segunda-feira, 5 de abril de 2010

Seu Rob, o flanático

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Fernando Soares Campos

Toda cidade é única, com os seus próprios domínios culturais, costumes e tradições invioláveis, às vezes até sagrados, e os seus personagens típicos, inimitáveis. Entretanto podemos admitir que existem cidades que são mais únicas que as outras, lugares realmente sui generis. O Rio de Janeiro é uma dessas. Creio que em todo o mundo não exista outra cidade que possamos sequer compará-la ao Rio. Por isso mesmo, acredito que certas coisas só poderiam ocorrer aqui. Em qualquer outra parte do Planeta, determinados fatos não encontrariam ambiente nem personagens apropriados para se desenvolverem. Só na Cidade Maravilhosa.

Religião e política são vias doutrinárias favoráveis a fanatismos, extremismos, sectarismos e paixões desenfreadas em geral. Mas, no nosso país, é do futebol que emergem os mais apaixonados torcedores, os mais excêntricos fanáticos.

Da irreverência do povo carioca, surgem figuras como Robson Pereira dos Santos, um ferroviário aposentado, ex-morador do carioquíssimo bairro de Madureira. Seu Rob, como era conhecido no bairro, dizia que fanatismo é coisa de vascaíno ou corintiano. Costumava afirmar: "Fanatismo tem cura. Basta o cara ser tocado por um surto de razão. Aí é só reconhecer que o Flamengo é o melhor e passar pro lado de cá". Ele se declarava portador de "flamenguismo congênito", e explicava a coisa: "Quando a parteira me aparou, eu tava todo rubro pelo sangue da minha mãe e negro como Deus me fez".

Conhecia tudo sobre o clube de sua predileção. Já havia lido tudo sobre a história do Flamengo. Possuía todos os vídeos com as campanhas bem-sucedidas do seu time. Falava de todos os craques, de qualquer época, revelados pelo Flamengo. Naturalmente homenageava o Zico, seu ídolo maior, de uma maneira especial: na sala de visitas de sua casa, destacava-se um pôster gigante do Galinho de Quintino, impermeabilizado, encaixado em moldura artisticamente lavrada.

Muitas histórias envolvendo Seu Rob e a sua paixão pelo Flamengo fazem parte do folclore não só de Madureira, mas de toda a Zona Norte carioca. Porém, dentre as mais exóticas declarações de amor que fez ao Mengão, nada se compara à última manifestação do seu (desculpe, Seu Rob, onde o senhor estiver) fanatismo pelo clube da Gávea.

Certa feita, Seu Rob anunciou que daria uma festa para apresentar aos amigos o maior de todos os troféus, o troféu definitivo. "Inédito! Fui o primeiro a conquistar esse, vocês vão ver que ninguém tem nada parecido", garantia ele, ao formalizar o convite, porém sem revelar o tipo de objeto conquistado, deixando todo mundo muito curioso.

No dia e hora marcada, os convidados foram chegando e se espalhando pela casa. Muitos vestiam camisa do Flamengo. Apesar de haver entre eles alguns torcedores de outros clubes, ninguém se atreveu a comparecer àquela festa vestindo camisa de possíveis adversários do Mengão (seria uma grande desfeita). O anfitrião estava totalmente caracterizado: trajava uniforme completo, até chuteiras calçava.

Bebidas iam sendo servidas pela patroa e pelas filhas (um dos maiores desgostos de Seu Rob era não ter um filho, um varão, o qual pudesse vir a ser jogador de futebol. Do Flamengo, claro). E, ao som de um cavaquinho e instrumentos improvisados, um grupo animava o ambiente cantando sambas e pagodes. De vez em quando os batuqueiros entoavam o hino do clube amado, a pedido de algum bajulador que se empanturrava e se afogava naquela generosa boca-livre.

Lá para as tantas, quando ninguém já nem se lembrava da razão daquela festa, Seu Rob anunciou que iria apresentar o seu troféu.

"A maior homenagem que alguém já prestou ao time do seu coração" - falou emocionado. "Nunca, em parte alguma, alguém prestigiou seu clube de maneira tão completa, insuperável!" - garantiu.

Dirigiu-se ao seu quarto. Não se demorou, logo saiu de lá empurrando uma espécie de carrinho, tipo maca hospitalar, sobre o qual havia um objeto de grandes proporções, coberto por um lençol branco. Seu Rob estacionou o carrinho no centro da sala e, depois de ter todos os convidados concentrados ao redor daquele volume estranho, anunciou: "Agora vocês vão conhecer a maior demonstração de amor que um torcedor já fez ao time do seu coração, em todos os tempos!" - dizendo isso, retirou o lençol com um puxão, à maneira dos políticos quando descerram placas comemorativas.

O "OOOH!!!" uníssono ecoou por toda a vizinhança, seguido de "incrível!", "fantástico!", "extraordinário!".

Foi assim que Seu Rob apresentou a sua urna funerária.

Era um caixão vermelho e preto, tendo o emblema do Flamengo desenhado na altura do coração do futuro defunto. E, quando o insólito ataúde foi aberto, todos puderam apreciar o cintilante revestimento interno: um acolchoado de seda pura, rubro-negro (como não poderia deixar de ser), guarnecido de franjas e botões dourados. Um luxo!

Todos queriam tocar naquele caixão, expressar sua admiração por aquela obra de arte tão original, parabenizar o seu idealizador pela homenagem realmente inédita, pois ninguém ali tinha conhecimento de que tão elevada honra já tivesse sido prestada a quem quer que seja (ou ao que quer que fosse) em qualquer época ou lugar.

Seu Rob falou de suas exigências para a cerimônia fúnebre. Disse que, no lugar de ladainhas, queria o hino do Flamengo e mostrou as velas vermelhas e pretas que deveriam ser usadas no seu velório.

E a mortalha? Ora! seria, certamente, um completo uniforme rubro-negro; completíssimo, de chuteira e tudo o mais. E, finalmente, uma recomendação especial: na sua lápide deveria ser assentado o seguinte epitáfio: "Uma vez Flamengo, sempre Flamengo".

Até o final da festa, ninguém mais falou noutra coisa, só restaram comentários, elogios e parabéns àquele que todos consideraram o mais fiel torcedor da história dos desportos.

Alguém ainda sugeriu que aquele feito deveria figurar no Livro dos Recordes, o Guinness World Records Book, pois, na sua concepção, tratava-se do "recorde" da fidelidade (como se existisse uma espécie de fidelímetro para medi-la).

Quando se acabaram as bebidas e os tira-gostos, também a festa acabou-se. Enquanto a mulher e as filhas já começavam a dar duro na limpeza e arrumação da casa, Seu Rob, sentado no sofá, observava aquele alegre caixão. Aquela coisa parecia encarar a morte literalmente com esportiva. Era como se ele estivesse dizendo para a caveira implacável que não tinha medo da sua foice macabra, visto que iria enfrentá-la com o hino e as cores do Mengão.

Uma semana depois, numa tarde de domingo, o Flamengo jogava a final do campeonato. Por recomendação médica, Seu Rob não deveria assistir a partidas daquela importância, porquanto isso poderia perturbar as suas coronárias, já muito frágeis, protegidas por algumas pontes de safena.

A mulher e as filhas conseguiam mantê-lo afastado do Maracanã, porém não podiam impedi-lo de acompanhar as transmissões dos jogos pelo rádio. Foi assim que, quando o juiz apitou determinando o encerramento da partida, e o locutor, com o seu explícito entusiasmo parcial, anunciou o campeão daquela temporada, as sofridas coronárias de Seu Rob não suportaram tamanha exultação e se arrebentaram de alegria.

Antes, porém, sua família ainda ouviu o grito do guerreiro, categórico, definitivo: MENGÔÔÔ...


Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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PressAA

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2 comentários:

Anônimo disse...

Ah! História de framengueiro que acaba com final feliz. não tem graça.

Assaz Atroz disse...

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Mas, meu caro Anônimo, não entendemos como você pode considerar "final feliz" o estouro das coronárias do Seu Rob. Ah, feliz porque inaugurou o caixão, é isso?

Bom, se é assim, preferimos viver mais uns tempos, mesmo que seja desafortunado, malfadado, infausto...

Abraços
Editor-Assaz-Atroz-Chefe

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