Lou Micaldas
Meu pai, Micaldas Corrêa, foi um cara incrível.
Éramos cinco filhos: quatro meninas e um menino. Ele era, e ainda é motivo de comentários que me deixam felicíssima por ser filha de um homem tão admirado pelos filhos, ex-alunos e amigos.
Sorte a nossa e das pessoas que tiveram a oportunidade de conviver com ele.
Meu pai foi um menino pobre, que andava descalço, sem camisa, pelos quatro cantos do Rio. Gostava de jogar "pelada", com bola de meia, no morro do Santo Cristo com seu melhor amigo, Mariano, também menino pobre.
Unidos pelo esporte e pela liberdade de correr de pés descalços e braços nus, eles tinham ideais diferentes quando crescessem. Papai queria ser professor e Mariano médico. Sonhos que pareciam impossíveis pra outras crianças com dificuldade financeira, mas não para aqueles dois.
Quando tinha dez anos, papai ganhou da professora como prêmio uma entrada pra brincar no parque de diversões por ter conquistado o primeiro lugar na prova.
Ele deu o ingresso para o Mariano. Ele contou o motivo: "ver a felicidade do amigo me faria mais feliz do que se estivesse no brinquedo. Do lado de fora, pude sentir com ele toda aquela alegria."
Meu pai foi criado por um tio português rico, dono de uma padaria. Ele achava que o futuro certo para o sobrinho seria entregar o pão cedinho e depois ficar na padaria, aprendendo o ofício, até o dia em que se tornaria o dono do negócio. Ele não era mau, mas impunha sua autoridade contrariando o sonho daquele menino, que desejava seguir outro caminho em busca de sua vocação.
Micaldas adorava ler e estudar, mas só conseguia fazer isso à noite, escondido no porão, à luz de vela, pra não ser descoberto cometendo tamanho deslize.
O tio costumava dizer que estudar e ler livros eram coisas de preguiçoso, que "homem de verdade" tinha que pegar no pesado e ser dono de algum negócio.
Mas Micaldas perseguia seu ideal, protegido pela tia, que distraía o marido para que o sobrinho pudesse estudar.
Ele quase não dormia pra dar conta do trabalho da padaria e estudar durante a noite.
Entrou num colégio e propôs ao dono:
- Deixa eu estudar aqui? Limparei as salas todos os dias. Só quero uma carteira pra assistir as aulas e poder concluir o ginásio.
Trato feito, o menino conseguiu estudar à noite.
Certo dia, a diretora o viu sentado na porta da escola estudando. Ela fez um carinho na cabeça dele e disse:
- Micaldas, você será um grande homem!
Ele nunca se esqueceu das palavras daquela educadora. Elas tiveram fundamental influência na vida do menino.
Mais tarde, ele resolveu que iria seguir a carreira Militar. Era de graça e ele poderia ficar interno. Estaria solucionado o problema de moradia, alimentação e o estudo garantido. Passou na prova. No início do ano, lá estava ele como cadete da Academia Militar de Realengo. Tornou-se oficial e foi transferido pra Itu.
Conheceu Magdalena Léa, filha do então comandante daquele Regimento. Casou-se com ela, "a moça mais bonita e interessante que ele já tinha conhecido em toda a sua vida", dizia.
Sempre que arranjava um tempo, o tenente Micaldas dava aulas para os soldados analfabetos.
Depois de algumas transferências, carregando louças, alguns móveis, mulher e filhos nos trens ou caminhões, ele veio transferido para o Forte de São João na Urca, Rio de Janeiro, onde continuou alfabetizando muitos soldados. Depois, foi para o Colégio Militar, também no Rio.
Chegou, finalmente, a oportunidade de realizar seu grande sonho: foi convidado a dar aulas de Latim e Literatura Portuguesa. Mais tarde, optou pela cadeira de professor titular de Literatura e da Língua Portuguesa.
Inovador, dava suas aulas a partir de textos modernos de Carlos Drumond de Andrade, Manoel Bandeira e de outros grandes autores que despertassem o interesse dos alunos pela matéria e pela leitura.
Certa vez, num exame de fim de ano, um aluno escreveu a palavra "porra" numa redação.
As provas finais eram avaliadas por dois professores.
O texto impecável e muito interessante recebeu nota zero de um dos professores, embora não apresentasse um só erro. Meu pai havia dado nota dez.
O então coronel Micaldas foi chamado ao gabinete do comandante pra participar do julgamento daquela "indisciplina grave", cometida por seu aluno. E a punição consistiria em perder o ano, ser expulso do colégio e, por conseguinte, romper a carreira.
Ao entrar no gabinete, o coronel Micaldas tirou o quepe. Na cabeça ficou presa uma rodela de jornal.
- Coronel, alertou o comandante, prendendo o riso, tem uma touca de jornal em cima de sua cabeça.
Ele não se atrapalhou.
- Nem senti! É que o quepe estava grande. Achei mais prático recheá-lo, ao invés de providenciar um novo...
Pegou a "touca", arrumou dentro do quepe, e ficou empertigado diante do comandante, aguardando a ordem pra se sentar.
Começou o julgamento. O professor, que dera zero na prova, alegou que o aluno, ao escrever uma palavra chula na redação, desrespeitara os professores e os princípios disciplinares daquele egrégio colégio.
Meu pai argumentou: - dei nota 10, porque o aluno fez uma ótima redação, sem cometer qualquer erro. E o principal para mim é conhecer o sentimento dos alunos e verificar a forma correta de escrever. E perguntou: como posso punir um aluno, por utilizar um termo que faz parte de um poema analisado em minha aula? Abriu um livro de poemas e mostrou a palavra "porra", ali editada, por um conceituado poeta brasileiro. Mantenho a minha nota 10 e não concordo com qualquer tipo de punição. A liberdade de expressão deve ser respeitada!
Resultado do julgamento: o aluno pôde seguir a carreira militar.
Nos intervalos, os alunos o procuravam pra bater papo com aquele "cara bacana", um professor amigão, pronto pra ouvir os mais íntimos problemas, dar ensinamentos que não se restringiam unicamente ao ensino de sua matéria, falando de homem pra homem, sem escolher palavras técnicas, relacionamento entre pais e filhos, problemas escolares, dúvidas sobre sexo, etc.
Por ser tão querido, foi eleito três vezes paraninfo das turmas de formandos.
Mas na quarta vez, o comandante proibiu, dizendo que não seria possível ser paraninfo quatro vezes seguidas. Então, os alunos o elegeram o "Patrono da Turma". Micaldas foi o único Patrono vivo da história do Colégio Militar.
Na educação dos filhos, papai também era um cara compreensivo e avançado. Ele nos ensinava como conviver com os preconceitos sobre comportamento sexual. Sempre franco, sem papas na língua, dizia que a virgindade era uma burrice que se prendia a um tabu de uma pelinha, que não tinha a menor importância na dignidade de uma mulher.
Mas ressaltava que a sociedade exigia que casássemos virgens. Ele, como homem, sabia que aquilo seria primordial para que fôssemos respeitadas pelos nossos pretendentes.
E aconselhava: segurem-se meninas! É difícil segurar o desejo sexual. Não permitam intimidades além do beijo. Depois de casadas, vocês terão liberdade pra gozar as delícias das relações sexuais com seus maridos.
Com meu irmão, ele também abria o jogo e sempre mantinha uma conversa aberta sobre todos os assuntos.
Papai e mamãe se afinavam muito bem, tanto na parte intelectual como na educação dos filhos e nas conversas com nossos amigos.
Mariano, aquele amigo de infância, formou-se médico. Mais tarde, ficou conhecido como Professor Mariano de Andrade, ganhando uma placa com o seu nome numa ala de cirurgia da Santa Casa de Misericórdia.
Meu pai também foi homenageado com uma placa na entrada da Capela do Colégio Militar.
Aqueles dois meninos de rua escolheram seus destinos: vencedores!
Aprendemos com nosso pai que a vida é como a natureza: Precisa ser amada e respeitada desde as coisas mais simples. E que a nossa vida vale a pena, quando somos capazes de buscar fazer o melhor por nós e pelos outros.
A vida de meu pai vale a pena!
Muito obrigada, papai!
Lou Micaldas é professora, formada pelo Instituto de Educação, e jornalista, criada e formada no Jornal do Brasil; administra o site Velhos Amigos e colabora com a nossa Agência Assaz Atroz
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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons (cartoon copiado do blog "É a minha profissão" )
Pressaa
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