segunda-feira, 5 de março de 2018

Crônicas da minha aldeia

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Crônicas da minha aldeia

por Fernando Soares Campos

"Fale de sua aldeia e estará falando do mundo" - Leon Tolstói

O próprio Tolstói também disse: “Quando as pessoas falam de forma muito elaborada e sofisticada, ou querem contar uma mentira ou querem admirar a si mesmas. Ninguém deve acreditar em tais pessoas. A fala boa é sempre clara, inteligente e compreendida por todos.” 

As histórias de batalhas e guerras, assim como as da política, das sociedades, das religiões, das revoluções, das civilizações, enfim, as histórias da humanidade, contadas pelos vencedores, têm quase sempre um falso brilho, em que se entremeiam ações supostamente heroicas com um aspirado moral superior e pretendida moral alicerçada em consagrados princípios éticos. Geralmente são redigidas de forma pretensamente "sofisticada", em linguagem rebuscada e até mesmo com argumentos inconclusivos, privando o leitor de uma clara compreensão, e este, por sua vez, costuma interpretar os textos sob suas ideologias e valores, num faz-de-conta que entendeu.

Porém, lendo o livro de crônicas "Santana: vivendo e contando histórias", do Dr. José Avelar Alécio, pediatra, com especialização em Saúde Pública, Medicina da Família e Homeopatia, lançado ano passado pelo SWA Instituto Educacional Ltda., reconhecemos, nas considerações de Tolstói, uma completa identificação com os escritos do autor, que se dedica a traçar alguns quadros históricos de nossa "aldeia", a cidade de Santana do Ipanema, localizada no Médio Sertão de Alagoas. Avelar o faz de forma "clara, inteligente e compreendida por todos", como bem recomenda o escritor russo.

"Fale de sua aldeia e estará falando do mundo", leia as crônicas de José Avelar e estará lendo histórias do comportamento humano em qualquer parte do Planeta. Com uma grande diferença em relação aos historiadores oficiais: Avelar não tem o objetivo de elevar personalidades à condição de heróis, "com um aspirado moral superior e pretendida moral alicerçada em consagrados princípios éticos". Entretanto ele reconhece naturalmente as contribuições de muitos santanenses para o progresso da cidade, nos âmbitos educacional, cultural, empresarial e, acima de tudo, moral, com exemplos de empreendedorismo social e luta reivindicatória. 

Os textos do médico-escritor José Avelar despertam o leitor... melhor, conduz o leitor para além da mera curiosidade. Pessoas como eu, nascidos e criados naquela cidade, testemunhas de muitos dos casos contatados no livro, em determinados momentos ficamos absortos, interrompemos a leitura e meditamos sobre nosso próprio papel na sociedade, seja na condição de pai, filho, amigo, estudante, trabalhador ou, como a maioria dos meus amigos, retirantes, ausentes, saudosos, aventureiros, dispersos pelo mundo afora.

No primeiro capítulo, intitulado "Santana dos anos sessenta e setenta", me detive na crônica "Os Cinemas de Santana". Tivemos três cinemas na cidade: O Cine Glória (o mais antigo), o Alvorada e o Cine Vanger. O primeiro ficava próximo à minha casa, no bairro do Monumento, o segundo, no centro da cidade, e o terceiro no bairro da Camoxinga. 

Avelar lembra que "O sinal sonoro que antecedia o início da sessão era aguardado por todos". Chamávamos de "prefixo". No Cine Glória tal prefixo era executado ao som de "Tema de Lara", um dos primeiros filmes exibidos ali, quando o cinema passou da propriedade de seu Domingos, para seu Tibúrcio Soares. Este foi o mais maravilhoso de todos os donos de cinema da cidade: bastava iniciar a sessão, cinema semi-lotado, a gente, guris na faixa de 10 a 12 anos, se esticava na bilheteria e pedia para entrar de graça. Ele nunca negava: fazia sinal para o porteiro e mandava entrar um por um. Em casa, geralmente a gente só recebia "verba" para uma sessão semanal; na maioria das vezes, para a matinê dos domingos.

Lembro-me de ter ido assistir a alguns filmes em companhia de minha mãe, mas o que mais me marcou foi "Diana, a caçadora". Em determinado momento, quando eu já estava ficando excitado com a imagem de uma mulher nua na tela (a atriz posando para um escultor), minha mãe estendeu o braço e tapou minha vista com a mão. 

Depois de pesquisa sobre esse filme no Google, encontrei o seguinte texto : "É sintomático que o primeiro artigo de Drummond tenha sido sobre um filme — Diana, a caçadora — em que discute a questão da moral no cinema, pois essa Diana aparece totalmente nua, tendo provocado severos protestos, tanto de jovens quanto de velhos, no Cinema Pathé, de Belo Horizonte". 

O moderníssimo Cine Alvorada, tela panorâmica, produções em CinemaScope, o fino do fino. Um empreendimento do generoso Tibúrcio Soares. Avelar lembra que nas paredes da sala de exibição existiam pinturas modernas retratando aspectos regionais. O pintor foi meu amigo e vizinho José Lima, Zezinho de dona Maria Ourives, irmão de Alberto "Benga", uma família de artistas.

Finalmente o Cine Vanger. Este não tinha lá uma boa reputação, pois funcionava numa garagem e apelava para exibições de filmes pornôs importados, os chamados "suecos". Acredito que, por isso mesmo, Avelar, que morava nas proximidades daquele cinema, deixa bem claro: "Nunca assisti a filme no Cine Vanger" (risos).

"Santana: vivendo e contando histórias", um livro de crônicas para santanenses ou qualquer outro habitante do Planeta, pois, segundo Leon Tolstói, "Fale de sua aldeia e estará falando do mundo".

Obrigado, Avelar, pela belíssima e importante obra.

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