(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo", publicado em 2006)
Urda Alice Klueger
Era a primeira vez na minha vida que eu ia ao Chile – e entrar no Chile foi muito engraçado, pois não havia Aduana. Andaríamos 164 km até chegar a ela, o que me fez pensar de novo nas brigas entre os dois países por causa do Canal de Beagle.
A comida, o sol quente e o bom vento fresco em cima da moto acordaram-me de vez, e agora eu tinha forte consciência de que estava, já, no Deserto do Atacama. É muito interessante e muito lindo, tal deserto. É um verdadeiro espetáculo para quem nunca o viu ou o imaginou – eu, pelo menos, tinha na imaginação as imagens do Deserto do Saara, todo de dunas de areia branca, e fui como que indo de surpresa em surpresa Atacama afora. O Deserto do Atacama às vezes é plano, semeado de distantes vulcões; às vezes é feito de suaves ondulações ou colinas; às vezes é todo de altíssimas subidas e descidas de montanhas – e todo ele é um mar de minério, que o deixa com as mais variadas cores, dependendo do que é feito seu solo. Dependendo da região, uma colina é azulada, outra é creme, outra é lilás, outra é roxa – coisa de louco, beleza como que espargida às mão-cheias, e há que se pensar que a última vez que choveu, lá, foi no século XVI – portanto, há quase 500 anos. Algumas partes do Deserto do Atacama estão fora da biosfera, isto é, são tão secas que não permitem nenhuma forma de vida. Não cheguei a ver, mas soube que nessas partes que estão fora da biosfera, os grandes laboratórios [1] internacionais têm seus centros de pesquisa mais perigosos, por uma questão de segurança. Funciona assim: se um laboratório daqueles acabar produzindo um vírus, uma bactéria, ou qualquer forma de vida que possa ser prejudicial à Humanidade, e se, devido a algum acidente, tal forma de vida escapar de controle e fugir do laboratório, não haverá perigo – ela não atingirá a Humanidade, pois morrerá antes de sair daquelas regiões totalmente secas.
Naquele dia, porém, atravessávamos parte ainda não tão seca do deserto, planícies pontilhadas com distantes vulcões de grande altitude, onde se formavam as neves eternas, e, por causa delas, havia períodos de degelo que formavam algumas lagoas ou outros pontos de umidade, e qualquer umidade é sinônimo de vida, e onde há aquele mínimo de água nasce a vegetação característica do deserto, que no caso podiam ser pequeninos arbustos, ou capins, ou musgos – e lá estavam as alpacas, as vicunhas, as lhamas, os zorros[2], e sabe-se lá quantos outros bichinhos que existiam na cadeia alimentar daquele lugar onde a vida parecia quase impossível! E não se via, nem mesmo casinhas de adobe, mas fico pensando que aquelas lhamas e suas primas não estariam ali de graça – em algum momento do ano seu dono haveria de aparecer, nem que fosse para tosquiá-las dos seus pêlos tão quentes!
Uma coisa ótima que acontecera desde que entráramos no Chile: voltaram as boas estradas asfaltadas, bem sinalizadas com uma forma diferente de sinalização, em placas amarelas. A paisagem soberba me entretinha completamente, e quase não dei pelos 164 km que andamos – o que não deve ter demorado mais que hora e meia – quando paramos com grande estardalhaço, enfim, na Aduana chilena! Havia um rigoroso controle para que não passasse por ali nenhuma contaminação da febre aftosa – e já tive que saltar da moto sobre uma imensa esponja cheia de desinfetante, enquanto patrulheiros vinham aspergir desinfetante em todas as rodas da nossa comitiva.
Eram simpáticos, os chilenos! Enquanto preenchíamos nossas fichas de entrada no país e outras coisas, entre elas uma declaração de que nada levávamos de origem animal (por causa da febre aftosa), um deles deu-se conta de que meu estômago não estava lá muito bom, e foi buscar um limão, e cortou-o, e me falou das suas propriedades terapêuticas, e me ensinou a chupá-lo da forma certa para absorver o ácido necessário para melhorar, e era pura gentileza. Fiz as coisas que se fazem em tais ocasiões: contei-lhe da grande amiga chilena que tinha na minha cidade, a artista plástica Paloma, e ele acabou se despedindo de mim com um beijo no rosto. Deduzi que ele andara vendo muitas novelas brasileiras, para ter aprendido aquele tipo de despedida – tanto quanto sei, os chilenos e outros povos não se beijam assim como nós!
Só quando, enfim, fomos liberados pela Aduana, foi que me dei conta que estávamos.... nada mais nada menos que em SÃO PEDRO DE ATACAMA! Gente, isso aí estava muito além dos meus melhores sonhos!
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[1] O Deserto do Atacama é considerado um deserto costeiro, e vamos desdobrar tal informação em outras, mais adiante. É o mais seco do mundo. Eventualmente pode haver uma chuva que possa ser medida, em alguns pontos dele – algo como 1 mm ou mais – a cada 5 ou 20 anos (http://pt.wikipedia.org/wiki/Deserto – consultado em 15.06.2006), ou como saberíamos um pouco mais adiante, na cidade de Tocopilla.
[2] Zorro = raposa (Nota da autora)
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Urda Alice Glueger é escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
Urda colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
PressAA
Urda Alice Klueger
Era a primeira vez na minha vida que eu ia ao Chile – e entrar no Chile foi muito engraçado, pois não havia Aduana. Andaríamos 164 km até chegar a ela, o que me fez pensar de novo nas brigas entre os dois países por causa do Canal de Beagle.
A comida, o sol quente e o bom vento fresco em cima da moto acordaram-me de vez, e agora eu tinha forte consciência de que estava, já, no Deserto do Atacama. É muito interessante e muito lindo, tal deserto. É um verdadeiro espetáculo para quem nunca o viu ou o imaginou – eu, pelo menos, tinha na imaginação as imagens do Deserto do Saara, todo de dunas de areia branca, e fui como que indo de surpresa em surpresa Atacama afora. O Deserto do Atacama às vezes é plano, semeado de distantes vulcões; às vezes é feito de suaves ondulações ou colinas; às vezes é todo de altíssimas subidas e descidas de montanhas – e todo ele é um mar de minério, que o deixa com as mais variadas cores, dependendo do que é feito seu solo. Dependendo da região, uma colina é azulada, outra é creme, outra é lilás, outra é roxa – coisa de louco, beleza como que espargida às mão-cheias, e há que se pensar que a última vez que choveu, lá, foi no século XVI – portanto, há quase 500 anos. Algumas partes do Deserto do Atacama estão fora da biosfera, isto é, são tão secas que não permitem nenhuma forma de vida. Não cheguei a ver, mas soube que nessas partes que estão fora da biosfera, os grandes laboratórios [1] internacionais têm seus centros de pesquisa mais perigosos, por uma questão de segurança. Funciona assim: se um laboratório daqueles acabar produzindo um vírus, uma bactéria, ou qualquer forma de vida que possa ser prejudicial à Humanidade, e se, devido a algum acidente, tal forma de vida escapar de controle e fugir do laboratório, não haverá perigo – ela não atingirá a Humanidade, pois morrerá antes de sair daquelas regiões totalmente secas.
Naquele dia, porém, atravessávamos parte ainda não tão seca do deserto, planícies pontilhadas com distantes vulcões de grande altitude, onde se formavam as neves eternas, e, por causa delas, havia períodos de degelo que formavam algumas lagoas ou outros pontos de umidade, e qualquer umidade é sinônimo de vida, e onde há aquele mínimo de água nasce a vegetação característica do deserto, que no caso podiam ser pequeninos arbustos, ou capins, ou musgos – e lá estavam as alpacas, as vicunhas, as lhamas, os zorros[2], e sabe-se lá quantos outros bichinhos que existiam na cadeia alimentar daquele lugar onde a vida parecia quase impossível! E não se via, nem mesmo casinhas de adobe, mas fico pensando que aquelas lhamas e suas primas não estariam ali de graça – em algum momento do ano seu dono haveria de aparecer, nem que fosse para tosquiá-las dos seus pêlos tão quentes!
Uma coisa ótima que acontecera desde que entráramos no Chile: voltaram as boas estradas asfaltadas, bem sinalizadas com uma forma diferente de sinalização, em placas amarelas. A paisagem soberba me entretinha completamente, e quase não dei pelos 164 km que andamos – o que não deve ter demorado mais que hora e meia – quando paramos com grande estardalhaço, enfim, na Aduana chilena! Havia um rigoroso controle para que não passasse por ali nenhuma contaminação da febre aftosa – e já tive que saltar da moto sobre uma imensa esponja cheia de desinfetante, enquanto patrulheiros vinham aspergir desinfetante em todas as rodas da nossa comitiva.
Eram simpáticos, os chilenos! Enquanto preenchíamos nossas fichas de entrada no país e outras coisas, entre elas uma declaração de que nada levávamos de origem animal (por causa da febre aftosa), um deles deu-se conta de que meu estômago não estava lá muito bom, e foi buscar um limão, e cortou-o, e me falou das suas propriedades terapêuticas, e me ensinou a chupá-lo da forma certa para absorver o ácido necessário para melhorar, e era pura gentileza. Fiz as coisas que se fazem em tais ocasiões: contei-lhe da grande amiga chilena que tinha na minha cidade, a artista plástica Paloma, e ele acabou se despedindo de mim com um beijo no rosto. Deduzi que ele andara vendo muitas novelas brasileiras, para ter aprendido aquele tipo de despedida – tanto quanto sei, os chilenos e outros povos não se beijam assim como nós!
Só quando, enfim, fomos liberados pela Aduana, foi que me dei conta que estávamos.... nada mais nada menos que em SÃO PEDRO DE ATACAMA! Gente, isso aí estava muito além dos meus melhores sonhos!
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[1] O Deserto do Atacama é considerado um deserto costeiro, e vamos desdobrar tal informação em outras, mais adiante. É o mais seco do mundo. Eventualmente pode haver uma chuva que possa ser medida, em alguns pontos dele – algo como 1 mm ou mais – a cada 5 ou 20 anos (http://pt.wikipedia.org/wiki/Deserto – consultado em 15.06.2006), ou como saberíamos um pouco mais adiante, na cidade de Tocopilla.
[2] Zorro = raposa (Nota da autora)
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Urda Alice Glueger é escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
Urda colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
PressAA
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