quarta-feira, 14 de setembro de 2011

COMEÇANDO A SUBIR OS ANDES

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(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo de mundo", publicado em 2006)

Urda Alice Klueger

Conforme o combinado, saímos ao meio-dia, com grande aparato, fazendo sensação pelas ruas de Salta. Era 28 de Setembro de 2004, terça-feira e até ali já andáramos 2.250 km em três dias de estrada.

Salta despediu-se de nós dando-nos de presente uma estradinha de sonho para irmos embora, coisa quase que de brinquedo de tão linda, numa paisagem tão cheia de fertilidade da qual não seria possível esquecer, tendo em vista a grande aridez na qual penetraríamos ainda naquele dia, e que perduraria por muitos e muitos dias daí para a frente. Na verdade, a sensação que eu tinha era de estar a desfilar por alguma mágica estradinha do fértil Vale do Itajaí, apesar de estradinhas assim, no Vale do Itajaí, não costumarem ser asfaltadas. Aquela fita de asfalto subia, descia e se contorcia no meio da mais verdejante paisagem de colinas, com algumas represas d’água em algum ponto, e era tão encantadora que se tinha a impressão que se estava a flutuar pelo paraíso terrestre. Não sei o nome daquele lugar, mas olhando no mapa, vejo que viajávamos por uma estradinha paralela à que levava a Jujuy. Ela não durou muito, no entanto. Uma ou duas horas depois paramos para abastecimento, e então eu disse para o seu Chico que na parte seguinte eu iria no carro de apoio para dar uma força para o Lobo Solitário. IRÍAMOS COMEÇAR A SUBIR OS ANDES, e o Lobo subia os Andes pela primeira vez. Como eu já sofrera outras vezes dos males das alturas, dava-me um medo danado de que o Lobo passasse mal, e se deixasse cair, com toda a parafernália que conduzia, em algum abismo que sequer estávamos a imaginar. Então, naquela parada, comprei um bocado de chocolate e um litrão d`água, e aboletei-me junto ao APHD Lobo Solitário. E dali para frente a subida começou.

Primeiro, fiquei a falar para o Lobo da necessidade de respirar fundo e muito, e fiquei com ele treinando respiração. Quando a estrada começou a subir para valer, respirávamos juntos, eu mantinha sempre uma conversa acesa, ficava enfiando chocolate para o Lobo comer e lhe passava a todo instante a garrafona de água. Também conforme a estrada começou a subir para valer, a aridez foi chegando, sumindo-se praticamente quase que todo o resquício de vida. Parecia estarmos a penetrar num mundo só de montanhas feitas de seixos secos e quase tão inacreditáveis, na sua secura, quanto uma paisagem lunar. Alguém, em alguma época, usara tratores e gente, por ali, e abrira na encosta das montanhas carreiros largos que agora estavam asfaltados, e quase não dava para imaginar como é que um engenheiro pudera pensar em construir tais estradas. Ficamos, eu e Lobo Solitário, imaginando que aqueles caminhos agora de asfalto algum dia teriam sido abertos pelos pés dos antigos habitantes da América, pois que eu sabia que antes, muito antes dos espanhóis, os antigos povos originários do Brasil haviam ido para cá e para lá, e lembrava-me de Aleixo Garcia[1], o primeiro europeu a ficar morando em Santa Catarina, e que na década de 1520 fora à pé, com os indígenas de São Francisco do Sul/SC, até o mundo Inca, isto é, fora o primeiro europeu a conhecer o mundo Inca, antes de Pizarro. Aconselho a leitura do livro citado abaixo. E lembrava-me também do Caminho do Peabiru, caminho que sai do Atlântico, na região de Barra Velha/SC, e que ainda pode ser visto na região de São Bento do Sul/SC, e que, se conectando com outros caminhos muitíssimo antigos, leva ao que foi o antigo Mundo Inca e ao Oceano Pacífico. Decerto os pés que haviam aberto tais caminhos também haviam aberto aqueles pelos quais passávamos, apenas um dia melhorados por engenheiros modernos. Havia que se lembrar, também, que decerto fora por ali que o espanhol invasor atingira tão rapidamente o coração do continente, e a paisagem era tão soberba, e nossas reflexões tão cheias de indagações, e eu fazia o Lobo Solitário engolir tanto chocolate e tanta água, que penso que ele não teria a menor chance de pegar no sono. Num ou noutro ponto da encosta de alguma montanha, de repente, via-se alguma coisa verde: era o aproveitamento de alguma umidade que ali ficara provinda do degelo da primavera, e onde nasceram alguns cactos, ou alguma outra planta desconhecida, e ao redor daquela mínima umidade a vida se instalara, e ali no meio sempre havia uma casinha feita de seixos, quase invisível por ser da mesma cor que a paisagem em torno, e duas lhamas junto à porta, e algum homem muito queimado de sol e todo envolvido em roupas de lã espiaria para fora para afirmar que aquilo ali era um lar.

Era uma paisagem de deixar qualquer um pasmo, e houve um momento cheio de emoção, quando, dirigindo ao redor de um quase inacreditável precipício, centenas e centenas de metros abaixo, com voz embargada diante do espetáculo da natureza, o Nilo Lobo Solitário falou:

Um dia eu ainda vou trazer a minha mulher aqui! – e na voz daquele Lobo corajoso, a subir os Andes arrastando atrás de si toda aquela parafernália dos harleyros, estava implícita tal quantidade de emoção e carinho pela companheira da sua vida, que eu estou emocionada até agora.

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[1] BOND, Rosana. A saga de Aleixo Garcia: o descobridor do Império Inca. Florianópolis: Insular, 1988.

Urda Alice Klueger é escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.

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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

Pressaa

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