sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Para que lado sopra o futuro?

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Urariano Mota

Era bom uma rosa-dos-ventos que nos socorresse agora. Perguntar “para que lado sopra o futuro?” não é fazer uma pergunta vã, abstrata. Ela quer apenas dizer, apenas (entendam a nossa inquietação), qual será mesmo o nosso destino em anos que ainda não vivemos? Ou mesmo: como serão inscritos os nossos futuros dias nos dias de toda a gente?

Houve um tempo em que o socialismo era o destino infalível, uma poderosa força da natureza, o destino último e de redenção de todos os povos. Tão forte era esse destino, e tão determinado e inescapável o seu realizar, que alguns de nós chegamos a pensar que o capitalismo cairia de podre. Outros, mais artísticos, julgávamos que a nova humanidade viria como uma metamorfose natural, da crisálida morta para a borboleta rubra. Esse futuro passou. Houve um tempo em que o futuro era a paz idílica, sentimental, onde todas as feras passeariam ao lado de mansas ovelhas, em concórdia. Esse futuro é passado. Houve um tempo em que o amor era a resposta certa e fraterna a todas vilezas do homem. Mais que uma resposta, o amor era a solução, a insígnia, a bandeira contra todos os canalhas humanos, muito humanos, demasiadamente humanos. Esse futuro é pretérito. Houve um tempo em que a simples visão da flor, da orquídea, da cornucópia de pétalas nos jardins, deixava prenhe o peito de um sentimento bom, de alegria, de felicidade, a ponto de suavizar o semblante, de amolecer os músculos, de fazer úmidos os olhos. Esse futuro é perfeito passado. Houve um tempo em que a fé e a crença nas palavras, no seu poder de fogo, na sarça que ardia como nos dez mandamentos, sintetizados neste impositivo supremo, homem, fala a verdade, só a verdade, nada mais que a verdade, homem, fala, que o céu será teu, o céu e toda a riqueza do mundo, fala. Nesse tempo a palavra e a poesia eram Deus acima de todas as coisas. Corpo e alma onipotentes, supremo do supremo do supremo. (Esse futuro é mais que perfeito passado.) O futuro de coisas extraordinárias, imarcescíveis, murchou. O maravilhoso rascunho, bosquejo de possibilidades elevadas ao sonho, é pretérito. Então, que futuro nos resta? Que impossíveis paraísos são possíveis? Pior, que prováveis infernos o vento sopra?

Os jovens mais sensíveis, os jovens mais sensíveis e angustiados, perguntam-nos: o senhor acha que ainda é possível um golpe de Estado no Brasil? E na América Latina? – Não sei, não sabemos, é o que nos vem. Quem sabe é o vento, dá vontade de responder. Mas só o dizer “não sei” para eles é motivo de espanto. Entendemos a razão. Os jovens confundem cabelos brancos com sabedoria. Talvez nem saibam que os idiotas também amadurecem, nas cãs. Talvez nem percebam que esse pesadelo do golpe nos acompanha todas as noites, como um ente amado de sinal invertido. Pois o que são os pesadelos senão um estimado irmão contra nós? Um inimigo íntimo, indissolúvel? Um jogo de dados onde está inscrito “foste derrotado”, um resultado que buscamos? Esse devir pesado é como um súbito telefonema de uma sobrinha, que de repente nos comunica, “tio, na noite passada sonhei que o senhor acabara de falecer”. E que por isso ligou para ouvir a voz do ex-morto ao telefone, que lhe diz: “até as 9 e 35 desta manhã o seu sonho não é verdade”.

Na altura destas linhas o futuro vem sendo feito, e o pesadelo não veio, não virá, esperamos que pelo menos até o fim do presente. Quem sabe? As possibilidades por vezes se transformam por obra de um estúpido e absurdo acaso, o próprio sopro aleatório do diabo. Quem está imune? Mas não é do raro possível que tratamos. Quando nos perguntamos para que lado sopra o futuro, queremos consultar as cartas, o baralho, a sua predição, em um sistema de racionalidade. Antes que digam que tal pretensão é loucura rematada, esclarecemos, queremos saber a tendência do tempo em curso, queremos investigar o mar subterrâneo que vem crescendo. Rematada loucura mais uma vez, dirão. E dizem mais, os incrédulos: nenhum homem é serpente, que adivinha terremoto com antecedência de 5 dias. Pois lhes respondo, para melhor fortalecimento do diagnóstico da loucura: o homem é mais fino e arguto que as serpentes. A partir mesmo do veneno. Mirem por quê.

A depender do que se deseja no mundo, o futuro é bem conhecido. Por exemplo, um político pragmático, com mandato, não se pergunta bem para que lado sopra o futuro. Ele se diz, gozemos o presente. Agora, carpe diem, porque o amanhã é hoje. Muito melhor dizendo, o futuro será aquilo que ele conseguir arrancar do poder neste momento, em todos os momentos. Ou, em linguagem mais concreta, o futuro é a construção de um patrimônio, agora, agora, agora... Esses pragmáticos do imediato são os mais limitados, e, justiça lhes seja feita, são do gênero vulgar, mesquinho, que se universaliza e está presente, passado e futuro em muitas profissões, homens e atividades. Eles fazem uma horda de predadores. Por onde passam as árvores não deitam mais frutos.

Porém há os mais sensíveis, mais sensíveis que as melhores serpentes. Estes se perguntam qual a tendência, para que melhor se preparem e venham a subir na crista da onda. O futuro para estes – observem a medida do ofídio – varia no intervalo de 4 a 8 anos. Para onde vai o mar, que onda, ala e ola se anuncia ou se forma sob a superfície no horizonte? Que ideias e bandeiras estarão em voga nesse futuro? Eles se perguntam, perscrutam o tempo, e a resposta nem sempre é certa, porque o movimento que se apresenta aos olhos nem sempre mostra o subterrâneo, que virá com força adiante. Então vem a lição. Recordam-se do cardeal Richelieu, que mandou dobrar os sinos ao fim de uma revolta, sem saber a que vitoriosos saudava? Como um aperfeiçoamento de Richelieu, as serpentes que sondam os próximos anos não podem ainda fazer dobrar os sinos. A revolta ainda nem se deu. Mas adotam um comportamento sensato, que jamais falha: eles não radicalizam posições políticas, e melhor, bem melhor, jamais serão sectários. Porque eles sabem que os muito radicais, em qualquer movimento, serão os primeiros destinados ao sacrifício. Radicais lideram, de imediato, mas deles jamais será o dom de governar, que por vezes se confunde com o dom de contemporizar, dialogar com contrários, administrar conflitos. E por isso na zona de bruma prosseguem, a caminhar entre as formas indefinidas, até o dia em que serão uma forma definida, ao fim e enfim.

No entanto nós, maioria sem o talento dos perquiridores no poder, na câmara, no senado, nos próximos quatro, oito anos, desejamos da realidade algo diverso e de menor peso. Bem que gostaríamos de saber se nesse futuro remoto teremos atingido a imortalidade. Perdão. Desejos secretos, absurdos, impossíveis e insensatos não se escrevem. Mencionam-se assim, de passagem. Então sejamos um pouco mais modestos. Assim, queremos apenas saber como o nosso destino será inscrito no destino de toda a humanidade nos próximos 30, 20, 10, 8, 2 anos, vá lá, nos próximos 30 dias, vá, nas vizinhas 48 horas, está bem, nos próximas 24, e basta, porque de pouco desejar a pouco desejar, nesse passo e progressão nem chegaremos a terminar esta frase. Já que a concluímos, podemos adicionar: se o futuro que se quis se faz no presente, se o futuro imediato se faz ao fim deste presente fugaz, então o mais longe, que bem desejamos, não será feito sem a intervenção da nossa vontade. Vontade ativa, que vai além do perguntar à rosa-dos-ventos para que lado o futuro sopra.

Nós já estamos na humanidade. Iremos para onde ela for. Para nossa desgraça ou felicidade, nem tão rápido, nem tão prematuro. Quem sabe, talvez com aquele sentimento que ainda se perturba com o perfume do jasmim.

Urariano Mota, jornalista e escritor, autor de "Soledad no Recife" (Boitempo Editorial - 2009) e "Os Corações Futuristas", colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.

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