domingo, 11 de outubro de 2009

Novo Sinal, a velha mania de transferir responsabilidade

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Kais Ismail

Imagine, caro leitor, qual foi a minha surpresa diante do tratamento nada cortês (desrespeitoso mesmo!) que um promotor de justiça me dispensou por eu haver requerido do Ministério Público do Rio Grande do Sul averiguação de irregularidades no cumprimento das normas de trânsito em Porto Alegre.

De questionador passei a ser questionado: com que autoridade estaria eu contestando aquilo que técnicos altamente qualificados haviam prescrito para solucionar os graves problemas de trânsito que atormentam o cidadão porto-alegrense? – era basicamente isso que a autoridade queria saber.

O promotor, ao invés de se ater ao que realmente interessava, voltando sua atenção para os erros por mim apontados e os analisando, decidiu defender a campanha “Novo Sinal”, afirmando que, a longo prazo, ela funcionaria sim. Enquanto eu alegava que a referida campanha, promovida pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), órgão da Prefeitura de Porto Alegre, tem caráter inconstitucional, pois transfere para o pedestre a responsabilidade do motorista e dos órgãos responsáveis pelo cumprimento das normas de trânsito, além de constranger pessoas impossibilitadas de fazer o gesto para os veículos pararem diante da faixa de pedestres, quando, conforme o dever legal, o condutor do veículo têm obrigação de parar, mesmo que o pedestre não acene, pois sua presença na calçada, em postura que indique que pretende atravessar a rua, é suficiente para que o motorista pare e faculte a sua passagem.

Além desses argumentos, citei aquilo que atinge diretamente a mim e aos funcionários do empreendimento que insisto em manter ativo, mesmo enfrentando sérias dificuldades. Trata-se da Bike-Entrega, uma empresa que faz entregas usando bicicletas.

Queixei-me de que a mesma EPTC, que gasta milhares (milhões?) de reais com uma campanha para estimular as pessoas a fazerem um gesto de “súplica” pelo que lhe é de direito, não fiscaliza e nem pune os motoristas que não cumprem o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que determina distância mínima lateral para um carro ultrapassar bicicleta. Tal transgressão do dispositivo legal põe em constante risco os ciclistas em geral. E aqueles que comigo trabalham reclamam constantemente do desrespeito de motoristas pouco habilidosos ou mesmo negligentes, alguns até arrogantes, que desconsideram a presença da bicicleta no trânsito e as ultrapassam de maneira perigosa. Acidentes já ocorreram com os nossos funcionários.

Além de estarrecido fiquei indignado com a postura do promotor, que insistia em afirmar que a campanha do "Novo Sinal" funcionaria sim, em longo prazo, e que errar seria natural. Chegou a me perguntar se eu também não errava. Se eu era perfeito. Em vários momentos tentou justificar os erros que colocam em risco as nossas vidas.

Errar pode até ser natural, ou próprio da natureza humana. Isso explica (e apenas explica) os eventuais desajustes nas relações entre os seres humanos. Mas quando tentamos justificar (tornar justo) os nossos erros com essa explicação simplista de que errar é naturalmente humano, estamos incorrendo num grave erro: o incentivo a permanecer errando. O erro pode ser perdoado ou simplesmente desculpado, mas precisa, acima de tudo, ser combatido, corrigido, e aquele que comete falta deve ser autuado, se assim a lei determinar.

A minha tentativa de instaurar inquérito para apuração das irregularidades no trânsito de Porto Alegre foi frustrada pelo indeferimento da promotoria, nos seguintes termos:

“1. Inexistência de ilicitude na campanha de educação para o trânsito “Novo Sinal”, que sugere aos pedestres, em caráter facultativo, o uso de gesto com o braço antes de efetuar travessia de faixas de segurança, como alerta adicional aos motoristas, o que não se confunde com os sinais obrigatórios previstos na legislação de trânsito. 2. Inviabilidade de instaurar investigação para apurar reclamação genérica de que a EPTC não estaria fiscalizando o cumprimento de diversos dispositivos do Código de Trânsito, sem a especificação de fatos concretos ou a indicação de provas.”

Dizer que eu fiz “reclamação genérica de que a EPTC não estaria fiscalizando o cumprimento de diversos dispositivos do Código de Trânsito”, é o mesmo que afirmar que eu não citei, especificamente, o que estava sendo descumprido nem o que eu queria que fosse fiscalizado. É como se eu tivesse chegado lá no Ministério público e reclamado apenas que a EPTC não fiscaliza, de modo geral, o cumprimento da lei. E não foi isso que ficou registrado no meu depoimento.

Fui específico naquilo que eu queria que fosse averiguado pelo Ministério Público. No caso dos carros que ultrapassam as bicicletas de forma irregular, conforme ocorre constantemente, bastaria que o promotor analisasse junto ao Detran-RS quantas multas são expedidas anualmente devido a esse tipo de infração de trânsito em Porto Alegre. Se são raras, ou mesmo nenhuma. Se o número de multas desse tipo (caso ocorram) é compatível com o número de bicicletas que circulam pela cidade. Enfim, uma investigação. Só isso.

Opinei sobre a inconstitucionalidade da campanha “Novo Sinal”, que NÃO obriga o pedestre a fazer o gesto, mas INDUZ o motorista a só parar diante da faixa de segurança se o cidadão acenar; quando a legislação obriga a parar e dar passagem a quem manifestar interesse em atravessar a rua. O CTB prevê multa para motorista que não parar para dar passagem a quem estiver atravessando a rua na faixa de segurança. Eu mesmo fui testar o efeito da campanha e constatei que, nem mesmo acenando, muitos motoristas não param.

Quase fui atropelado. Veja:

http://mediacenter.clicrbs.com.br/templates/player.aspx?uf=2&contentID=76226&channel=234

Confira o que determina o CTB:

Art. 214. Deixar de dar preferência de passagem a pedestre e a veículo não motorizado:

I - que se encontre na faixa a ele destinada;
II - que não haja concluído a travessia mesmo que ocorra sinal verde para o veículo;
III - portadores de deficiência física, crianças, idosos e gestantes:

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa.

IV - quando houver iniciado a travessia mesmo que não haja sinalização a ele destinada;
V - que esteja atravessando a via transversal para onde se dirige o veículo:

Infração - grave;

Penalidade - multa.

Quanto à ilegalidade propriamente dita dessa campanha, vejamos o que determina o CTB, no que diz respeito a sinalizações:

Art. 80. Sempre que necessário, será colocada ao longo da via, sinalização prevista neste Código e em legislação complementar, destinada a condutores e pedestres, vedada a utilização de qualquer outra.

Atente: “utilização”. A lei é bastante específica, não se pode “utilizar” qualquer outra "sinalização".

A campanha tem nome: “Novo Sinal”. Esse novo sinal, com o tempo, ficará velho, e aí pode ser tarde. O que quero dizer com isso? Que, caso os motoristas de Porto Alegre se acostumem com ele, com o passar do tempo só irão parar em caso de aceno do pedestre. O que constitui um erro, pois a campanha deveria ser direcionada, principalmente, aos motoristas, fazendo-os entender que são eles os que devem observar a faixa de segurança e parar. Ao pedestre cabe atravessar na faixa. Ambos têm responsabilidades. Ambos têm direitos e deveres. Aí, sim, deveria ser o alvo da campanha.

Além disso, a simples existência dessa campanha afeta a auto-estima de pessoas portadoras de deficiência que as impossibilitem de fazer o gesto, o que pode deixá-las constrangidas. Imagine elas sendo obrigadas a pedir auxílio a outras pessoas. Imagine os motoristas já acostumados a somente parar se o pedestre acenar. Este fato contraria a lei que os obriga a parar.

Quanto à Bike-Entrega, acompanhe a nossa luta para mantê-la, leia os artigos postados nesta Agência Assaz Atroz:

http://pressaa.blogspot.com/2009/10/nao-so-o-haiti-mas-tambem-o-oriente.html

http://pressaa.blogspot.com/2009/07/bike-boys-contra-sugismundo.html

Em 21/7/2009 foi realizado o 1° Desafio Intermodal de Porto Alegre. Diversas categorias de transporte participaram. Assista ao vídeo e confira os resultados:

http://www.youtube.com/watch?v=OWv6QJGxsDo

Fala-se em direitos e deveres, exercício da cidadania; porém, quando qualquer pessoa de camada social popular tenta fazer valer esses direitos, reivindicando apenas o cumprimento dos deveres do Estado, acaba encontrando o que encontrei: menosprezo, desconsideração, falta de interesse e, ainda por cima, passa de vítima a agressor, de denunciante a acusado.




Kais Ismail, produtor publicitário e empresário, colabora com esta Agência Assaz Atroz.

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PressAA

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3 comentários:

Sergio Campos disse...

Pois é meu caro, isso não é um desprivilegio de Porto Alegre. Minha cidade tem apenas 43 mil habitantes, mas já dispões de um trânsito péssimo. Todos os dias me indigno com a falta de respeito, com crianças e velhos que são obrigados a fazer um enorme esforço para não serem atropelados. Mototaxistas que estão sempre em alta velocidade que para garantir o próximo freguês, afinal é preciso garantir o leite das crianças. E os outros? Ah, os outros...
Quanto ao MP daí não é pior do que o daqui. Ha uns dois anos acompanhei membros do Conselho Municipal do FUNDEB, que estavam denunciando a prefeita de um desviou de R$ 1.300 mi, porém a promotora de justiça me impediu de participar da reunião, e até hoje nunca deu uma resposta do caso. Pouco mais de uma semana, um amigo meu entrou com um pedido de embargo de uma obra que irá poluir ainda mais o rio que enlameia (já é mais abastecido de esgotos do que água) a cidade, mas a resposta da mesma promotora é que não trabalhava sob pressão.

Francisco Marshall disse...

Excelente postagem, muito lúcida e bem escrita.

Note que os famosos "quebra-molas" também são uma negação da lei. Basta fazer cumprir a velocidade limite, mediante policiamento e multas, e desaparece a necessidade de tais "jeitinhos".

Mas vivemos em um país "cordial", onde a lei é uma falácia.

Quanto aos promotores, se trabalhassem de acordo com o que ganham, seria o paraíso! Mas seus aumentos e projetos de expansão dependeme de aprovação na Assembleia, e aí já fica todo mundo com o rabo preso.

Vou fazer sinal com a mão e atravessar o oceano!

Tonho Crocco disse...

Muito boa Kais! um amigo nosso fez uma brincadeira com o logo do ''pare na faixa''. Tomara que ninguém do DETRAN/EPTC veja; vão querer processar a gente também. ''Não fadigue o faixa'' aqui http://twitpic.com/xuhes Parabéns pela caneta nervosa!