domingo, 27 de dezembro de 2009

Raul Longo e a crônica da Urda - para calar bocudos e reaças

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Compas:

Já que o Plínio Marcos não está mais aqui para nos fazer companhia, tô enviando essa crônica da Urda pra rede castorphoto.

E pro Urariano e o Fernando tô mandando por serem desses poucos historiadores da gente brasileira que há por aí, tal qual Urda. É lamentável a falta de verdadeiros historiadores nesse país.

Plínio faz muita falta, por isso.

Vocês três: Urda, Urariano e Fernando, cada qual em seu distinto estilo, são imprescindíveis, também por isso. Precisamos de um verdadeiro historiador em cada estado (ao menos) p’ra contar a verdadeira história de nossa gente, pois os historiadores oficiais só o que fazem é contar dos europeus que se perderam aqui no Brasil e até hoje não fazem idéia de que lugar ocupam no mundo, se achando no centro de um planeta que ainda nem imaginam sua real conformação geóide.

Vejam o que me escreveu a Urda, para apresentar essa sua crônica: "ela foi escrita para tapar a boca duns escritores bocudos e direitões lá de Itajaí, que não se conformavam que tinha sido aberta, lá, a Editora Maria do Cais (da prefeitura) (tempo do PT) e estavam armando todo o tipo de escândalo (Maria do Cais era o nome de famosa prostituta local)".

Portanto, companheiros, vejam como essa lide de historiadores da gente nossa, em si, já é um ato de subversão dessa mentira social que nos é imposta há tantos séculos. É um desmascarar necessário, pelo qual sinto necessidade de lhes agradecer a dedicação ao ofício.

O que me provocou a leitura da crônica da Urda, que daria excelente peça de teatro e daí a imediata lembrança do Plínio e do Chico Buarque também, obrigou-me a dividi-la com vocês.

Grande abraço em todos!

Raul Longo (*)
www.sambaqui.com.br/pousodapoesia

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MARIA DO CAIS

Urda Alice Klueger (**)

Na verdade, Maria descendia de toda uma genealogia de Marias, conhecidas como Maria do Cais, porque nenhuma delas soube quem era o pai nem foi registrada no civil – e teve muito padre que também lhes negou o batismo.

Nasciam em pequenos lugares fétidos ali por perto dos navios, não tinham a chance da escola, e um dia substituíam suas mães, outras Marias do Cais que a morte levava prematuramente. Como é muito comum entre as putas, tinham uma grande compreensão humana, uma grande capacidade de aconchego e de carinho, mantinham o equilíbrio da sociedade capitalista que fazia de conta que elas não tinham importância; e sofriam as violências e os desajustes que teriam acontecido nas casas dos seus clientes, casos elas não existissem.

A avó da atual Maria do Cais se fora na década de sessenta, quando por ali aportou um navio de Liverpool e ela estava junto na grande pândega que os marinheiros fizeram no sortido e vistoso bar do alemão João da Silva, para não darmos o nome verdadeiro do alemão e ferirmos suscetibilidades, e, quem sabe, ser processada por algum dos seus descendentes, pois quem acredita que alemão tem botequim de grande pândega na beira do cais?

Aqueles marinheiros de Liverpool, no auge da carraspana de caipirinha com camarão, não se comportavam nada melhor que os velhos piratas da rainha Elizabeth I, e um deles sacou de uma arma e fez pontaria em cada garrafa de uma prateleira de licores finos que o alemão colecionava para os comandantes de navio. A coisa estava ficando complicada, o alemão precisava de auxílio, e não havia polícia que pudesse chamar que desse conta daqueles beberrões mal educados.

Havia que se apelar para Maria, e ele apelou.

Contrariamente aos marinheiros, Maria do Cais tinha uma fascinação emocional por Liverpool, e já ouvira com muita atenção certos jovens que por lá cantavam e encantavam o mundo, principalmente um tal de John Lennon que andava a pregar a paz.

Com sua compreensão humana, com sua capacidade de aconchego e de carinho, ela deixara entrar dentro dela certas mensagens dos jovens cantores de Liverpool, e agora também sentia que tinha que salvar o negócio para o alemão João da Silva. Como aqueles marinheiros eram de Liverpool, via-os com bons olhos, e sugeriu que continuassem a pândega em outro lugar, e salvou o bar do alemão.

Nas vascas da boa cachaça de Luiz Alves, os marinheiros ingleses há muito tinham bebido o juízo, e na curra que se seguiu um fez só de brincadeirinha, mas degolou Maria do Cais com uma navalha. Assustados com o sangue, os ingleses debandaram para o navio, e a polícia fez vista grossa, e o navio partiu sem percalços, pois fora só uma Maria Qualquer, Maria Sem Importância, Maria que salvava bares finos.

Dez a zero para o Capitalismo.

Então, com apenas 13 anos, a filha da Maria degolada substitui-a com todo o seu frescor imaturo.
Tornou-se popular Maria do Cais no seu viço juvenil, mas não sabia ainda muita coisa da vida, e em pouco tempo engravidava.

Ela não fazia a menor idéia de quem era aquela criança que esperava, mas nós sabemos: a criança fora gerada a partir de um confuso espermatozóide perdido entre outros espermatozóides estranhos, colocado dentro dela por outro sujeito chamado João da Silva, porque aquele era rico de verdade, e vou eu aqui arriscar a dar de verdade o seu nome de rico.

Armador da pesca, dono de frota bem equipada, de armazéns no cais, não é que lhe afundara o barco mais novo, aquele que ainda não tinha seguro, lançado ao mar fazia poucos dias no afã de pescar camarão até com radar?

Doze homens haviam morrido com o barco, mas isto não tinha importância: havia sempre gente à vontade querendo embarcar, aqueles pescadores pobres que se criavam ali pela Armação, pelos Navegantes, pelo Porto Belo, pelos Ganchos – gente não era problema.

Problema era o rombo econômico do navio sem seguro; problema era o cheiro de chifre queimado que o acompanhava agora que descobrira que a sua mulher gastava as tardes em que dizia estar no salão de beleza com jovem e loiro argentino, cujo nome, aqui, não interessa.

E o que mais lhe doía: o encontro dos dois era em motéis caros, e a mulher dele pagava as contas, aquela imbecil já ficando com cara de avó!

Tinha vontade de descontar na mulher o cheiro de chifre queimado e o prejuízo do barco afundado, mas ficaria bem feio diante da sociedade ele partir a cara dela.

Havia certos códigos entre a burguesia que deveriam ser respeitados.

E então ele procurou a puta mais bonita do porto, e lhe falaram na nova Maria, tão novinha, estreante ainda naquela vida de compreensão, aconchego e carinho, precisando sobreviver porque a mãe fora degolada, sem ninguém que a protegesse.

E esse João da Silva, a grana sobrando mesmo com o barco afundado, contratou Maria para uma tarde inteira, e levou-a para o motel de luxo onde sabia que sua mulher estava com o argentino loiro. E lá vingou-se de tudo, do barco sem seguro, do cheiro dos chifres, e fez com ela tudo o que sua imaginação permitia, e lhe quebrou a cara como gostaria de fazer com a sua mulher. De sobra, deixou-lhe uma criança na barriga.

E no outro dia, tão inocentes quanto um casal de noivos, ele e a mulher foram a um casamento chique no clube chique da cidade. Estavam salvas as aparências; burguês não faz essas baixarias de bater e/ou berrar.

Dez a zero para o Capitalismo.

E Maria do Cais nunca soube que a menininha que nasceu era filha daquele João da Silva que a deixara quase dez dias sem trabalhar, botando compressa de água e sal nos roxos da cara e do corpo.

Como as muitas outras anteriores a ela, Mariazinha, a menina que nascera num esconso perto do porto, sem batismo, sem registro e sem escola, começou a fazer a vida aos 15 anos, quando sua mãe foi levada pela AIDS, recebida de uns diletantes poetas que não tinham o que fazer, pois os pais ricos lhes permitiam entre outras coisas as boas drogas importadas injetáveis.

Os tais garotos acabaram se safando da doença maldita, com médicos particulares e medicamentos também importados, mas Maria não tinha instrução, não tinha nada a não ser seu coração grande, sua capacidade de aconchego e sua função de manter em equilíbrio uma sociedade capitalista muito conservadora, e não sabia o que fazer quando aquela peste veio e lhe tirou todas as forças. Os poetas diletantes viajaram para um centro de pesquisas na Suíça ,para experimentarem drogas novas; Maria do Cais foi enterrada como indigente.

Dez a zero para o Capitalismo!

A Nova Maria do Cais agora está perto do final da carreira. Carreira de puta é curta, é rápida, é difícil. Mas ela é bem bonita e ainda tem freguesia certa.

Há um velho rico chamado João da Silva, aquele mesmo que a gerou, que não falha, todas as semanas. Ele já passou da idade para certas coisas, já deveria mais é estar curtindo seus milhões de pijama e chinelo, mas tem uma tara muito grande por ela.

Maria do Cais lhe lembra uma tia pela qual foi apaixonado no seu tempo de adolescência, naquele tempo em que ainda não tinha coragem e traçava a tia na palma da mão.

Às vezes, por algum trejeito que ela faça, ele chega a pensar se não a teria gerado, algum dia, sem saber, e sua tara aumenta. E então Maria do Cais tem que se desdobrar por muitas horas fazendo todas as porcarias que o velho quer, porque sua carreira está no fim e ela precisa daquele dinheirinho.

Nem lhe passa pela cabeça o que o velho pensa, quando exige que ela o chame de "papai". Nem imagina que do seu mais recente casamento ele tem uma filha adolescente que também lhe desperta muitas taras, mas aí a coisa é diferente: é filha respeitada, filha de burguês, e a burguesia tem certas regras que devem ser respeitadas.

Dez a zero para o Capitalismo.

Quando, afinal, vão erguer uma estátua na praça principal da cidade, para essa Maria do Cais que consegue manter a sociedade em ordem?

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(*) Raul Longo, jornalista, poeta e escritor
(**) Urda Alice Klueger, escritora e historiadora

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PressAA

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