.
(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo”, publicado em 2006)
Urda Alice Klueger
Acordamos na manhã seguinte um pior que o outro, todos se queixando da terrível noite nas garras dos quase 4.000 metros de altitude, além das boas doses de vinho que não tinha sido economizado da adega suspensa. Eu, que não tomara uma gota de vinho, acordei na manhã seguinte com a cabeça para explodir, com o mais puro mau humor, morta de fome, e ainda por cima não consegui descobrir na pousada abarrotada um lugar onde depois me contaram que havia um fraquíssimo café da manhã. Sentia-me tão mal que nem cogitei de subir na garupa do seu Chico – enfiei-me direto no carro de apoio, e se na véspera estivera cheia de cuidados para com o Lobo Solitário, com medo de que despencasse de algum despenhadeiro ou algo assim, nesse dia era ele quem cuidava de mim – a falta de oxigênio me fazia dormir como que desmaiada no banco duro do Land-Rover, e penso que nem vi nossa partida de Susques.
xxxxxxxxxxxxxxxxx
A manhã do dia 29 de Setembro de 2004 foi bem ruim para todo o mundo. Eu, no carro de apoio, dormia como que desmaiada, e os companheiros motociclistas se ferravam no quase único trecho sem asfalto da estrada inteira, que tinha a extensão de 110 quilômetros.[1] Às oito e meia da manhã atingíamos os 4.600 metros de altitude, e a temperatura era de um grau Centígrado negativo. Houve um momento em que estava todo o mundo literalmente congelando, e todos pararam, e passaram a tentar descongelar suas mãos nos motores aquecidos das motos, mais ou menos em vão. Terezinha estava tão mal que Osmar veio ver se ela não poderia ir por um pouco de tempo no carro de apoio – eu me acordara, e cederia sem problemas o lugar a ela, mas penso que os outros, quando olharam para mim, devem ter se assustado com a minha cara, pois ninguém mais falou em botar a colega geógrafa no carro de apoio. Eu tinha saltado, com as forças que ainda me restavam, e Kako sentou-se por um pouco no banco que eu deixara vazio, com o queixo batendo e as mãos congeladas, apesar de todos estarem usando as mais pesadas roupas de lã por baixo das roupas de couro da Harley-Davidson. Kako estava um caco – arranjei um casaco sobressalente e o cobri naqueles minutos em que estivemos ali parados. Penso que ao menos as mãos dele descongelaram um pouco – sei que não havia o que fazer a não ser seguirmos: não havia abrigo, nem fogueira, nem nada que nos consolasse – ficar ali parado era congelar de vez.
Então seguimos e eu como que desmaiei de novo, e pouco vi da estrada sem asfalto, cheia de pedrinhas soltas e barro pouco compactado, uma quase que assombração para aquelas máquinas poderosas, construídas para outro tipo de estrada. Aqui e ali havia obras que comunicavam que um dia, no futuro, tudo por ali teria asfalto, mas por enquanto era necessário amargar a incompatibilidade da estrada com as Harley, que iam muito devagar, creio que a 30/40 km/h, e que pareciam nunca chegar a lugar algum. Ali já era pleno Deserto do Atacama, mas eu estava tão mal que nem me havia dado conta de tal coisa. Dava-me conta que estávamos nos despedindo da Argentina, e pensava vagamente que aquela longa extensão sem asfalto tinha a sua razão de ser: se logo adiante haveria uma fronteira com o Chile, parecia-me muito lógica aquela estrada ruim: desde criança que acompanhava as muitas broncas entre os dois países na disputa pelo Canal de Beagle, que se situava bem ao sul do continente, e que, por diversas vezes no decorrer da minha vida, tinha feito com que Argentina e Chile andassem em estado de guerra um com o outro. Pensava comigo: “Se um dia eles se pegarem de pau para valer, fica bastante complicado um país invadir o outro, com tal estrada!” Não sei se estava certa com este raciocínio, mas era o que conseguia pensar então e o que ainda fico pensando.
Chegamos, afinal, à fronteira da Argentina. Estava-se a 4.200 metros, mas agora havia um bom sol que aquecia. Havia a Aduana e mais umas outras poucas construções no meio do nada, quase tudo coisa pequena, quase tudo pequenas casinhas de adobe. Os guardas da fronteira eram muito simpáticos, e eu morria de fome – perguntei a eles se em algum lugar poderia comprar algo para comer. Indicaram-me distante casinha de adobe, onde uma índia tinha um pequeno comércio. Enterrando na areia solta as botas de D. Rose, fui até lá, e consegui bolachas, água e um potinho de doce-de-leite. Depois que comi alguma coisa senti-me melhor, e pude conversar um pouquinho com os simpáticos guardas, que me contaram que ficavam ali naquela distância perdida 30 dias de cada vez, que estavam acostumados àquilo, etc. Na verdade, eu estava com uma pena danada de estar indo embora da Argentina, daquele país de gente tão parecida com a nossa, com a qual eu me identifico tanto! Disse isto aos guardas, e eles demonstraram contentamento, e até quero falar mais um pouquinho no assunto.
Eu sou uma brasileira com uma grande paixão pelo Brasil – considero que a melhor parte de uma viagem, por melhor que ela seja, é o momento de chegar de volta ao Brasil. Sempre sinto um grande prazer ao encontrar os americanos dito latinos, e este prazer aumenta quando estou longe, muito longe, principalmente em outros continentes, por exemplo.
Encontrar um americano dito latino é sempre bom demais, não importa muito a sua nacionalidade: mexicanos, guatemaltecos, cubanos, venezuelanos, colombianos, equatorianos, bolivianos, e por aí vai. Encontrar um argentino, no entanto, é encontrar um irmão – ninguém no mundo pensa tão parecido com nosostros, brasileños, quanto os argentinos. Eu acho que um argentino é mais parecido conosco que os próprios portugueses, que falam a mesma língua que nós. Os portugueses, apesar da língua, pensam como europeus. Nós somos americanos, não temos a mesma identidade, a mesma forma de encarar o mundo que os portugueses – mas nossos vizinhos argentinos têm. Não somos iguais, claro – mas somos muito próximos! Aqueles dias de viagem pela Argentina, apesar de ter constatado algumas diferenças das quais ainda não sabia, mais me fez ver as semelhanças – viajar pela Argentina é muito parecido a viajar pelo Brasil: usam-se os mesmos cartões de crédito, as mesmas formas de postos de gasolina, de lanchonetes e restaurantes, tipos parecidos de telefones, de hotéis, enfim, temos muita semelhança mesmo, principalmente quando a gente se dá conta que somos mais ou menos comprados/vendidos pelo Fundo Monetário Internacional, de formas muito parecidas, o que se reflete muito na economia. E se tirarmos o futebol, os dois povos são muito parecidos na comunicação, na simpatia, etc. E se pensarmos mais ainda, vamos ver que somos muito parecidos, inclusive, no futebol – mas isto é outra discussão – melhor nem começa-la aqui, pois ela acirra os ânimo.
Então, estava eu com pena de deixar aquele país tão querido, e os guardas da fronteira entenderam e gostaram disso, e como foram amáveis! Eram meninos com carinhas de índios, e tão simpáticos! Como disse atrás, a temperatura subira e eu me sentia melhor – abandonei o carro de apoio, voltei à garupa do seu Chico, e foi assim que deixei a Argentina, lá naquela fronteira que se chama Passo de Jama.
[1] Um ano depois, quando os meus companheiros harleyros voltaram a passar ali, tal trecho estava totalmente asfaltado. Era inverno e havia muita neve, e os motociclistas só conseguiram passar pelo Passo de Jama porque era o momento da inauguração de tal asfalto, e poderosas máquinas haviam retirado toda a neve de sobre a estrada, para que ali chegassem sem percalços os presidentes da Argentina e do Chile, para a cerimônia de inauguração. (Nota da autora)
_______________________________________
Urda Alice Klueger é escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.
Urda colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
_________________________________________
Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons
PressAA
Nenhum comentário:
Postar um comentário