sábado, 26 de junho de 2010

Se morder, o bicho pega...

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Sobre o general Stanley McChrystal e a Blackwater

Jeremy Scahill, The Nation

Blackwater, empresa de soldados mercenários, está evidentemente muito mais firmemente plantada no chão que o general Gen. Stanley McChrystal. Enquanto McChrystal beberica Bud Light Lime, assistindo ao filme “À toda velocidade” [1] e avalia as ofertas de emprego, no setor privado, que tem sobre a mesa, os soldados-cruzados privados mercenários de Erik Prince [2] lá estão, correndo pelo Afeganistão e outros teatros de guerras não declaradas em que os EUA andam metidos, guiados pela CIA. E com as bênçãos, sim, do Comandante-em-Chefe.

Com os principais executivos e representantes da Blackwater já indiciados por crimes federais, e a empresa posta à venda, dizem os boatos que Prince prepara-se para voar rumo a um país que não mantém tratado de extradição com os EUA.

Ao mesmo tempo em que o presidente Obama demite McChrystal, depois de comentários atribuídos ao general e a um círculo muito próximo de seus assessores, em artigo já considerado maldito, publicado pela revista Rolling Stone, a empresa Blackwater é premiada com novos contratos. Isso, apesar de longa folha corrida de conduta imprópria (para dizer o mínimo; há denúncias de assassinatos e tortura, de contrabando de armas, de conspiração e obstrução da justiça, dentre outras).

Dado o alegado envolvimento de McChrystal na tortura de prisioneiros no Camp Nama no Iraque, o papel destacado que teve no acobertamento do assassinato de Pat Tillman e outros atos obscuros que envolveram os altos escalões do Joint Special Operations durante o governo Bush-Cheney, McChrystal jamais poderia ter sido nomeado para o comando no Afeganistão. Ao nomeá-lo, Obama mandou recado claro sobre o tipo de política que desejava para o Afeganistão – qualquer política que favorecesse as forças de intervenção direta, transparência-zero, identificação-zero, habituadas a operar na clandestinidade e longe de qualquer fiscalização.

De fato, na matéria publicada por Rolling Stone, McChrystal parece admitir que sua muito comentada promessa de fazer diminuir o número de mortes de civis não passou de cortina de fumaça. Segundo Rolling Stone: “Melhor você sair e dar conta de quatro ou cinco alvos essa noite” – diz McChrystal a um fuzileiro que encontra parado à entrada do quartel-general. E em seguida acrescenta: “Embora amanhã, por causa disso, eu tenha de esfolá-lo.”

O presidente Obama acertou ao demitir McChrystal (tecnicamente, aceitou o pedido de demissão) – e melhor seria se já o tivesse demitido há muito tempo. Mas o fato de que McChrystal tenha sido demitido por causa da matéria em Rolling Stone, não pelo modo como conduzia a guerra no Afeganistão, diz muito sobre o que pensa da guerra e sobre a política da guerra o governo Obama (e, isso, sem falar que Petraeus, recém nomeado para o lugar de McChrystal, é general de Dick Cheney).

Comparem-se, então, os tratamentos que o governo Obama dá a McChrystal e à empresa Blackwater.

Em janeiro, dois ‘operadores’ da empresa Blackwater foram acusados de assassinato em investigações iniciadas depois de um tiroteio no Afeganistão, em maio de 2008. Em março, o senador Carl Levin, presidente da Comissão do Senado para as Forças Armadas, encaminhou pedido ao Departamento de Defesa, para que investigasse o uso, pela Blackwater, de uma empresa-laranja, Paravant, para obter contratos no Afeganistão. Dia 11/6, o procurador federal deu entrada a imensa documentação, como parte da apelação, em processo do ano passado, depois de a empresa ter sido absolvida por juiz federal, em acusação contra ‘operadores’ da Blackwater, identificados como autores dos tiros, no tiroteio da praça Nisour. Morreram 17 iraquianos civis inocentes e outros 20 ficaram feridos. Para resumir, os procuradores pedem a anulação do primeiro processo e o reinício de novo processo contra a Blackwater. Depois, em abril, cinco dos principais assessores de Erik Prince foram acusados, por júri federal, por formação de quadrilha, comércio de armas e obstrução da ação da Justiça. Dentre outros acusados, lá estavam o braço direito e sócio de Prince, co-fundador da empresa e ex-presidente Gary Jackson, os ex-vice-presidentes William Matthews e Ana Bundy, e o advogado-chefe de Prince, Andrew Howell. Ex-empregados da empresa Blackwater testemunharam, sob juramento, e fizeram denúncias gravíssimas que envolveram assassinato, contrabando de armas, prostituição, destruição de provas e documentos e mais uma longa lista de acusações.

Como se sabe, nada disso causou qualquer grave inquietação à Casa Branca.

Nas últimas duas semanas, a empresa Blackwater assinou contratos no valor de mais de 200 milhões de dólares com o governo Obama. Um deles é contrato com o Departamento de Estado dos EUA para prestação de serviços de segurança no Afeganistão; outro, de 100 milhões, para proteção a operações e ‘operadores’ da CIA no Afeganistão e em outras zonas globais quentes. A empresa Blackwater tem gasto milhões em salários de lobbyists – ativos, sobretudo junto ao Partido Democrata. No primeiro trimestre de 2010, a empresa gastou mais de meio milhão só para contratar os serviços de Stuart Eizenstat, lobbyist muito bem relacionado no Partido Democrata, que serviu aos governos Clinton e Carter. Eizenstat é presidente do setor internacional do poderoso escritório Covington & Burling de advocacia e lobbying.

“Blackwater passou por mudanças profundas” – disse um funcionário do Departamento de Estado, não identificado, ao The Washington Post. “Estão obrigados a provar aos governos que são empresa responsável. Atenderam todos os requisitos legais e, claro, têm direito de participar das concorrências, como qualquer empresa. É empresa que presta bons serviços, muitas vezes em locais muito perigosos. Ninguém pode esquecer isso.”

Tampouco se pode esquecer que, como McChrystal, Erik Prince também foi tema de matéria de capa de outra revista de prestígio. Em janeiro, a revista Vanity Fair deu capa e fez longo ‘perfil’ de Prince [3]. Mas no artigo, Prince e seus associados não se puseram a falar como idiotas do comandante-em-chefe, nem do vice-presidente. Mas Prince, sim, fala bastante claramente, com detalhes de operações secretas dos EUA; e fala sobre a existência de uma equipe treinada de assassinos na CIA – organizados e treinados pelo próprio Prince – que obteve vários sucessos em vários países, dentre os quais a Alemanha, aliado-chave dos EUA.

Sabe-se lá se, algum dia, sabe-se lá, caso algum repórter surpreenda Prince e seus asseclas envolvidos em bebedeiras, e proferindo desaforos contra a Casa Branca e o Comandante-em-chefe, então, talvez, alguma coisa, algum dia, mude. Sabe-se lá se, caso algum dos bandidos da Blackwater algum dia disser “ai, ele mordeu meu pau!”, ao falar do vice-presidente, ou enunciasse estupidezes contra o infeliz Richard Holbrooke ou chamasse de “palhaço” o conselheiro de Segurança Nacional, talvez, sabe-se lá, o governo Obama decida “aceitar o pedido de demissão” dos homens da Blackwater.

Não há dúvida de que, nos termos do Código de Conduta dos Militares dos EUA, McChrystal foi demitido por justa causa e liberado de seus muitos deveres. Mas, no frigir dos ovos, foram as palavras de McChrystal – não seus atos – que o fizeram naufragar. A nave dos crimes e assassinatos da Blackwater, pelo visto, continuará a navegar a plena vela, até que alguma frase, não os seus tiros, atinja o homem errado.

Atualizando

Acabo de voltar de entrevista com a Deputada Jan Schakowsky, principal deputada da oposição à Blackwater na House [Câmara de Deputados]. Membro da Comissão de Inteligência da Câmara de Deputados, a deputada Schakowsky não confirmou detalhes dos serviços que a Blackwater presta à CIA, mas, ao saber dos novos contratos, e que a empresa foi outra vez recontratada pela CIA, ela disse: “É escandaloso. O que mais a Blackwater terá de fazer para ser impedida de participar de concorrências? Por mais que alguns façam bom trabalho, há muitos empregados da empresa que comprovadamente não têm condições para trabalhar armados, em zona de combate. Não importa o que façam, em ações de segurança ou em segurança estática, não podemos continuar a usar mercenários da Blackwater. A CIA já não poderia manter contatos com essa empresa, por mais que mudem o nome e o logotipo .”

E Schakowsky acrescentou: “Se a razão para usar os serviços da Blackwater é que o governo não tem capacidade ou não conhece outra empresa de melhor reputação para fazer esses serviços, então, sim, aí está um sério problema a ser enfrentado.”

NOTAS

[1] São referências à matéria publicada em Rolling Stones, apresentada como causa da demissão de McChrystal: em Paris, o general tomava essa bebida e assistiu àquele filme. Ver “The Runaway General”.
[2] Fundador da empresa Blackwater. Em fevereiro de 2009, imediatamente depois de a empresa mudar de nome (passou a chamar-se XE), Prince anunciou que deixava a presidência da empresa, embora sem se desligar completamente. Prince é ex-fuzileiro da Marinha dos EUA e “fundamentalista de direita, várias vezes bilionário, cristão fundamentalista de poderosa família Republicana de Michigan. Dos principais doadores de campanha dos Republicanos, participou dos bastidores da campanha de George H.W. Bush à presidência e, em 1992, fez campanha para Pat Buchanan. E, 1997 fundou a Blackwater-USA, com Gary Jackson, também ex-fuzileiro. (Ver em detalhes.)
[3] Ver “Tycoon, Contractor, Soldier, Spy” [Milionário, empresário, soldado, espião], Adam Ciralsky, Vanity Fair, jan. 2010 (em inglês).

O artigo original. Em inglês, pode ser lido em: Of Gen. Stanley McChrystal and Blackwater (UPDATED)

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Tradução: Coletivo Vila Vudu de Tradutores

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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PressAA

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