sexta-feira, 30 de julho de 2010

CONVIVENDO COM FANTASMAS

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"Avancem para águas mais profundas" (Lucas 5,4)

Lúcia Nobre

Estava preparando o almoço, exatamente às 11 horas da manhã, em meu apartamento na praia de Pajuçara. Prédio antigo, já devem ter passado por ele, habitado ali, muitas pessoas que já se foram.

De repente, ouvi, vindo dos quartos ou banheiros, um sussurro de alguém como se estivesse muito cansado. Estremeci de medo, estava sozinha. E logo eu, que tenho medo dessas coisas, acredito nelas. Sou brasileira e mística. Podia ser alguém de casa, pensei. Não, não havia ninguém em casa, tinha certeza. Todos saíram. Todos? Estava mesmo sozinha? Parece que agora não mais estava. Para disfarçar, continuei o meu trabalho e pensei: ficarei só na cozinha. Não podia ficar só na cozinha, os banheiros teriam de ser lavados. Fortifiquei-me de coragem e fui. Entreguei-me à sorte. Nada aconteceu, só o medo. Que coisa feia, uma mulher adulta, mãe de filhas jovens, ficar com medo de fantasmas! Pensei mais uma vez, vou escrever sobre isso, será interessante. Peguei a caneta e o papel, comecei a escrever.

Ouvi os passarinhos espantarem-se. Eles estavam na área de serviço. Então, o barulho antes ouvido seria dos passarinhos? Claro que não. Estavam em outro ambiente. Continuei a escrever. Agora não estava com muito medo, queria mesmo que o fantasma desse sinal de vida. De vida? Sim, para que minha história se tornasse mais real. Eis que surge em minha frente... estava eu sentada no sofá da sala. Vi-me frente a frente com uma mulher bem alta, elegante, e dizia:

-Não deseje isso. Não é bom para nós, pessoas não mais terrenas.

- Não desejei nada, quem é você? Quis mentir diante do seu olhar instigador.

- Não minta, você quis a minha presença para tornar real sua história.

- Desculpe, achei impossível, por isso pensei.

Diante dessa situação, estava tremendo de pavor e pedi:

- Vá embora, não a chamei, perdoe-me.

- Agora é tarde, não poderei mais partir. Eu já morava aqui, só que ninguém antes havia desejado minha presença.

Eu não sabia o que fazer, não adiantava gritar, seria ridículo, ninguém acreditaria, poderia passar por uma louca gritando sem motivos. Esforcei-me e levantei-me. Ali, ela continuava a encarar-me, peguei uma panela de água quente no fogão e conjeturei: não adianta jogar porque é um espírito. Com o coração na mão, levei a água para matar os germes dos banheiros. Olhava só para frente, evitava olhá-la. Não sabia mais o que fazer diante daquela situação inusitada. Talvez pudesse sair de mansinho pela porta da frente.

Parecendo ler meu pensamento falou:

- Não adianta fugir, já lhe falei. Estarei sempre aqui, serei sua companheira quando estiver sozinha.

- Não acredito mais nisso. Acho que estou apenas imaginando tudo isso.

- Acredita agora? Disse a mulher, jogando ao chão um jarro de flores que estava sobre o centro da sala.

- Então diga o que quer. Reza? Diga o que posso fazer por você.

- Não pode fazer nada. Sou uma escrava de mim mesma. Vivi pouco nesta terra. Fui antes do tempo. Morei aqui logo que o edifício foi construído, talvez, uma das primeiras moradoras. Fiquei amarrada nestas quatro paredes por algo que não precisa saber. Não sairei jamais a não ser que ...

- Não acredito em nada que está falando, desapareça da minha frente.

- Só desaparecerei com uma condição.

- Uma condição? Fale que tenho muito que fazer.

- Troco minha vida por alguém de sua casa.

- Que história é essa? Não estou entendendo.

- Está sim.

- Pelo amor de Deus vá embora, deixe-me em paz.

- Deixe Deus fora disso. Ele não tem nada com isso, nem sei se ele existe.

- Claro que existe.

- Então, eu saio e levo uma pessoa sua.

- Vá embora que irei procurar algo que lhe devolva a paz.

- Não adianta. Sempre vou estar aqui enquanto não levar alguém. Este é o meu castigo ou o seu.

Apesar de insistir que vai ficar, a mulher como um relance, desaparece. E eu, como se tivesse despertado de um pesadelo, corri para atender à porta, pois a minha filha chegara do colégio. Não sei como nem porque esqueci o episódio vivido e não dei mais importância ao fato.

Passaram-se alguns dias até que eu ficasse sozinha novamente. Dessa vez, estava no computador retocando uns trabalhos. Senti um frio fora de comum. Pegando no meu pescoço, uma criança que nem sorria tal qual a mulher do outro dia. Dirigia-me a palavra com voz imperativa.

- Já resolveu? - Vai atender ao meu pedido?

Quis correr, quis gritar, aquela presença causava-me uma sensação horrível de medo, quase pânico.

- Não sei do que está falando. Quem é você ?

- Você já me conhece. Já lhe falei outro dia.

- Nunca o vi, por favor, vá embora.

- Estou como criança. O espírito não possui forma. Posso aparecer como mulher, como homem, como criança e até como animal.

- Quer reza. Vou mandar benzer este apartamento.

- Já falei o que quero e se não me entregar alguém da família, quero você mesma. Resolva, a decisão é sua. Não tenho muito tempo a perder.

Sai de relance, desta vez deixando um insuportável calor. Procurei ajuda de pessoas religiosas e, mesmo com rezas, não deixei de receber visitas inesperadas e indesejáveis. Desta vez, como da primeira, ouvi os pássaros movimentarem-se na área de serviço, onde eles ficam em suas gaiolas. Estremeci, porque, como das outras vezes, estava só. Até então não contei nada a ninguém. Fiquei com o pensamento que poderia estar imaginando. Fiz um esforço enorme e olhei em direção às gaiolas dos passarinhos. No lugar do passarinho preferido do meu marido, havia apenas um som que não era do passarinho.

- Não avisei? Este é apenas um aviso. Levei o passarinho, ele não voltará mais.

- Por quê? O que tem o passarinho com sua vida?

- Nada. É um aviso, já lhe falei. O próximo pode ser alguém de sua família.

Some a voz e também o passarinho, que não está mais na gaiola. Quando meu marido chegou, pediu explicação e eu apenas falei que não sabia de nada. Ele, inconformado, não entendia como o passarinho desaparecera da gaiola se esta permanecia com a porta fechada. Eu, para disfarçar, brincava: são mistérios...

- Filha, tem certeza que não abriu a gaiola? Perguntou quase sem prestar atenção na resposta, pois eu nunca havia chegado perto das gaiolas. Só ele cuidava dos passarinhos e com muito amor. Quantas vezes o surpreendi conversando com passarinhos ou mesmo colocando remédio em seu bico.

Imediatamente, sem nada comentar sobre o ocorrido, convenci a todos de casa a procurarmos outro apartamento, não dava mais para morar ali. O passarinho sumiu, não era minha imaginação, poderia acontecer coisa pior. Todos concordaram em procurar outro apartamento.

Quando estávamos nos preparando para nos mudar, estava eu sozinha quando a voz surgiu novamente. A mesma voz sem um corpo. Foi aterrorizante. Parecia um filme de terror.

- O passarinho sumiu, foi substituído por alguém da casa, mas vocês vão ter uma surpresa bastante desagradável. Aguardem.

A voz cala-se e, como se o filme de terror chegasse ao auge, entram por baixo da porta da frente diversas baratinhas que, imediatamente, invadem todo o apartamento, deixando-me atordoada, até angustiada. Dessa vez não pude esconder porque, como uma praga, elas invadiram e não houve veneno que as destruísse. A família, toda apavorada, sem demora, abandonou o apartamento. Ali não dava mais para continuar. Não contamos nada a ninguém, fomos embora e nos livramos dos fantasmas.

Alagoas na Net

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Maria Lúcia Nobre dos Santos, professora da Rede Estadual de Ensino do Estado de Alagoas e Rede Municipal de Ensino de Maceió. Autora do livro “Do índio a Collor”. Sergasa, 1992: resumo dos principais acontecimentos políticos, econômicos e sociais do Brasil. Especialização e Mestrado em Letras. Área de Concentração: Literatura Brasileira/UFAL. Dissertação do Mestrado: “A recriação do sertão no verso e na prosa - A harmonia da arte popular e erudita: uma incursão na tradição cultural brasileira na contística de Guimarães Rosa”, UFAL, 1999. Redação que se transformou no livro: A Arte Rosa do Popular ao Erudito. Edufal, 2000. Articulista, colabora com revistas e jornais impressos e internéticos. Perfil mais amplo de Lúcia Nobre pode ser lido no Portal Maltanet

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Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons

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PressAA

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