quinta-feira, 5 de abril de 2012

O torturador na vitrine

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Escrito por *Mário Maestri [Foto]
Extraído de “O Nacional”
Enviado por redecastorphoto

O torturador debruçava-se sobre a vítima com objetivos imediatos. Através da destruição física e psicológica, buscava quebrar a vontade do torturado para que denunciasse companheiros; revelasse locais de encontro e reunião; indicasse atos passados e futuros. Exigia que tudo revelasse, a fim de interromper a dor lancinante e o medo à dilaceração irremediável da existência, vivida em extrema solidão.

A tortura durava minutos ou se mantinha por horas, dias e semanas; podia deixar feridas, mais ou menos indeléveis, ou desembocar intencionalmente ou não na morte, sobretudo diante de vontade inquebrantável. Após sevícias inomináveis, Mário Alves morreu de hemorragia interna, empalado em cassetete, por esbirros indignados com o mutismo férreo do baiano.

A tortura possuía objetivo mais ambicioso. Almejava impor o medo aos que resistiam, pensavam em resistir, eram chamados à resistência, simpatizavam com ela ou conheciam sua existência. Todos deviam vigiar atos e passos, para não terminarem diante do torturador. Pais foram torturados diante dos filhos pequenos; jovens foram estupradas por cães; militantes foram dilacerados até a morte, como registro do direito absoluto do torturador. Devido a essa função pedagógica, enquanto a ditadura negava a prática da tortura, permitia-se que seu conhecimento penetrasse e aterrorizasse amplos segmentos da população.

No Brasil, a tortura como arma policial e como instrumento de domínio social foi instituição de Estado. Ela foi introduzida, sustentada, justificada, financiada, apoiada ativamente pelas classes sociais que incentivaram e se locupletaram com o golpe militar: industriais, banqueiros, latifundiários, a grande imprensa, políticos conservadores, oficiais da ativa e retirados, a alta hierarquia da Igreja e da Justiça etc.

Ainda hoje, as instituições judiciárias, legislativas e executivas do Estado desdobram-se para proteger e encobrir os responsáveis e os executores das práticas generalizadas de tortura e execução de prisioneiros políticos, atos que a justiça internacional e o direito dos povos definem como imprescritíveis e necessariamente objetos de punição exemplar.

Em 2010, o Superior Tribunal Federal reafirmou a impunidade daquelas ações criminosas. Em 14 de dezembro de 2011, a maioria dos vereadores porto-alegrenses, inclusive de partidos punidos pela ditadura – PDT, PTB, PPS, PT –, negou, pelo voto, abstenção ou ausência, a rebatizar de Leonel Brizola a atual avenida Castelo Branco – que homenageia o primeiro ditador do regime militar.

Os torturados arrastaram para sempre as feridas recebidas nas carnes e na alma. Amiúde, elas nunca cicatrizaram, sorvendo gota por gota a alegria da vida. Também no Brasil, a taxa de suicídio entre os grandes torturados é estarrecedora, e segue crescendo mesmo décadas após o martírio. Porém, em geral em silêncio, essas vítimas da desumanização promovida pelo Estado carregam orgulhosas a memória de luta empreendida, nas piores condições, por direitos sociais e humanos inarredáveis.

Os torturadores, não. Promovidos em suas carreiras civis e militares e retirados com aposentadorias magníficas, procuram esconder seus atos passados ou diminuir a magnitude e o sentido dos mesmos, quando é impossível negá-los. Sobretudo, mimetizam-se na população comum ou simplesmente recolhem-se para a vida familiar e privada, escondendo-se por de trás das portas aferrolhadas de seus ricos apartamentos e mansões.

Retomando a prática consagrada em países como o Chile e a Argentina, uma garotada corajosa vem se postando diante das residências e locais de trabalho de torturadores em Porto Alegre, Belo Horizonte, Fortaleza, São Paulo. Com carros de som, cartazes, panfletos e muita gritaria, denunciam aos passantes e vizinhos espantados, com farta documentação probatória, que ali se homizia no anonimato gente responsável pelo crime inominável de tortura de prisioneiros e prisioneiras inermes.

Em registro do indiscutível reconhecimento da infâmia de seus atos impunes, os torturadores revelados apenas se esgueiram pelas portas traseiras dos imóveis e residências ou arriscam-se a entrever os denunciantes, escondido por entre as cortinas das janelas, como os ratos que mergulham espavoridos no esgoto, aterrorizados pela luz do dia.

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*Mário Maestri é historiador e professor do curso e do programa de pós-graduação em História da UPF. Foi preso e exilado, quando estudante, durante a ditadura militar. E-mail: maestri@via-rs.net

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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoon

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quarta-feira, 4 de abril de 2012

COISAS DE CUSCO!

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(Excertos do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo", publicado em 2006.)

Urda Alice Klueger*

Vaguei por todo aquele centro de Cusco naquela noite, espiando as vitrines, os simpáticos garçons cusqueños que, de cardápio na mão, ficavam nas calçadas oferendo os pratos finos dos seus restaurantes, como pratos de vicunha, por exemplo – sobre os Andes, se possível, eu só como galinha e porco, para estar certa de não estar comendo nenhum dos seus camelídeos. Acho as lhamas, as alpacas e as vicunhas tão bonitinhas, parecidas com bichinhos de pelúcia, que não quero comê-las – embora também ache tão lindas as vacas e outros animais que como na minha cultura. Diria que é uma questão cultural – embora creia que mais de uma vez já tenha comido aqueles bichinhos lindos e macios, sem saber ao certo o que era, e talvez tenha até gostado. Então dá um certo trabalho comer em Cusco, pois os restaurantes locais se orgulham muito das suas vicunhas e outros pratos à base dos camelídeos.

Fiquei por ali sem pressa, vagando entre os restaurantes e as vitrines cheias de coisas maravilhosas que os Andes produzem, desde objetos e roupas até passeios encantadores, e fiz câmbio, e achei um locutório especialmente simpático, de onde fiquei freguesa em todos os dias em que estivemos lá. Na verdade, os locutórios enxameavam por toda a cidade – penso que só em torno da Praça de Armas havia muitas dezenas – cada cantinho possível escondia um locutório, e eles estavam sempre cheios, tamanho é o afluxo de turistas naquela cidade encantada. Convém contar uma coisa interessante a respeito deles: os computadores, variando de país para país, tem teclados com as letras em lugares diferentes, e a gente demora uns dias para se acostumar com o teclado de cada país. O @, por exemplo é uma tristeza – em cada país ele é obtido de um jeito diferente – digamos que no país Tal seja usando-se o Shift + 8, e no outro seja n + 4, e assim vai. Como tínhamos vindo viajando muito rapidamente, quando eu me acostumava com o @ daquele país, já estávamos a adentrar a outro, e começava um novo aprendizado. Em Cusco, porém, a coisa complicava – devido ao grande fluxo de turistas israelenses sempre por ali, além de o teclado ter as letras e símbolos em lugares diferentes, ainda tinha um pequeno adesivo encobrindo-o, onde estava impresso o sinal correspondente em hebraico, para que os israelenses pudessem entendê-lo. Penso que era a parte mais complicada de Cusco, mas mesmo assim já na primeira noite consegui responder às mensagens que me esperavam, e escrever o diário que mandava para o Brasil.

E fiquei depois a flanar pelo Umbigo do Mundo até me sentir com vontade de voltar ao hotel,o que fiz novamente à pé, apesar dos 3.400 m de altitude. Em Cusco pode-se fazer coisas que nos outros lugares não dá!

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*Urda Alice Klueger: Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.

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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoon

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terça-feira, 3 de abril de 2012

Jovens feridos em protesto no Clube Militar: “Fomos agredidos pela história de uma instituição”

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por Ana Helena Tavares* - em Quem Tem Medo da Democracia?

Eles empunhavam cartazes com rostos. Rostos que não têm corpos.




“Ali, a gente não estava fazendo um carnaval, não estava fazendo palhaçada. Para ver
um cara que foi do regime, que matou, rindo das fotos dos companheiros que foram mortos. E sumiram. Rindo também de gente que estava lá, que tinha sido torturada e que traz cicatrizes no corpo”, desabafa Rodrigo Mondego [Foto], de 27 anos, bacharel em direito, que esteve na quinta-feira, 29 de Março, em frente ao Clube Militar no Rio de Janeiro, protestando contra a comemoração do golpe de 64, promovida no mesmo dia por integrantes do Clube.



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Gustavo Santana - Foto: Ana Helena Tavares

Ele não estava sozinho. Segundo seus cálculos, havia cerca de 700 pessoas. Gustavo Santana, sociólogo, de 28 anos, também estava lá. Ambos dizem ter sido agredidos por PMs. Mondego sofreu ferimentos leves, porém Santana teve o braço quebrado e terá que ser operado. Do Hospital Universitário Pedro Ernesto, onde está internado, ele e Mondego concederam entrevista exclusiva para o site “Quem tem medo da democracia?”.

Processo

Os jovens pensam em processar o Estado pelas agressões dos PMs e o Clube Militar por apologia ao crime: “Para mostrar que alguma coisa tem que ser feita. Porque nós ainda não chegamos ao ideal pretendido pelos que lutaram contra a ditadura e o Estado tem que ser responsabilizado pelas atrocidades cometidas naquele período”, diz Santana, que completa: “O troglodita que me agrediu pode até ter consciência do que fez, mas ele é produto de uma formação militar absolutamente equivocada. E temos que discutir, inclusive, porque a polícia tem que ser militar. Ela pode nos proteger, mas é o contrário. Então, nós não estávamos ali por um ato específico, estávamos por uma série de questões que têm que ser revistas”.

Denúncia

Os dois estão receosos pela vida de um colega, Felipe Garcês (conhecido como “Pato”), de 22 anos, que foi fotografado cuspindo em um militar e está sendo ameaçado de receber represálias. A foto (que pode ser vista clicando aqui) é da Agência Estado e foi publicada na Veja.com, no blog de Reinaldo Azevedo, que chama Garcês de “baderneiro”.

“Signatários da luta”

Tanto Santana como Mondego construíram sua militância política a partir do movimento estudantil. Mondego participou ativamente do grêmio do Colégio Pedro II – Humaitá, do DCE da Faculdade de Direito da UFRJ e, em 2009, foi um dos fundadores da Secretaria de Direitos Humanos da UNE. Santana foi diretor da Secretaria de Igualdade Racial da mesma entidade.

Eles consideram que participar do ato contra a comemoração do golpe foi uma obrigação cidadã: “Nós tínhamos a obrigação de estar ali. Muita gente deu a vida para que nós pudéssemos ter o direito à livre manifestação. E a essas mesmas pessoas foi negado o direito de ter história, porque muitos desapareceram. E acho que nós, como signatários dessa luta, temos que estar na rua para dizer que enquanto essas pessoas não aparecerem a luta ainda não acabou. A luta delas ainda existe e é a nossa luta.”, diz Santana. E pergunta-se: “Como se pode ter democracia com negação de memória?” Mas considera que “a nossa democracia tem sido construída, aos poucos, com distribuição de renda”.

“Disputa de corda com elástico”

Para ele, o Governo Federal está travando uma “disputa de corda com elástico” para conseguir colocar em prática a Comissão da Verdade. “Ao mesmo tempo em que a presidente Dilma sabe da importância dessa causa, ela vive tensionada de todos os lados. Eu não gosto muito desse termo, mas ainda é um governo de disputa. Falta o questionamento da militância. E é preciso que a sociedade pressione para que o governo se veja obrigado a não fazer outra coisa senão instaurar de fato a Comissão e abrir os arquivos. Tem que ter o respaldo da sociedade. O governo não fará nada sem isso.”, assegura Santana.

“Meu braço ficou pendurado”

O jovem sociólogo descreveu a forma como foi agredido na manifestação do dia 29: “Eu estava correndo e tomei uma pancada. Vi quando o PM me bateu e olhei na cara dele. Ele sabe que bateu para me machucar. Fumaça, bomba… Só senti quando meu braço ficou pendurado.”, lembra Santana que conclui: “Vivemos num Estado Democrático de Direito, mas as atrocidades (da PM) são as mesmas.”

Assista a um trecho da entrevista de Gustavo Santana para o QTMD?



E se fosse contra a comemoração do nazismo?

Rodrigo Mondego, o outro jovem agredido, pediu que se faça um exercício imaginativo: “Um ato contra a comemoração do Nazismo em Berlim promovido por ex-combatentes nazistas. Contra a comemoração do Franquismo em Madri promovido por agentes do ditador espanhol Francisco Franco. Contra a defesa do 11 de setembro de 1973 em Santiago promovido pelos seguidores de Pinochet. Tais atos seriam condenados como o ato contra a comemoração de 1964?”, indaga.

Suporte civil

“Até a década de 90 era tabu falar em financiamento americano à ditadura. E agora? Quem ajudou naquele período? Quem deu suporte civil àqueles caras?”, continua indagando Mondego. E afirma: “Se houver mesmo Comissão da Verdade, terá que se falar sobre o apoio que a Globo deu à ditadura, sobre os carros que a Folha emprestou aos torturadores. Enfim, sobre a participação dos empresários da mídia brasileira, que ainda é muito reacionária.”

“Torturando os filhos dos torturados”

Segundo ele, o ato contra a comemoração do golpe de 64 “começou de maneira pacífica, tranquila”. Considera que os militares participantes do evento pró-golpe, mesmo os que não foram torturadores, “estavam lá, por livre e espontânea vontade, festejando um período onde houve estupro de militantes, pau-de-arara, desaparecimentos… O fato de ele estar comemorando aquele golpe faz com que ele esteja torturando hoje os filhos de todo mundo que foi torturado. Está torturando os filhos dos desaparecidos. Está fazendo apologia ao crime”

Ovos comprados na hora

Alguns manifestantes, sentido-se provocados por militares que, contam os entrevistados, “debochavam e faziam gestos obscenos“, resolveram comprar ovos na hora. Mondego estava com alguns na mão, quando ouviu de um senhor ao seu lado: ”Meu filho, me dá a honra de me dar um ovo desses para eu tacar num fascista.’” Ele tinha tido um irmão morto pela ditadura. “Aqueles ovos não davam para acertar em ninguém, tinha muita tropa de choque. Mas era uma questão simbólica. A gente queria tacar ovo na comemoração, não em ninguém específico”, pondera o jovem.

Pistola elétrica com manifestante já caído

Além da agressão que ele próprio sofreu, levando um soco na boca do estômago, Mondego conta ter presenciado a cena de um colega seu da UFRJ caído no chão e recebendo choque com pistola elétrica de PMs. “A organização do evento não foi boa e a polícia foi extremamente irresponsável. Muita gente apanhou. Muito gás lacrimogêneo… Enquanto isso, os militares saíram de fininho pelas escadas do metrô. Teve cuspe, porque provocaram. Mas ninguém os agrediu.”, garante. E completa: “A sensação que ficou é que, como eles nunca foram punidos, se acham no direito de debochar da história do país.”

Assista à parte da entrevista em que Rodrigo Mondego conta como foi o ato



Comissão da Verdade

Mondego tem uma trajetória de luta para levar a discussão sobre a importância da Comissão da Verdade para dentro das universidades. “Temos uma Constituição democrática avançada em vários aspectos, mas estamos aí recebendo punição da OEA, da ONU, por causa Lei de Anistia. Não acredito que vá haver punição, e não queremos espancar os caras nem fazê-los sofrer como os torturados sofreram. É muito mais simbólico. É preciso que a história seja contada”, diz. Rodou o país participando de eventos sobre o tema e lamenta perceber que “no conjunto da sociedade, (este tema) está muito longe de ter espaço.”

Ele cita Nilmário Miranda e Paulo Vannuchi, ambos ex-ministros da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, e a atual titular da pasta, ministra Maria do Rosário, como pessoas que “colocaram o pé na porta”, dentro do governo Federal, e “se posicionaram firmemente a favor da Comissão”.

“A lógica não foi rompida”

Para ele, esse não é um debate que interessa só à esquerda. “Tinham bandeiras vermelhas, socialistas, lá no ato… Mas esse debate é de todos. Porque a violência de ontem reflete hoje. A PM do RJ (matou 1.137 pessoas em 2009) e a de SP (matou 397 pessoas no mesmo ano) matam mais que a polícia dos EUA, que não é referência para nada, matam mais que o Iraque em guerra, que a África do Sul ou que qualquer polícia do mundo… Desaparecia gente antigamente (na ditadura) e continua desaparecendo… Pelas mãos de agentes do Estado…”, diz o bacharel em direito, que embasa sua fala apresentando estatísticas sobre “autos de resistência”, feitas pela ONG internacional Human Rights Watch.

A partir destes dados, Mondego buscou mostrar que sua luta, tanto quanto a de Santana, não é só pelas vítimas da ditadura. E exemplificou com caso recentes: “Lutamos por um cara que morreu e só acharam o corpo bem depois na Baixada Fluminense. Por uma engenheira que desapareceu na Barra da Tijuca e tudo indica que foi morta por policiais, mas ninguém sabe… Lutamos por um senhor, morador do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, que estava lá furando a parede de sua casa, levou um tiro na cara, e a justiça do Estado Democrático de Direito entendeu que o policial não teve culpa. Porque a lógica (da ditadura) não foi rompida no Brasil”, conclui.

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*Ana Helena Tavares é jornalista e mantém o blog Quem Tem Medo da Democracia? Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.
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Leia também...

MILLÔR FERNANDES (1923-2012)

Um escritor “sem estilo”

por Fernando Soares Campos em 03/04/2012, na edição 688

As coisas mudam

Agora vejamos. Não faz tanto tempo assim, textos do Millôr eram aplicados em vestibulares de universidades diversas, principalmente as federais, estaduais e as municipalizadas. Nos cursinhos de pré-vestibular, o Millôr era consagrado. Os pré-vestibulandos queimavam as pestanas lendo textos do “tal” escritor “sem estilo”.

(Clique no título, leia matéria completa no Observatório da Imprensa e, se achar por bem, deixe uma mensagem.)


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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoon

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domingo, 1 de abril de 2012

UM MUSEU PARA NÍSIA: A LÁGRIMA DE UM CAETÉ

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Na última quarta-feira, 28 de março, viajei para o município de Nísia Floresta, localizado a 40 km. de Natal (RN), para assistir a inauguração de um museu. Durante a visita, feita em companhia da precoce animadora cultural potiguar Ana Pereira, comentei a resposta dada pelo índio Cocama, Bernardo Romaina, do Alto Solimões (AM), quando lhe indagaram as razões de guardar uma antiga zarabatana do século XVI.

- Por que os Cocama não jogam fora esse objeto inútil, essa arma imprestável que deixaram de fabricar e nunca mais usarão?

- Para não esquecer! - respondeu de bate-pronto Bernardo Cocama, consciente do valor histórico da arma.

Para não esquecer que um dia ela existiu e foi muito útil. Dessa forma, o último exemplar de uma zarabatana, musealizado no teto da maloca, passou a ser arma de uma outra guerra: a guerra da memória. É com esta guerra que está comprometido o Museu Nísia Floresta. Ele foi criado justamente para não esquecer a escritora e educadora Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, nascida em Papari (RN), a terra do camarão, em outubro de 1810, e falecida em Ruão, França, em abril de 1885.

Quem é essa mulher extraordinária do século XIX, que deu nome ao município onde nasceu? Que saiu do interior do Rio Grande do Norte, para morar em várias cidades do Brasil? Que passou por Portugal, Alemanha, Grécia e Inglaterra e se radicou na Itália e, depois, na França? Que escreveu 12 livros, três deles em francês e um em italiano? Que conviveu com intelectuais europeus, entre eles o filósofo positivista Auguste Comte, com quem manteve intensa correspondência epistolar e a cujo enterro compareceu, acompanhando o cortejo fúnebre?

Pioneira na luta feminista no Brasil e na América Latina, ela brigou pelos direitos da mulheres, dos negros, dos índios, de todos os humilhados. Naquele Brasil monárquico e escravocrata do século XIX, Nísia escandaliza deus e o mundo porque prega o ideal republicano e a abolição da escravidão. Num país extremamente machista, ela escreve livros e artigos para jornais, defendendo a igualdade política dos sexos. Num contexto carregado de preconceito contra os índios, seu poema de 712 versos - A lágrima de um Caeté - denuncia a violência anti-indígena, exaltando ainda a Revolução Praieira, reprimida em Pernambuco.





Nísia deu aulas em Recife, Porto Alegre, Rio de Janeiro, onde fundou e dirigiu um colégio, destacando-se como educadora. No entanto, hoje ela não entra nas escolas, seu nome não figura nos livros didáticos, que abrem suas páginas para exaltar alguns pilantras como se fossem heróis da pátria, mas silenciam sobre a vida e a luta de um personagem como Nísia Floresta. Agora, o museu, em homenagem à sua memória, pretende preservar, coletar e expor objetos, documentação e pesquisas vinculados à história dessa combatente.

Idealizado e desenhado pelo Centro de Documentação e Comunicação Popular, o projeto do Museu concorreu ao edital do Ministério da Cultura e foi selecionado em segundo lugar em todo o Brasil. A concepção expográfica, elaborada e executada pelo museólogo Hélio Oliveira, da Fundação Câmara Cascudo, tem como fio condutor a vida de Nísia Floresta e sua trajetória em defesa dos oprimidos. Fornece também dados sobre a historia do casarão do século XIX, que sofreu reformas no ano passado para adequá-lo como espaço do museu.

Hélio de Oliveira teve uma sacação luminosa, quando concebeu um dos módulos da exposição como o útero materno, a partir de uma imagem de Gaston Bachelard. Se a casa, na visão de Bachelard, ganha um destaque sagrado como extensão do útero materno, é a partir daí que começa a gerar as memórias acumuladas, onde passado e presente se encontram - diz o texto de Hélio.

O museólogo usa ainda um dos principais ícones da cidade - Nossa Senhora do Ó, a padroeira local - para homenagear as mulheres como únicas capazes de gerar outro ser. Constrói um mosaico com fotos de mulheres que se destacaram no cenário brasileiro, nos diversos segmentos, desde a presidente Dilma Rousseff até Ana Rodrigues, líder de uma rebelião em Mossoró, à época do Brasil Império. Mas teve a sensibilidade para incluir fotos de mulheres da região que não ganharam notoriedade, como da diarista Maria de Fátima Almeida, de sua neta Júlia de Oliveira e da jovem Maria Moreno Santos Panela, aluna do 3° ano do ensino fundamental.

No meio de todas as mulheres que constroem o Brasil, surge Nísia Floresta. O Museu traça ainda uma linha do tempo, com uma cronologia onde é possível acompanhar a trajetória de vida e de luta da escritora, que presenciou acontecimentos importantes como a Revolução Farroupilha e a unificação da Itália. Mostra ainda edições dos seus livros, entre os quais Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1833), Conselhos à minha filha (1842), Discurso às suas educandas (1847), A lágrima de um Caeté (1849), Opúsculo humanitário (1853) e A mulher (1859).

Em decorrência de uma pneumonia, Nísia Floresta morreu em Ruão, em 1885 e foi enterrada no cemitério de Bonsecours, na França. Sete décadas depois, em 1954, suas cinzas foram transladadas para o Rio Grande do Norte, depositadas inicialmente na igreja matriz, levadas depois para um túmulo no sítio Floresta, onde nasceu.

Na inauguração do museu estiveram presentes a Secretaria de Estado de Educação do Rio Grande do Norte e a Diretora de Fomento e Difusão do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), Eneida Braga, que representou a ministra da Cultura Ana de Hollanda.

Um conjunto de pessoas contribuíram para que o Museu Nísia Floresta se tornasse realidade, reforçando a definição que os índios Ticuna do Alto Solimões deram da instituição: "Museu é o lugar que serve para guardar nosso futuro" diz Liverino Otávio, enquanto para Orácio Ataíde, "museu é o lugar que segura as coisas do mundo". Que assim seja com o Museu de Nísia Floresta.

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José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (UERJ), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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