terça-feira, 25 de maio de 2010

De animal se faz o homem

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Sulamita Esteliam

A animalidade é uma característica própria do ser humano. Só que o macho bípede não-emplumado, ao contrário do que ocorre no reino dito selvagem, consegue ser mais violento do que a fêmea, particularmente no ambiente doméstico. Na rua, entre seus pares, o valente espancador e/ou matador de mulheres e crianças pode até arrotar vantagem, mas costuma baixar a cabeça e enfiar o rabo entre as pernas diante de um predador, ou de quem grite mais alto do que ele.

Traduzida em violência, de qualquer natureza, a macheza nada mais é do que a outra face da covardia. Só os covardes, destituídos de amor próprio, usam a força física ou a incontinência verbal ou a instabilidade emocional e a morte como armas de destruição. Quem ama a si próprio, ama ao outro. E quem ama cuida, preserva, respeita, não machuca, não mata.

Dia 13 de maio, depois de 21 anos e um mês de omissão, o Poder Judiciário levaria a julgamento, no Fórum de Jaboatão dos Guararapes, Grande Recife, Pernambuco, o comerciante José Ramos Lopes Neto. Trata-se de assassino confesso da estudante universitária, Maristela Just, então com 25 anos, sua ex-mulher. José Ramos a executou com cinco tiros, dia 04 de abril de 1989. Fê-lo em casa dos pais da moça, para onde ela se retirara há dois anos. Pior, fê-lo na frente do casal de filhos – um bebê de dois anos e uma menina com quatro anos de idade. Sobrou bala para as crianças – na cabeça e no ombro, respectivamente. Sobrou, também, para um tio materno, Ulysses, que tentou defender a irmã e os sobrinhos. Sobreviveram os três, felizmente.

O tio veio a falecer recentemente, de causas naturais, apesar de ter carregado o projétil alojado na coluna durante todos esses anos. Os agora jovens adultos guardam as sequelas físicas, psicológicas e emocionais do desatino paterno. O pesadelo de terem visto a mãe sangrar pelas mãos de quem os ajudou a vir ao mundo junta-se à consciência da tentativa de parricídio. E soma-se à indignação gerada pelo sentimento de impotência frente à impunidade. Não há bálsamo que possa curar tal dor. Ainda que eles, ao contrário do pai, possam ter tido a benção de desenvolver compaixão. Apesar de tudo.

Preso em flagrante, o assassino confesso, José Ramos Lopes Neto, ficou na cadeia pouco mais de um ano. Um habeas corpus lhe devolveu a liberdade. Os conhecimentos, privilégios e relações jurídicas do pai, o advogado criminalista de renome, Gil Teobaldo de Azevedo, sustentaram o banho-maria do processo por mais de duas décadas. Apesar do pronunciamento pela Justiça, em 2002.

José Ramos Lopes Neto matou a mulher por ciúmes, por incapacidade de lidar com a rejeição advinda de anos de maus tratos, segundo a família da moça. Prejudicou a vida dos filhos e, no mínimo, virou do avesso o universo dos familiares de Maristela. A despeito disso, pôde tocar a vida como se não tivesse que prestar contas de seus atos à sociedade, e talvez nem a si mesmo. Difícil imaginar que uma pessoa, com a capacidade de fazer o que fez, possa vir a ser atormentada pela culpa.

O avô das crianças que assistiram ao pai trucidar a mãe, e se tornaram, elas próprias, alvos e vítimas, se diz advogado de defesa do filho, embora seja outro o nome que consta como defensor. De qualquer forma, cumpre duplo e maquiavélico papel, e o faz com gosto. Às vésperas do dia marcado para início do julgamento, fez questão de mostrar que manter a ferida sangrando não só é parte de sua estratégia, como é profissão de fé. Dia 12, em entrevista no programa Geraldo Freire, na Rádio Jornal, e dia 13, no Jornal do Commmercio, o causídico Gil Teodoro bradou, para todo Pernambuco, sem o menor constrangimento: “Se não matasse, não comia na minha mesa”.

Segundo ele, “um homem tem que estar acima das circunstâncias, tem que ter brio, dignidade, tem que preservar a honra”.

Eis a velha tática de transformar vítima em ré, tão cara aos arautos, aos porta-vozes do injustificável. Ao insurgir-se contra a memória de Maristela Just, o advogado de 77 anos – idade não é garantia de nada – não só justificou todos os abusos do filho contra ela, em vida. Matou-a pela segunda vez. O filho dele, ‘José’, não soube estar acima das circunstâncias. Não deu à ex-mulher o direito de escolha. Entretanto, traçou sua própria sorte, e tem que pagar por seus atos.

Em mais uma manobra pela impunidade, contudo, Teobaldo conseguiu que o julgamento fosse adiado, novamente, desta vez para dia 1º de junho. Réu e advogados – o oficial, Humberto Albino de Moraes, e o de fato, que é o pai – não compareceram ao fórum na quinta-feira, 13 de maio. A juíza Inês Maria de Albuquerque Alves, da 1ª Vara do Júri de Jaboatão, nomeou defensor público para garantir que o júri popular aconteça na nova data. Se José Ramos Lopes Neto não se apresentar dia 1º de junho, será julgado à revelia. É o que garante a magistrada e a promotora, Natália Campelo. É o que espera a sociedade pernambucana que, como a família da vítima, clama por justiça.

Entretanto, não se pode fugir do fato de que, para defender sua cria, o pai-advogado, Gil Teobaldo, vale-se de brechas jurídicas do nosso Código Penal. Mas vai além: não se importa em destilar preconceitos, arrogância e falta de escrúpulos. Termina por afrontar a lei, a ordem natural das coisas, os sentimentos da família, a dor dos próprios netos, a opinião pública, a Justiça - por mais cega que esta seja. Eis uma circunstância na qual cabe, feito luva, a expressão “tal pai, tal filho”.

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Sulamita Esteliam é jornalista e escritora. É autora dos livros Estação Ferrugem, romance-reportagem que resgata a história da região operária de Belo Horizonte-Contagem, Vozes, 1998; Em Nome da Filha – A História de Mônica e Gercina, romance-reportagem sobre um caso assombroso de violência contra mulher em Pernambuco; e o infantil Para que Serve Um Irmão, os dois últimos ainda inéditos. Participa da equipe do programa Violência Zero, levado ao ar todos os sábados, às 10h00, pela Rádio Olinda E-mail: sulamitaesteliam@hotmail.com

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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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2 comentários:

João Rossi Parreiras disse...

Brizola Neto lança a campanha pela legalidade: "Eleição se ganha no voto"!

Participem!

http://www.tijolaco.com/?p=15748

Subserviente, jamais! disse...

Tenho um texto meu que ao contrário de Sulamita, não credito esse título a essa tipo de criatura em que não há criador! Estes opróbrios que se dizem machos, vulgarmente usam plumagens para esconderem sua vilipendiosa castração, tanto no sentido lato, quanto no sentido mais transfigurado possível.
Quando de fato se deparam com o animal, bípede, humano, homem: nada o resta! Ou retornam ao âmago que pertencem: serem ignóbeis! Ou sublinarmente sua macheza esquiva-se do ralo ao esgoto, local próprio de algumas espécies que nos enojam, mas que ainda assim, esse tipo de lá é repudiado. Tem plumagens de pavão para estardalhar-se, mas não pode ser chamado de espécie alguma, pois todas elas são nobres demais para tal ignomínia.