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Raul LongoÉ recorrente um deslize fonético que inverte o sentido do verbo empregado como título desta série sobre as contradições do governo Lula, encontradas pelo meu amigo Príamo. A diferença é sutil na pronúncia, mas gigantesca no significado, pois se isso de DES-MITIFICAR dá um trabalho danado, DES-MISTIFICAR é coisa só pra iniciados e esotéricos, gente de alguma autoridade e correspondência com os universos metafísicos e paralelos.
Eu não me meto nessa seara porque é coisa que me assusta e não tenho conhecimentos para tal. Portanto vou ficando aqui pelas bordas, explicando apenas que segundo o bibliógrafo e arabista português José Pedro Machado (autor do Dicionário Onomástico e Etimológico da Língua Portuguesa) o prefixo DES, tal qual se o usa em ambos os casos, indica negação. Como em “DESconfiança”: falta ou ausência de confiança.
MITIFICAR, segundo o filólogo Antonio Houaiss, tanto pode ser transformar algo ou alguém em MITO, quanto atribuir, de maneira exaustiva, atributos exagerados a algo ou alguém “de modo a mascarar a realidade”.
Como se faz isso? Nada tão assombroso ou que requeira maiores poderes ocultos. Siga as instruções:
1 – Se não há nada que possa depor contra seu vizinho, vá prestando atenção em uma por uma das pessoas que com ele se relacionam, pois, como todo mundo, haverá de ter algum amigo, parente, funcionário ou conhecido que alguma vez já fez coisa errada na vida.
Duvida? Acha que todos os amigos do seu vizinho são santos só porque ele não sai da Igreja? Não se esqueça de que o ex-governador do Rio de Janeiro, Antonio Garotinho, também é de Igreja e tinha um funcionário que se metia com o jogo do bicho. Tá lembrado, ou já se esqueceu do Waldomiro Diniz?
Pois é... Assim se começa a construir um mito. Não é difícil. Por menor que seja a casa do seu vizinho, ele precisa de eletricista, encanador, jardineiro, faxineira, etc. Pesquisando a vida pregressa de cada um que ali entra e sai, você descobrirá alguém que já se meteu em alguma coisa errada. Aí o resto é fácil. Anote o próximo passo:
2 – Alie-se à fofoqueira da vizinhança. Sabe aquela que todo mundo chama de Gazeta do Bairro? Essa mesma! Você vai ter de oferecer alguma vantagem a ela, claro! Suponhamos que seu interesse é o de comprar a casa do vizinho, então você oferece uma comissão, um pedaço do terreno, os lustres, as cortinas... Qualquer negócio! E faça com que ela não se esqueça de dizer pra todo mundo que o infrator é carne e unha com o seu vizinho, por mais remota que, em verdade, seja a relação. Pois, por mais santo seja, o que funciona é o velho ditado do “me diz com quem tu andas, que já te conto quantos vão saber a boa bisca que és”.
E não se preocupe se o verdureiro chutou cachorro uma única vez e quando trabalhava de carteiro em outra cidade. Se o vizinho comprou alface do homem, é assassino de cachorro e pronto!
3 – Até aqui você já conseguiu criar uma desconfiança contra seu vizinho, mas ainda não é o suficiente. Des-confianças não fazem um mito que só se torna verdadeiro mito quando se tem certeza de que ele realmente exista, por mais fantástico que seja.
Então, continue de olho. Você conhece o bairro, sabe como são e funcionam as coisas em sua comunidade. Logo, logo o vizinho cairá na armadilha. Se não ele, um dos filhos, sobrinhos ou cunhados.
Quando qualquer um da família chegar às altas horas, entrando de mansinho pra ninguém perceber, solte aquele cachorrinho chato que você tem suportado especificamente pra esse momento.
Já imaginou, não é? O cachorro vai latir, o notívago tentará dar um passa-fora, e é quando você sai detrás da moita armando o escândalo, acusando o canicídio.
Seja tonitruante, tenor! Chute você mesmo o bichinho, com força pro ganido convencer a vizinhança. Acuse a família toda de um bando de lobisomens trucidadores de chihuahuas. Mas use de perspicácia e, para dar maior credibilidade à tramóia, faça de conta que livra a cara do vizinho insistindo que ele é gente boa e não cria pêlo à meia-noite. Depois deixe que a “Gazeta do Bairro” se incumba de dizer que pai de lobisomem, lobisomem é.
Ou vampiro.
Ela saberá convencer a vizinhança de que ele não tinha como desconhecer a boêmia do filho retardatário, pois sabia de tudo o que se passava em cada quarto e banheiro da casa. Revelará o conteúdo de conversas secretas, falsificará documentos, forjará fichas policiais, jurará por todos os deuses de pés juntos e dedos cruzados! Você nem imagina do que uma “Gazeta” é capaz!
Mas, cuidado! Às vezes ela inventa tanto que acaba criando um bicho com cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente, e nem grego acredita em tanta Quimera. De qualquer forma, se existe o ornitorrinco, meu troiano Príamo tem lá suas razões para encontrar no governo Lula uma segunda contradição:
b - Não adotou critérios de contenção para uso dos cartões corporativos, chegando a quantias estratosféricas. Os cartões corporativos foram criados em 2001, com a intenção de manter controle de gastos, mas só vieram a entrar em funcionamento em 2002, no último ano do governo de Fernando Henrique. Antes dos cartões corporativos, assinavam-se notas, descontavam-se cheques, e vá lá se saber em quais valores, quanto mais se nas exatas proporções estratosféricas das quais foi informado meu amigo Príamo.
Isso de valores, Príamo também não específica e, muito provavelmente, ninguém pôde lhe especificar, mas mitologia Moderna é assim mesmo. Aquilo de contar origens e desenvolver alguma explicação para tornar minimamente verossímeis os “causos” de monstros, deuses e heróis; era coisa lá da Antiguidade.
Naqueles tempos, os coitados dos poetas e dramaturgos tinham de arquitetar muito bem uma história para convencer seus ouvintes e leitores, já hoje em dia é muito mais fácil. Se uma “Gazeta” dessas afirma que algo é estratosférico, é o suficiente para faltar oxigênio e tudo levitar na ausência de gravidade. Gravidade em todos os sentidos: tanto no newtoniano quanto como sinônimo de seriedade.
Por exemplo, quando o então Ministro do Esporte Orlando Silva foi convocado por uma CPI proposta pelo deputado Carlos Sampaio do PSDB para explicar o estratosférico gasto de R$ 8,30 em tapiocas, com o cartão corporativo, teve gente que achou ser piada.
Príamo pode ter perdido o fôlego, mas Agripino Maia do DEMO aproveitou o gás da gravidade da denúncia e rapidamente levou para a CPI outra denúncia da “Gazeta” (o Jornal do Brasil), acusando o pagamento de 20 bailarinas com cartão corporativo. E por ninguém menos do que a Ministra Dilma Rousseff!
Um brutal escândalo sexual, pois evidentemente não se tratava de dançarinas de balé clássico. Pelo cachê das 20 moças juntas: R$ 100,00, não poderiam ser personagens do Degas coreografando Debussy. Evidente se tratar de streeps de boate de beira de estrada sem asfalto nem acostamento. Puta de fim de carreira, mesmo!
Felizmente alguém desconfiou da mitomania da “Gazeta” e proverbiais insuficiências intelectuais do senador Democrata (sic). Com sorte se suspendeu a convocação da Ministra Dilma para explicar aos parlamentares da CPI da Tapioca o michê das tais bailarinas, pois ia ficar muito chato a futura presidente da república comparecendo no Congresso com 20 vasinhos de flor de bailarina que comprou pelo cartão corporativo.
Só que aí é que tudo começou a dançar porque acharam de levantar os gastos corporativos dos cartões lá do final do governo FHC, em 2002, e respingou até nos corporativados do governo José Serra, em São Paulo. Pra tentar acertar o passo, mudaram a música inventando a feitura de um dossiê contra FHC e aí não teve jeito: a Ministra teve de explicar tim-tim por tim-tim.
Na verdade não explicou coisa alguma, porque a natureza de todo mito é racionalmente inexplicável e não consegue sobreviver além da especulação. Mas como o Senador Agripino, além de Homero às avessas – mitólogo ou mitômano sem história e cronologia convincente não faz Odisséia –, também não sabe aproveitar as boas oportunidades que se lhe apresentam para ficar calado. Conclusão: acabou lançando a candidatura Dilma em âmbito nacional, com aquela história da mentira ao torturador.
Ou seja, o que de mais edificante sobrou da CPI da Tapioca foi a confirmação da velha máxima de que, por trás de toda grande mulher, há sempre a sombra de um homem pífio a caminho do limbo.
Claro que a “Gazeta” saiu gritando aos quatro ventos que a CPI terminou em pizza, mas na verdade o que deu foi uma bruta indigestão de tapioca e meu amigo Príamo, coitado, tá com azia até hoje. Mas isso é porque além de nunca lhe informarem a quais estratosféricas dimensões remontariam os gastos dos cartões corporativos, tampouco contaram que “Os ministros Paulo Bernardo (Planejamento) e Jorge Hage (Controladoria Geral da União) anunciaram nesta quinta-feira restrições para o uso dos cartões corporativos. As medidas foram anunciadas após a suspeita de ministros terem usado irregularmente o cartão de crédito corporativo.
Entre as medidas anunciadas está a proibição de saques em dinheiro para pagamento de despesas cobertas pelo cartão... As novas regras prevêem também que ministros poderão autorizar o saque de 30% do limite, o que precisará ser justificado.” Embora tudo isso tenha sido informado pela própria “Gazeta” (Folha Online 31/01/08)
Claro que, se o governo adotou tais critérios de contenção de uso dos cartões corporativos já no início das denúncias, abusos ocorreram de fato. Mas Príamo só precisa saber dos abusos, e não é intenção do véu da mitomídia revelar muito além disso. E, se revela, nunca com o alarde das tapiocas e bailarinas
Menos ainda revelará que esses abusos só foram descobertos porque esse governo adotou o mais eficiente critério de contenção de qualquer abuso, já utilizado no Brasil: o Portal da Transparência.
O dia em que Príamo acionar o http://www.portaltransparencia.gov.br/, a “Gazeta” de seu bairro sofrerá sérios problemas de credibilidade. E coitada dela se, retirado o véu da mitomídia, Príamo se descobrir o Hércules que juntos todos somos.
Mas não posso finalizar sem antes explicar a diferença entre Des-mitificar e Des-mistificar. Em poucas palavras: desmi-tificar é destituir o mito, a mentira contada sobre alguém. Des-mistificar é destituir o mistério, o caráter místico de alguma coisa.
Um exemplo: Santo Expedito, o das causas impossíveis, foi retirado do calendário católico porque se concluiu que nunca existiu. Era um mito e, portanto, foi desmitificado num concílio. E olha que tem até igreja construída em intenção do Dito! Além de devotos, empresas, indústrias, comércios. É nome de diversas cidades espalhadas pelo mundo e até de time de futebol.
Agora, isso de des-mistificar já é muito mais complicado e descamba pro sobrenatural.
Exemplo: em 1994, FHC recebe de Itamar Franco um país com U$ 40 bilhões de reservas econômicas e uma dívida externa de aproximados U$ 145 bilhões. Em 2002, FHC repassa para Lula esse mesmo país com U$ 16,3 bilhões em reservas econômicas e uma dívida de U$ 240 bilhões.
Em 4 anos Lula paga a dívida externa triplicada ao longo de 8 e, hoje, o Brasil acumula reservas que beiram aos U$ 300 bilhões de dólares, aproximadamente 20 vezes mais daquela que se reduziu há quase ¾ do valor inicial.
Enquanto a coisa fica em números, redondos ou aproximados, tudo bem. Se pode, por lógica, concluir eficiências ou insuficiências, capacidades ou gatunagens. Compara-se com informações sobre congelamentos de salários, privatizações e ausência de obras públicas de um; e dos investimentos em programas e obras sociais, de infra-estrutura, educação, segurança... de outro.
Pode-se chegar a alguma conclusão, tirar uma média racional, prática, real, efetiva, concreta.
Vem uma crise internacional, e a realidade, por maior que seja o falatório e histeria das “Gazetas”, fica ainda mais palpável, evidente. Materializada.
Mas, quando entram os tais gastos estratosféricos dos cartões corporativos, aí tudo passa pro místico, e a gente se perde, porque a conversa passa pro terreno metafísico, inatingível à compreensão natural das coisas!
Pra mim, pelo menos, é um absoluto mistério como o governo Lula consegue permitir gastos estratosféricos no cartão corporativo e ao mesmo tempo pagar uma divida externa, sobre a qual fui criado consciente de que meu quaquaraneto já nasceria responsável, e o mundo inteiro concluía definitivamente impagável.
Aí mora um mistério mais inexplicável do que o da Santíssima Trindade. Em nome do Pai, filho e Espírito Santo, cruz credo! Nesse assunto eu não me meto que tenho medo de magias, assombrações e paranormalidades!
Príamo é que explique e canonize Lula pela multiplicação ou transubstanciação de gastos em proventos, porque fazer tudo o que fez e ainda liberar quantias estratosféricas é de superar o Expedido nas causas impossíveis! Sei lá se é questão de fé, não entendo de eucaristias, e isso de milagres nunca foi comigo.
Em assunto de assombração, tô fora!
Raul Longo
pousopoesia@gmail.com
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Ponta do Sambaqui, 2886
Floripa/SC
Raul Longo, jornalista, poeta e escritor, colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
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