento original de nossa organização. Por falta de tempo, tenho usado a tradução do jornal Expresso, de Portugal, que parece correta. Os grifos e os textos entre [] são meus.

Início do Texto
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EUA executaram Troy Davis
Amnistia Internacional
15:33 Quinta feira, 22 de setembro de 2011

A Amnistia Internacional condenou a decisão das autoridades do Estado da Geórgia de executarem o prisioneiro no corredor da morte, Troy Davis.
Troy Davis, de 42 anos, que se encontrava no corredor da morte desde 1991, foi executado por injeção letal na prisão do Estado da Geórgia em Jackson, no dia 21 de Setembro, apesar das sérias dúvidas em torno da sua condenação.

No mesmo dia, o Irão enforcou publicamente um jovem de 17 anos condenado pelo homicídio de um popular atleta, apesar das proibições internacionais sobre a execução de adolescentes, enquanto a China executou um paquistanês condenado por tráfico de drogas apesar dos crimes de droga não se incluírem nos crimes "mais graves" do direito internacional.

"Este é um dia triste para os direitos humanos em todo o mundo. Ao executarem estes indivíduos, estes países estão a mover-se contra a corrente global da abolição da pena de morte", afirmou Guadalupe Marengo, Vice-diretor da Amnistia Internacional para a América.

"Os países que mantêm a pena de morte defendem muitas vezes a sua posição reivindicando que o uso que fazem da pena de morte é consistente com a legislação de direitos humanos internacional. As suas ações no dia 21 de Setembro contradizem flagrantemente estas reivindicações", afirmou a Vice-diretora.

Os ativistas da Amnistia Internacional fizeram uma extensa campanha contra a pena de morte. Nos últimos dias, foram enviadas, às autoridades da Geórgia, quase um milhão de assinaturas em nome de Troy Davis, apelando para comutarem a sua sentença de morte. Foram realizadas vigias e eventos em aproximadamente 300 locais por todo o mundo.

Troy Davis foi condenado à morte em 1991, pelo homicídio do polícia Mark Allen Macphail em Savannah, no estado da Geórgia. O caso contra Troy Davis baseou-se principalmente em declarações de testemunhas. Desde o seu julgamento em 1991, sete das nove testemunhas chave retiraram ou alteraram o seu testemunho, algumas alegando coerção policial.

O adolescente iraniano Alireza Molla-Soltani foi enforcado na manhã de 21 de Setembro diante de uma multidão na cidade de Karaj. Foi condenado à morte no mês anterior por apunhalar Ruhollah Dadashi, um popular atleta, durante uma disputa na sequência de um acidente de viação a 17 de Julho. O jovem de 17 anos disse que entrou em pânico e apunhalou Ruhollah Dadashi em legítima defesa depois do atleta o atacar num local escuro, de acordo com os relatos dos media locais.

Zahid Husain Shah, detido em 2008 por tráfico de drogas, foi executado na China por injeção letal no dia 21 de Setembro.

No mesmo dia, Lawrence Brewer foi também executado em Huntsville, no Texas. Foi condenado à morte pelo seu papel no homicídio de James Byrd Jr., em Junho de 1998.

A Amnistia Internacional opõe-se à pena de morte em todos os casos, sem exceção.

"A pena de morte é um sintoma de uma cultura de violência e não uma solução", acrescentou Guadalupe Marengo. "Devemos manter a esperança e as execuções angustiantes levadas a cabo no dia 21 de Setembro devem levar os membros da Amnistia Internacional e outros ativistas a quererem continuarem a luta contra a pena de morte".

Para além dos EUA, da China e do Irão, a campanha da Amnistia Internacional para a abolição da pena de morte foca-se na Bielorrússia.
A Amnistia Internacional está a trabalhar com o Centro de Direitos Humanos Viasna, uma Organização Não Governamental, na Bielorrússia [no Brasil conhecida por seu nome em inglês, Belarus], apelando ao Presidente Lukashenko para suspender imediatamente as execuções e comutar as sentenças de todos os indivíduos que se encontram no corredor da morte.

[NOTA minha: Para acessar o site de Viasna, na Belarus, clique no nome desta ONG. O texto está em inglês.]

Desde que o país declarou a independência em 1991, estima-se que 400 pessoas tenham sido executadas na Bielorrússia. Depois de um ano sem execuções, as autoridades bielorrussas executaram dois homens em 2010 e condenaram três pessoas à morte e outros dois homens foram alegadamente executados entre 14 e 19 de Julho de 2011, apesar de não ter havido confirmação oficial das suas mortes. A Bielorrússia é o ultimo país na Europa e na antiga União Soviética que ainda realiza execuções.
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Final do Texto

As nove testemunhas disseram inicialmente que tinham visto Troy atirando no policial, mas, vários anos depois, quando a causa foi julgada em segunda instância, sete deles reconheceram que tinham sido ameaçados e extorquidos pela polícia para declarar contra Davis. Para que o julgamento parecesse normal, o juiz e o promotor escolheram mais de metade de jurados negros, mas estes confessaram depois que, por causa da perseguição racial no Sul americano, e a situação indefensa de afroamericanos pobres, eles votaram pela condenação pois se sentiam incapazes de suportar as ameaças do promotor e dos juízes contra os membros de suas famílias.

Diretos Humanos nos EEUU

Quando se criou o estado americano, composto pelas colônias originais, os “pais da pátria” deixaram claro tanto em seus discursos individuais como na Declaração da Independência, que a nova nação estaria regida por princípios básicos: a crença em Deus (um lema que aparece nas notas de dólar), a supremacia da propriedade privada ilimitada sobre qualquer outro direito, e o privilégio de submeter pelas armas quaisquer outros povos ou etnias. Isto teve sua versão mais explícita na teoria do Destino Manifesto, de 1985, que justificava a agressão americana em qualquer lugar que fosse acessível a suas tropas.

Essa visão totalitária planejada no momento mesmo da criação do estado não possui equivalentes. Outros estados notoriamente racistas, como a África do Sul do apartheid, e o Estado de Israel, desenvolveram seu racismo na medida em que avançavam seus projetos de agressão contra etnias maioritárias (negras e árabes, respectivamente), mas o projeto racista não foi formulado de maneira explícita na fundação desses países.

Além disso, a força econômica e militar dos EEUU tem tornado muito difícil a luta contra a violação dos direitos humanos básicos. A formação de grandes grupos sociais fundamentalistas, a exaltação do colonialismo e do racismo, e a poderosa propaganda de ódio da mídia, mantiveram como únicos direitos humanos o porte de armas e a livre expressão. Embora o segundo seja um direito legítimo, ele foi pensado para combinar os interesses dos magnatas da mídia. Aliás, toda norma jurídica, sem exceção, pode ser violada, como mostra o caso dos prisioneiros de Guantánamo.

Enquanto certos países são estigmatizados por seu terrorismo de estado e a comissão de horríveis genocídios, como Ruanda e Sudão, os EEUU são vistos com normalidade por grande parte da população mundial que não sofreu suas invasões, pois, afinal, são brancos, cristãos e ricos. Além disso, centos de milhões de pessoas possuem negócios, nexos acadêmicos e técnicos e outros tipos de parceria como os americanos.

A citação de Anistia Internacional do terrível crime contra Troy está acompanhada de relatos sobre execuções no Irão, na China e na Belarus, e outro de um americano. Isto não é por acaso. Os EEUU estão no terceiro lugar de terrorismo de estado “legalizado” no planeta. Embora seu exercício da morte e a tortura sejam menores que em alguns países de Ásia e América do Sul, a impunidade que significa criar leis para cometer esses atos coloca grande parte do planeta em risco de sofrer genocídios derivados das invasões americanas e, consequentemente, tortura, como em Abu Ghraib, e execuções, como as que se praticam quase continuamente nos estados do Sul e em alguns outros.

Para algumas sociedades sul-americanas, mergulhadas em problemas só nacionais, a morte de Troy Anthony Davis nem foi percebida. Entretanto, nos países mais organizados do mundo, o fato provocou uma onda de terror e repúdio. Milhares de pessoas se estão organizando contra a pena de morte em todo o planeta. Convém lembrar que o Brasil não tem pena de morte para civis desde a ditadura, mas nunca foi derrogada a infame e paleolítica lei que permite aplicar a pena de morte em caso de Guerra. Talvez, Brasil nunca mais entre em nenhuma guerra, mas, mesmo assim, este privilégio dos militares para decidir sobre as vidas humanas em nome da guerra, é uma mácula terrível para um país que pretende ser civilizado. A Argentina, apesar de sua proclamada política de Direitos Humanos, somente derrogou a pena de morte em caso de Guerra há dois ou três anos.

Tudo isto deve nos fazer refletir sobre a barbárie que ainda vivemos, e começou a ser lentamente combatida desde 1945. O que falta é muito mais do que já se fez. O mais importante é que ONU produza uma convenção contra a Pena de Morte, assim como existe uma convenção contra a tortura.

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Carlos Alberto Lungarzo foi professor titular da UNICAMP até aposentadoria e milita em Anistia Internacional (AI) desde há muitos anos. Fez parte de AI do México, da Argentina e do Brasil, até que esta seção foi desativada. Atualmente é membro da seção dos Estados Unidos (AIUSA). Sua nova matrícula na Organização é de número 2152711.

Carlos A. Lungarzo colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz

Para se comunicar com o autor, escrever a carlos.lungarzo@gmail.com

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domingo, 25 de setembro de 2011

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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Como seria um "apartheid nordestino"?

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Título original: “E se Golias Viesse?” (revisado)

Fernando Soares Campos

Li no site do Observatório da Imprensa nota intitulada "Hamas usa sósia de Mickey em campanha contra Israel ". Militantes do Hamas estariam usando uma réplica do ratinho símbolo da Walt Disney Company "para divulgar mensagens da dominação islâmica (sic) e da resistência armada para o público infantil em um programa da emissora de TV al-Aqsa chamado Pioneiros do Amanhã ". A imitação do Mickey se chama Farfour.

Este foi o trecho da matéria que mais chamou a minha atenção:

"O programa conta também com a participação de crianças, cantando hinos sobre a luta contra Israel – que há muito tempo vem reclamando que os canais palestinos incitam ódio ao povo israelense. David Baker, porta-voz do primeiro-ministro israelense Ehud Olmert, afirmou que `não há nada cômico sobre ensinar novas gerações de palestinos a odiar israelenses´. Mark Regev, porta-voz do ministério do Exterior, acusou os palestinos de não assumir o compromisso de parar de incitar ódio contra Israel. `As crianças aprendem que matar judeus é algo bom´, diz."

A contrapartida

Em 2006 foram amplamente divulgadas na internet fotos de crianças israelenses escrevendo mensagens nos mísseis que seriam lançados contra as posições palestinas no Líbano. Crianças e adolescentes, usando batom e lápis de desenho, aparentemente descontraídas, escreviam mensagens nos petardos e conversavam com os soldados. Ao lado, seus pais acompanhavam a visita ao front, provavelmente orgulhosos de verem seus filhos se instruindo na arte da matar, indiferentes à dor que possam causar.
Baseado naquelas fotos, acredito que qualquer porta-voz do Hamas poderia dizer que ali "as crianças aprendem que matar palestinos é algo bom". Pelo visto, crianças de ambos os lados são vítimas dos senhores do ódio e da intolerância, da ganância e da prepotência.

A globalização do medo

Hoje, o conflito no Oriente Médio é tratado pela grande imprensa brasileira apenas através das notícias frias, relatando as atrocidades, porém geralmente transformando vítimas em culpados. Nota-se que os intelectuais e mesmo artistas, escritores e figuras notórias em geral evitam abordar o assunto em artigos de opinião.

Em 2003, para editar um documentário que estava produzindo para exibição no 3º Fórum Social Mundial, o cineasta-publicitário Kais Ismail solicitou apoio de uma universidade da Grande Porto Alegre, a qual lhe cedeu as instalações e equipamentos de uma ilha de edição. O documentário se intitularia "Palestina em lágrimas". Ao término do trabalho, Kais pediu autorização da universidade para inserir no vídeo um agradecimento à direção da instituição; esta, no entanto, respondeu que colaboraria, mas negou-se a aparecer como colaboradora.

Em 2004, Mohamad, brasileiro-palestino, 22 anos, primo-irmão do Kais Ismail, foi assassinado na Palestina com 30 tiros de M-16 (metralhadora americana), disparadas por sionistas estrangeiros que obedecem às ordens dos comandantes israelenses. Mohamad foi agredido de tal forma que o seu braço esquerdo foi decepado a tiros. Kais foi entrevistado por uma emissora de televisão brasileira. A primeira pergunta do entrevistador foi: "O seu primo era terrorista?", ao que o entrevistado respondeu: "O meu primo, certamente, não era um garoto que corria a varrer as ruas para que os tanques de guerra passassem e arrasassem tudo, pelo contrário, o que ele fazia, era tentar barrar estes tanques e defender sua família, desde criança, atirando pedras."

O publicitário Kais ainda nos informa: "No último programa do Fantástico (Rede Globo) do mês de novembro de 2004, foi exibida uma matéria que, como num passe de mágica, fez com que toda a imprensa não tocasse mais no assunto e curiosamente procurei agora, há pouco, no site do Fantástico a matéria do dia 28.11.2004 e não encontrei nada". Sumiu! Escafedeu-se!

Já imaginou uma "Faixa do Piauí"?

Aqui neste Brasil de todo mundo, a maior miscigenação do Planeta, a gente fica indignado com o que fazem com as populações pobres, que, nos grandes centros urbanos, são empurradas para os morros e alagados, onde se aglomeram em favelas que não oferecem as mínimas condições de habitabilidade. São ambientes insalubres, onde falta de tudo: segurança pública, escolas, postos de saúde, áreas de lazer e até mesmo acesso independente às residências. Também acompanhamos as marchas dos sem-terra, forçando a barra para ocupar latifúndios improdutivos, apesar de formados por terras férteis, com muita água e estradas para o escoamento das produções.

Já ouvi muita gente do povo perguntando sobre a guerra no Oriente Médio, pessoas que dizem não entender como é que se briga tanto por uma terra que, em grande parte, não passa de desertos aparentemente inóspitos. O nosso povo é assim mesmo, está acostumado a "ver" a fartura de terras produtivas em nosso país, mesmo que verdadeiramente concentrada nas mãos de poucos.

Ainda bem que o nosso movimento dos sem-terra e sem-teto não é formado por poderosos fascistas apoiados pelo poder global dos EUA e UE. Imaginemos que esse poder resolvesse fundar em terras brasileiras um estado para algum dos seus povos protegidos. Então, baseados na Carta de Pero Vaz de Caminha, ou mesmo no Tratado de Tordesilhas, reivindicasse, por exemplo, o Nordeste Brasileiro para fazer tal assentamento e fundação do novo estado. A primeira providência, creio, seria criar a "Faixa do Piauí", onde seria concentrado o povo autóctone, romeiro do Padre Cícero e devoto de Frei Damião. Duvidam que isso possa um dia vir a acontecer?! Pois não duvidem! Lá na Palestina tem um povo encurralado vivendo nessas condições.

Como seria o "apartheid nordestino"?

Lá no Oriente Médio a cidade de Belém, sede da Natividade, é hoje uma cidade sitiada e, a mau exemplo da fronteira dos EUA com o México, cercada de muros de oito metros de altura. Aqui, eles cercariam a cidade de Juazeiro do Norte, a "meca nordestina", onde os romeiros reverenciam o Padim Ciço.

Israel instituiu quatro tipos de carteiras de identidade para palestinos: os de Ghazaa não podem sair da Faixa, os da Cisjordânia não podem vir a Jerusalém, os de Israel não podem entrar nos Territórios Palestinos Ocupados e os do Vale do Jordão também não podem sair dessa área para visitar as demais regiões. Nesse caso, o apartheid nordestino seria mais ou menos nos seguintes moldes: cabeça-chata do Sertão não poderia visitar o Agreste nem a Zona da Mata, exceto na época do corte de cana; empregados domésticos em Recife, para se dirigirem ao trabalho, seriam obrigados a usar os velhos túneis que os holandeses construíram durante a ocupação, no século XVII.

Para manter o terror, caças F-16 Fighting Falcon, toda noite, sobrevoariam a "Faixa do Piauí", roncando suas turbinas, lembrando o desfile de tanques do tipo Merkava Mk 3 durante o dia.

Mas quero que todos saibam que nós, nordestinos, somos muito bons no uso de estilingue. E pedra é o que não falta lá no Piauí. Além disso, religioso como nosso povo é, tá assim de Davi no Nordeste!

Pelo sim, pelo não, estão avisados!

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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

FALANDO FRANCAMENTE

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Francisco Miguel de Moura*

Numa ocasião como esta, a tentação é falar de si próprio. Mas seria impertinente falar sobre mim, quando minha apresentadora, Profª Teresinha Queiroz, já disse tudo e de forma muito clara e generosa. Resta-me, portanto, agradecer, e falar sobre a criatura – minha obra – e não sobre o criador. Lembro sempre do que disse Confúcio: – “Não se deve a todo momento ficar falando de si, por dois motivos: é que, se falamos de bem, ninguém vai acreditar, e se falamos de mal, todos acreditarão”.

Entrando no assunto que quero desenvolver, de imediato me vem à lembrança certo dia dos anos 1980, morando em Salvador, quando entrei numa livraria e comecei a olhar os livros, atividade para mim muito prazerosa, mesmo que nada possa ler além do título, autor e orelhas, e mesmo que nada possa comprar daquela vez. E, por simples coincidência, li na lombada de uma pequena brochura, o seguinte título O Menino Perdido, de autor americano, já falecido há muito tempo. Comprei o compêndio, li todos os contos e gostei, mas, por algum mecanismo obscuro da mente, não guardei nem o livro nem o nome do autor. Foi o meu espanto. Senti-me roubado, pois já me fixara naquele título para escrever algo que fosse memória da minha meninice.

Lembro-me também de outro dia, já no começo dos anos 1990, em Luís Correia, depois de um banho na praia de Amarração. Sentindo já o começo de uma intransigente crise de depressão, comecei a reler pedaços de contos, crônicas, capítulos. Saudade e angústia. Vontade de fazer algo distinto do que já havia lido sobre a infância. Era isto que sentia. E começava a refazer alguns bosquejos miúdos, num caderninho escolar, e a partir dali ressurgia o nome de O Menino Perdido como título não definitivo. Começada a escrita, vieram as indecisões. Não encontrara um novo título e isto me contrariava. Era impossível abrigar minha matéria sob esse título e depois publicá-la. Eu já havia escrito uma crônica com o título de Um Menino Perdido, que logo desejaria publicada num livro de crônicas, o que de fato aconteceu em 1996.

Muitos questionamentos foram feitos mentalmente e permaneceram em ebulição na minha cabeça. Era muita a matéria a escrever, e não queria um livro grande, no fundo eu desejava um grande livro. Também nem pensar em fazer coisa parecida com O. G. Rego de Carvalho, em Ulisses entre o Amor e Morte. Não tinha como. Eu sou realmente discípulo de O. G. Rego de Carvalho e muito me orgulho disto. Ele é um dos maiores amigos que fiz na minha vida, em Teresina, só não maior do que o Hardi Filho, poeta dos melhores do Piauí, pessoa com quem primeiro me encontrei em Teresina e, juntamente com Herculano Moraes, fundamos o movimento literário O CLIP – Círculo Literário Piauiense. Com O. G. Rego de Carvalho foi diferente: antes de encontrar-me com ele, como colega do Banco do Brasil, já havia lido Ulisses entre o Amor e a Morte. Foi outro espanto na minha vida. Espanto que se repetiu em Somos Todos Inocentes e em Rio Subterrâneo. Que obras incomparáveis!

Mas quantos escritores, que vieram antes dele e de mim, escreveram a infância (ou sobre a infância)? Lembro-me de alguns: José Lins do Rego, com seu O Menino de Engenho; Graciliano Ramos com o seu livro Infância; Joaquim Nabuco, com o espetacular Minha Formação. Os clássicos russos Dostoiévski e Leon Tolstói fizeram livros sobre sua infância e adolescência, excelentes obras cujos nomes não me vêm à memória. Os clássicos modernos mais à vista seriam O Pequeno Príncipe, de Antoine de Exupéry, e O Menino do Dedo Verde, de Maurice Druon. A enumeração seria enorme e tomaria muito tempo. Não falemos das historinhas da vida comum e das fábulas antigas renovadas que tanto têm sido escritas e publicadas como meio de ganha-pão de escritores desempregados e de editores sem imaginação senão a do vil metal. Claro que o genial Monteiro Lobato não entraria nessa última classificação, antes merece ser o primeiro da boa lista, com Memórias de Emília e Caçadas de Pedrinho, para referir apenas duas da sua numerosa produção.

Não, eu jamais escreveria uma história ou um conto com o fim único de ganhar dinheiro. Ganhar dinheiro é bom, mas vender a consciência é horrível.

Passei mais de 20 anos a elaborar O Menino quase Perdido. Finalmente, sem matar completamente o nome primitivo, encontrara o novo título: com uma palavrinha apenas ganhei originalidade. Daí então passaram a ser pensadas, com mais gosto, as formas de escrever e a escolha do conteúdo de cada uma das suas partes. Ele, O Menino... não é um conto grande, não é somente feito de contos encadeados, não é de crônicas, não é um romance. E é tudo isto. Ou quase tudo. A matéria eu já possuía até demais, não que minha infância tenha sido tão rica, mas foram minha infância, minha família, minha terra, minha vida que me inspiraram para escrever esta obra. Original na forma, dentro do poder de minha inventiva. Escolhendo como escrever e o que escrever. E o que publicar e o que deixar de publicar. Muitas páginas foram rasgadas. O livro é não somente real como pode ser ficção, imaginação de homem adulto sobre o que e como sentia o menino, naquele tempo. Um transporte enorme no tempo, no espaço e nas emoções. Assim se casaram o distanciamento e a intimidade. Quase todos os personagens são parentes: pai, mãe, avós, tios, irmãs, primos, amigos, amigas e namoradas – algumas inventadas.

Mas é preciso que diga: - este livro é da minha mãe, principalmente. Quem não gosta de mãe certamente não vai gostar dele. Assim como para Saramago a pessoa mais sábia que ele conheceu, quando menino, foi o avô, para mim, foi minha mãe, até os 8 anos. Fui educado para emoções duradouras e positivas. Daí por diante, juntar-se-ia a influência de meu pai.

Com relação a sua composição, repito: - Foi todo escrito e reescrito muitas vezes. Não digo que esteja perfeito. Não há perfeição, na espécie humana nem sei se em outras. A perfeição é apenas um ideal a perseguir. E é isto que os bons escritores fazem, por si, para si e pela humanidade.

Creio que estou sendo capaz de dizer pouco sobre a matéria de O Menino quase Perdido, mas o suficiente para saber-se que não se trata de biografia, muito menos de minha biografia. Minha biografia são meus livros, não sou cientista nem personagem da mídia, não sou político para quem tudo o que faz precisa ser dito e mostrado, e mentido e enganado. Sou um homem simples e ao mesmo tempo vaidoso do que faço, do que penso e do que recuso. Se em O Menino quase Perdido isto for achado, então o escritor, o personagem onisciente não pôde ser totalmente isento de imprimir sua marca. Eis minha luta pela originalidade e pela diferença em minha escrita, assim como sou diferente em pessoa, sabendo como o filósofo Schopenhauer, que “o estilo é a fisionomia do espírito” e não da cara.

Para confirmar minhas palavras, é pertinente que cite, mais uma vez Arthur Schopenhauer (1788 – 1860), filósofo dos anos selvagens da filosofia” e autor de “O Mundo como Vontade e Representação”. Escreveu ele: 1º) “Um livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos do autor”; 2º) “Para estabelecer uma avaliação provisória sobre o valor da produção intelectual de um escritor não é necessário saber exatamente sobre o que ou o que ele pensou, pois para tanto seria necessária a leitura de todas as suas obras. A princípio basta saber como ele pensou”.
Pensei “O Menino quase Perdido” como uma obra original sobre a infância, no estilo e na construção, quando qualquer menino é rei, ficando distante o autor onisciente, muito distante do que sentia e sente “o menino”, no íntimo - ambos realmente tornados personagens.

Auguro, pois, que O Menino... seja lido como verdade mista, real e ficcional, coleção de contos, de crônicas, ou mesmo romance, para os leitores mais liberais. Editorialmente é um memorial, assim ficou classificado e registrado. E que cada leitor encontre seu menino de forma diferente, da forma que o próprio leitor foi em criança. Se assim acontecer estarei pago.

Finalizando, repito com o vulgo que “de bons propósitos, o inferno está cheio”. Sim, porque me traí e traí a todos, dizendo, no início, que não iria falar de mim mesmo, porém da obra. Acontece que a obra é o homem. Eu sou a minha obra, jamais um se desligará do outro. Se isto acontecer, ambos são falsos ou hipócritas e é isto que eu não quis nem quero ser.
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*Francisco Miguel de Moura em depoimento lido no lançamento de “O Menino quase Perdido”, na APL – Academia Piauiense de Letras”, em 17-9-2011

Texto enviado pelo autor a título de colaboração para com esta Agência Assaz Atroz
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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Vinte perguntas [e respostas] sobre a Corte de Haia

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Carlos A. Lungarzo

São Paulo, 20/09/2011

Num artigo publicado ontem, Celso Lungaretti chama a atenção sobre o fato de que até a grande imprensa brasileira deve reconhecer as difíceis possibilidades de sucesso do Estado Italiano numa eventual ação na Corte de Justiça da Haia contra o Estado Brasileiro. Este assunto tem grande importância, pois a maioria de nós tivemos conhecimento do funcionamento dessa Corte há apenas algum tempo, quando começou o caso Battisti. Pensei, então, que seria útil dar uma forma tipo “perguntas e respostas” a alguns aspectos básicos sobre este assunto, para esclarecer um pouco a outros leitores (com perdão da pretensão).

1. O que é o Tribunal Internacional de Haia?

O Tribunal ou também Corte Internacional de Justiça de Haia (CIJ) é o principal órgão judicial das Nações Unidas, que começou a funcionar em 1946, na cidade de Haia, Holanda, com o objetivo de resolver conflitos entre estados.

2. Tem algo a ver com o Tribunal Penal Internacional?

Essa confusão é muito frequente. A Corte Penal Internacional está também em Haia, mas foi fundada em 2002, e cuida de ações contra pessoas físicas, em casos de crimes contra humanidade. Ela pode aplicar penas de prisão como um tribunal comum, desde que o país em que se encontra o réu colabore com a Corte.

3. Como funciona a CIJ?

Nos casos contenciosos, a Corte atua por pedido de algum estado e o demandado só pode ser outro estado. O estado demandante apresenta sua queixa, que é estudada pelos juízes. A Corte produz uma espécie de “sentença”, que, teoricamente, tem carácter obrigatório. A força que faz cumprir as decisões da Corte em casos de contenciosos (que seria equivalente à polícia na justiça doméstica) é o Conselho de Segurança da ONU.

A Corte também pode produzir opiniões consultivas, na qual os juízes dão um parecer sobre certos problemas, que em sua maioria são de caráter geral e nem sempre específicos de uma situação concreta, que envolvem as relações entre estados. As opiniões consultivas só podem ser pedidas pela ONU e suas agências, e não são de cumprimento obrigatório, mas constituem pareceres técnicos que podem influir na maneira em que a ONU trata um problema.

4. Hmmm... É muito complicado. Poderia dar um exemplo de cada caso, de um contencioso e de uma opinião consultiva?


CONTENCIOSO: Reclamação da Nicarágua contra os EEUU, por ter invadido seu país com forças militares e paramilitares. Caso: Nicarágua vs. EEUU, 1989, Relatórios da CIJ 14, pp. 158-160. Os EEUU foram condenados e, em vez de acatar, boicotaram o tribunal.

OPINIÃO CONSULTIVA: Opinião de como devem ser interpretadas as condições da Carta da ONU, artigo 4º, para a admissão de novos estados. 28 de maio de 1948.
Como se pode ver, esta opinião consultiva não trata de um assunto litigioso, não é emitida por ação de nenhum estado e só interessa à própria ONU.

5. Alguns magistrados e ex-magistrados, diplomatas, especialistas em relações internacionais, etc., dizem que a resolução de um contencioso demora muito, mas que, no caso Battisti, a CIJ poderia dar uma opinião consultiva, que é rápida. É assim?

As opiniões consultivas demoram muito menos, isso é verdade, mas eu não consigo imaginar o que seria uma opinião consultiva neste caso. Seria dizer à ONU que nenhum estado, no futuro, deve dar refúgio a um escritor de 56 anos cujas iniciais sejam CB?

6. Que tipo de contenciosos trata a CIJ?

Desde sua fundação, predominam os problemas de fronteiras, navegação aérea, uso de águas e recursos minerais, ocupação de territórios por tropas estrangeiras, crimes não tratados pelo Tribunal Penal, exigências de indenizações, conflitos de meio ambiente, como o atual entre a Argentina e o Uruguai.

O primeiro de todos, em 1946, foi uma reclamação britânica contra Albânia, pedindo indenização porque um navio seu foi atingido por minas submarinas. Um caso recente típico foi a construção do muro da Palestina por Israel.

7. Quantas vezes a CIJ tratou, nestes 65 anos de vida, um caso de extradição?

Uma. Bélgica pediu em 2009, que Senegal entregasse Habré, o ex-presidente do Chad por crimes contra a humanidade. O pedido foi derrotado por 13 a 1.

8. Qualquer país pode pedir uma ação contra qualquer outro?

Não. Se um estado quiser demandar outro, ambos devem estar sob a jurisdição da CIJ. Isto se consegue de três maneiras: (1) Pela existência de um acordo preexistente de que ambos reconhecem a CIJ como árbitro. (2) Quando, faltando esse acordo, o estado demandado decide se submeter voluntariamente. (3) Quando, existindo um Tratado Bilateral relativo ao caso em apreço (por exemplo, aqui, é o tratado de extradição Brasil-Itália), esse tratado contém uma cláusula que diz “Qualquer aspecto não definido neste tratado, será submetido à CIJ, etc.”.

9. Em qual dos casos estão o Brasil e a Itália?

Não estão no caso (1) nem no caso (3). O caso (2) depende de que, dentro de certo prazo, o Brasil decida se submeter voluntariamente. Mas, se o Brasil decidisse aceitar isso, teria aceitado, com maior razão, a arbitragem proposta pela Itália segundo a Convenção Fernandes-Forlani. Então, o Brasil e a Itália não estão em nenhuma dessas condições.

10. Mas, então, como a Itália poderá apresentar um requerimento contra o Brasil?

Teoricamente, o pedido da Itália deveria ser arquivado imediatamente após de protocolado. Seria totalmente irregular que a Corte aceitasse analisar, mesmo preliminarmente, esta queixa da Itália, mas, pode existir uma probabilidade ínfima de que, com algum pretexto que não consigo imaginar, seja submetida a consideração.

11. Que acontecerá então?

Como o Brasil não está na mesma jurisdição, o estado brasileiro ignorará a convocatória, como fez com a recente pretensão da Itália de aplicar a Convenção de Fernandes-Fornari.

12. E se o processo começasse, ou seja, se a CIJ desse um jeito para processar o Brasil?

Na situação atual isso não parece possível. Seria como julgar o Brasil à revelia, algo que é moda na Itália, mas não no resto do mundo.

13. Mas, supondo que, por algum motivo, Brasil comparecesse... o que aconteceria?

Não creio que nenhum país se submeta voluntariamente a esse tipo de humilhação, muito menos após o discurso da chefe de Estado na ONU, mas vamos fazer um modelo teórico imaginário.

O plenário da CIJ analisaria o pedido da Itália de obrigar o Brasil a entregar Battisti e decidiria (com estas ou outras palavras, não podemos saber de antemão), que o assunto não viola nenhum direito do demandante, e que a retenção do perseguido foi determinada pelo chefe de estado, aprovada pelo STF no dia 08/06/2011, e que não é um caso de Direito Internacional.

14. Haveria unanimidade para este tipo de decisão?

É impossível saber agora, mas é provável que sim. Países como a Alemanha, que têm também uma política semifascista, praticam hoje um sistema repressivo mais discreto e de menor impacto que a Itália, e nada ganhariam com tornar-se marionetes de um estado mafioso-fascista-stalinista, e, como se isto fosse pouco, ainda corrupto e economicamente falido. O governo conservador francês está tentando que se esqueça a suja atitude de Chirac quando assinou a extradição autorizada pelo Conselho de Estado. Os EEUU e o RU sabem muito bem que Battisti nada tem a ver com terrorismo. Ambos estão preocupados pelo terrorismo real, e não pelos sonhos de vendetta de seus aliados. Mas, na pior das hipóteses, não haveria suficientes votos a favor.

15. Qual seria o fundamento para que a CIJ rejeitasse liminarmente a apreciação deste caso?

Para ser tratado sob o direito internacional, um conflito deve mostrar que o estado demandante possui algum indício de ter sido prejudicado, ou que o caso tem repercussão geral, porque implica algum risco para os princípios básicos da ONU. É claro que uma vingança particular não coloca em risco a paz mundial, nem coisas semelhantes. A perseguição contra Battisti é parecida com a condenação de Salman Rushdie pelo Irão em 1989, uma questão de rancor pessoal que, no caso de Rushdie era teológica, e no caso Battisti, é também mística, mas vinculada a um ressentimento de vendetta.

Além disso, o caráter jurídico da questão está encerrado. Mesmo que o STF cometesse um abuso ao pretender questionar o direito do chefe de estado a decidir em assuntos internacionais (uma intenção que fracassou 5 a 4 em 12/2009), de fato, o tribunal acabou reafirmando o direito que Lula já tinha, como tem qualquer chefe de estado num país “normal”. Finalmente, o abuso ainda mais espantoso de tentar deturpar a decisão final do governo, foi derrotado também em 08/06, por 6 a 3.

O Brasil não sequestrou nenhum cidadão italiano, nem violou os direitos do país. Qualquer juiz que vote a favor deveria reconhecer que a vingança é um direito dos estados e deveria ser respeitado. Mas não imagino nenhum dos juízes atuais capazes de dizer isso. (Há alguns anos, talvez o representante brasileiro teria apoiado esse entendimento, mas não o atual representante, que é especialista em Direitos Humanos).

16. Então, alguns experts em relações internacionais, juristas, políticos, etc., que dizem que Brasil vai perder, estão errados?

Se eu aprendi bem o português, erro significa o mesmo que em espanhol: um desvio involuntário e acidental da verdade, como “erro de cálculo”, “erro de pontaria”, etc. Mas essas opiniões não têm nenhum componente acidental. São bem planejadas e premeditadas, e seus autores devem estar “espiritualmente” gratificados.

17. Suponhamos o impossível: que o Brasil perdesse. Como faria a Itália para que o Brasil obedecesse?

Se a Itália ganhasse, não poderia obter Battisti de volta por vontade do governo. Nenhum governo se submeteria a essa humilhação. Então deveria pedir à CIJ que mobilize sua “polícia” que é o Conselho de Segurança. Suponhamos que (1) a Itália obtivesse a maioria de votos no CS, (2) que, além disso, nenhum membro permanente use seu direito de veto. Então, o CS poderia atuar. O que significa isto?
O Conselho de Segurança para fazer cumprir a ordem em favor da Itália, deveria mandar uma força multinacional para invadir o Brasil e capturar Battisti. Será que alguém leva isto a sério?

18. Como é a composição da CIJ atualmente?

Brasil, com o jurista Cançado Trindade, especialista em Direitos Humanos. Os outros: Japão, Eslováquia, Serra Leoa, Jordânia, Alemanha, França, México, Marrocos, Rússia, Somália, Reino Unido, China, Estados Unidos.

19. Battisti teve seus direitos negados na Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), mas todos os juristas sérios têm certeza de que isso não acontecerá na CIJ. Isso significa que o senso de justiça na CIJ é maior que na CEDH?

Seria um pouco temerário usar palavras grandiosas como “senso de justiça”. As instituições estão ao serviço dos estados e, portanto, das elites que os governam. Deixemos o caráter sagrado da justiça para os teólogos. Entretanto, há diferenças fundamentais entre ambos os casos.

A CEDH rejeita 96% ou mais das petições. Aceita apenas as que são úteis aos governos. Então, não custava nada colocar Battisti nesses 96%. Fora da esquerda francesa, poucos repararam nisso. Na Haia, se houver um julgamento, será algo público e muito acompanhado pela opinião mundial, já que os casos que a CIJ julga são poucos. Qualquer arbitrariedade seria um escândalo.

Além disso, ignorar um pedido justo, como fizeram com Battisti na CEDH, é muito menos violento e escandaloso que aprovar uma condena injusta, que, aliás, prejudicaria o estado brasileiro como pessoa jurídica, e o atual governo. É uma medida que só tomariam em caso extremo... talvez, se o finado bin Laden estivesse no Brasil.

Além disso, percebam que o STF está começando a mudar, e haveria apenas dois ministros para “torcer” pela Itália. Eles eram os donos da Corte brasileira, mas não poderiam influir na justiça internacional.

Finalmente, sem falar de “espírito de justiça”, podemos dizer que os interesses da CIJ são diferentes dos da CEDH. Os tribunais europeus estão interessados em perseguir todo aquele que discorde com o atual modelo que, salvo em alguns países, é antipopular, racista, xenofóbico, conservador, e viciado em perseguição de imigrantes e em refoulement.

Os países reunidos na Haia têm interesses regionais, econômicos e políticos diversos, alguns deles em confronto com os países coloniais. Na Europa, rejeitar um caso de direitos humanos é rotina, pois os governos vivem fazendo isto. Já para a CIJ, aceitar a pretensão da Itália seria tornar-se procurador de uma vingança cuja sede de sangue é difícil de entender fora do círculo fascista-stalinista. O que significa esta história de Battisti para o representante de Serra Leoa ou do Japão? Por que um juiz internacional se meteria em tamanha encrenca e colocaria seu país em tal ridículo??

20. Será que a Itália vai mesmo à Haia?

Essa é uma grande pergunta, mas deveremos esperar o prazo estipulado por Frattini. Não podemos saber antes. A Itália e seus subservientes no Brasil pensam que Roma ainda é a capital do mundo como no século 1º, e que o 95% da humanidade é católica, mas pode haver alguns líderes italianos que saibam que a história mudou por volta de 1400, e que não adiantará muito uma bufonada desse tamanho.

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Carlos Alberto Lungarzo foi professor titular da UNICAMP até aposentadoria e milita em Anistia Internacional (AI) desde há muitos anos. Fez parte de AI do México, da Argentina e do Brasil, até que esta seção foi desativada. Atualmente é membro da seção dos Estados Unidos (AIUSA). Sua nova matrícula na Organização é de número 2152711.

Carlos A, Lungarzo colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz

Para se comunicar com o autor, escrever a carlos.lungarzo@gmail.com

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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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terça-feira, 20 de setembro de 2011

OS ANDES, O SALAR E SUSQUES

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(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo”, publicado em 2006)

Urda Alice Klueger

Fica bastante difícil passar para um texto o que é subir a Cordilheira dos Andes. A grandeza da natureza é tão inexplicável e tão indiscritível ali no Passo de Jama, para onde seguíamos, que penso que sequer um filme pode mostrar o que se sente quando se está naquelas subidas como que ciclópicas, ínfimos insetos que somos diante da grandiosidade da Natureza. Eu aconselho a cada ser humano das Américas a um dia passar por tal experiência, para “sentir” na pele a grandiosidade do seu continente, e de repente, no meio daquelas grandezas infinitas, numa breve descida, vimos lá adiante como que uma imensa planície toda feita de neve, ou de chantili, ou sei lá o que pode ser tão branco. Instintivamente, cada harleyro foi diminuindo a velocidade enquanto a estrada começava a cortar aquela brancura sem mácula, aquela brancura que descobríamos feita de gemas que rebrilhavam ao sol. Um salar! Continuamos rodando até o centro daquele grande círculo, e então paramos todos junto à uma casa bem grande feita inteiramente de barras de sal, com todos os móveis e tudo o que uma casa tem também feito e esculpido em sal, e cercada por aprazíveis áreas para piquenique e esculturas, tudo de sal.

Saltei ali sem querer crer no que os meus olhos viam – fui confirmar lambendo as paredes, as esculturas, as coisas que estavam por ali, para ter certeza de que não vivia uma alucinação. Turistas alemães também estavam ali a fotografar tudo e a tirar fotos com um argentino totalmente índio, que ganhava sua vida ali, a vender pequenas esculturas de sal que fazia. Jamais imaginara estar, um dia, num lugar assim – e como se formara tal lugar? Um dia, lá na aurora dos tempos, quando os continentes se separaram e as placas tectônicas foram se empurrando uma sobre a outra e começaram a formar o que é hoje a Cordilheira dos Andes[1], um mar que existia em algum lugar também foi parar lá em cima, há mais de 3.000 metros de altitude. Tantos milênios ficou aquele mar preso lá no alto das montanhas que toda a sua água acabou se evaporando, e sobrou aquela camada de sal, que mede entre 2,80 m a 3,0 metros, e que pode ser cortada por serras como se fossem grandes pranchões de madeira. Em alguns pontos explora-se a retirada do sal, mas aquilo é como retirar agulhas de palheiros, dano praticamente insignificante àquele oceano de sal petrificado, maravilha das maravilhas, coisa na qual eu acreditava por estar vendo – até já vi coisa parecida na televisão, mas nunca pensara estar a pisar, de verdade, num espetáculo daqueles.

Tivemos, porém, que acabar partindo. Adiante do salar, tanto quanto me lembro, a nossa subida acabara – muito haveria a subir, ainda, em outros dias. Viajávamos, agora, por uma paisagem árida e seca, com pouquíssimos pontos de umidade e minúsculas lagoas, e montanhas altíssimas espalhadas em alguns pontos do horizonte, raiadas de neves brancas, e que provavelmente eram vulcões. Nos pequenos pontos de umidade criava-se alguma coisa verde, musgos ou outras plantas adaptadas àquela secura e àquela altitude, e alguma coisa de fauna sempre deixava as suas marcas, às vezes até gordas lhamas peludas. O interessante eram as montanhas longínquas, prováveis vulcões: já passara o tempo do degelo, que decerto tinha sido muito forte um mês antes, e o que se via eram estrias de gelo, neves eternas em forma de fios que engalanavam tais montanhas como aqueles fios prateados que a gente usa para enfeitar árvores-de-Natal. Dava até para duvidar que aqueles fios brancos fossem mesmo feitos de neve e gelo – havia quem achasse que se tratava de calcáreo. Eu me lembrava de experiências anteriores nos Andes, e não tinha dúvida de que aquilo era gelo, e que aquelas montanhas, lá onde apareciam as estrias de gelo, deviam estar em torno de 5.000 m de altitude. Por onde andávamos, na planície desolada e quase toda seca, deveríamos estar a mais de 3.000 metros de altitude.

A tarde avançava e logo seria noite. Onde dormiríamos? De repente, antes que eu me desse conta, enveredamos para dentro de uma pequenina cidade, bem na hora em as crianças daquele lugar saíam da escola e caminhavam pelas calçadas de adobe da sua cidadezinha de adobe. As crianças pararam, estáticas, respiração suspensa diante daquela invasão de seres extraterrestres no seu pequenino burgo, e até hoje os olhos delas estão bem vivos na minha lembrança, e fico a imaginar que imagem guardaram de nós naquele por-do-sol de fim de setembro, quando a noite chegava rapidamente e eles olhavam para coisas que, talvez nem na sua pequena escola nunca tivesse sido mostrada. Extraterrestres vestidos de preto, em possantes máquinas negras com luzes brancas acesas, seriam pessoas como as outras ou seriam invasores que chegavam àquele lugar esquecido, que sequer nas enciclopédias tenho localizado? Ali era Susques, território argentino, e aquelas crianças de olhos encantados e arregalados eram quase os últimos pequenos argentinos com os quais nos encontraríamos – estávamos nas fímbrias daquele país.

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[1] Procure saber um pouquinho mais sobre Geografia: a Cordilheira dos Andes ainda não está pronta – lá por baixo dela, as placas tectônicas continuam se movimentando e empurrando-a para cima. Recentemente, em 26 de dezembro de 2004, nós que estamos vivos hoje tivemos a oportunidade de ver o que acontece quando as placas tectônicas acabam se movimentando. Falo do terremoto, maremoto e consequentes tsunamis (ondas gigantes) que assolaram o sul da Ásia, tirando ilhas do lugar e mudando alguma coisa no eixo de rotação da terra. Muitas e muitas gerações tinham vivido sem terem a oportunidade de ver tal acontecimento da natureza, e por pior que tenha sido a catástrofe ocorrida, há que pensarmos que fomos privilegiados por podermos observar quase que milagrosamente, através da televisão, a movimentação das placas tectônicas. (Nota da autora) Posteriormente a esta nota, também li uma outra explicação a respeito da formação de um salar daquele tamanho à tal altitude – em resumo, talvez pudesse ser o secamento de um grande lago, como o Titicaca hoje.



Urda Alice Klueger é escritora, histpriadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.

Urda A. Klueger colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz

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