domingo, 2 de maio de 2010

O IDD DO BRASIL É MAIS EMBAIXO

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“Ninguém duvide – declamou o novo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cezar Peluso – que todos aqui têm profunda aversão por atos de torturas ou sequestros”. Numa pirueta retórica, ele afirmou com palavras aquilo que acabara de negar com o voto. Parece aquela brincadeirinha infantil quando, contra todas as evidências, uma criança impõe sua “verdade” às demais, ameaçando: “Não duvida, hein! Quem duvida, perde a vida, come casca de ferida”.

Corro o risco de abrir a ferida, mas duvido. Data vênia, eu du-vi-do. De-u-du-vê-i-vi-dê-o-dó macaxeira mocotó! Eu, os Gaviões da Fiel e toda a torcida do Flamengo. Caso essa aversão existisse, o STF não teria proibido, nessa quinta-feira, por sete votos a dois, que se investigue e se puna os criminosos que torturaram presos políticos no período da ditadura militar. Se a aversão existe, ou ela não é assim tão “profunda”, ou então foi maior o medo de manifestá-la através do voto.

O STF foi acionado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que questiona a amplitude da Lei da Anistia por entender que ela não pode beneficiar quem é pago pelo Estado e, no exercício de suas funções, comete crimes hediondos como tortura, estupro, assassinato, ocultação de cadáver. Isso não é delito político, é bandidagem cometida à sombra do poder.

Esse foi também o entendimento dos ministros Ayres Brito e Ricardo Lewandowski. Os dois sim, com o voto, mostraram “profunda aversão” à tortura, mas foram vencidos. “Certos crimes são, pela sua natureza, absolutamente incompatíveis com a ideia de criminalidade política por convicção. Um crime político pressupõe um combate ilegal à estrutura jurídica do Estado. O torturador não é um ideólogo. Ele não comete nenhum crime político. É um monstro, um desnaturado, um tarado” – declarou Ayres Brito.

Na mesma linha de raciocínio, Lewandowski lembrou que a tortura é crime imprescritível segundo a Constituição de 1988 e de conformidade aos acordos internacionais assinados pelo Brasil que obrigam a punir violações aos direitos humanos. Portanto, agentes do Estado que tenham cometido atrocidades devem ser processados. “A análise sobre a motivação política ou não do crime caberia ao juiz ou ao tribunal encarregado do caso” – argumentou o ministro.

Casca de ferida

Dois ministros não votaram: Dias Toffoli, que se julgou impedido e Joaquim Barbosa, que está de licença médica. Do primeiro, nada esperemos. Quer mostrar serviço, já disse a que veio, rimaria e votaria com a maioria. O segundo, certamente, seria o terceiro voto contra a tortura. É por isso que muita gente no Brasil está rezando pela saúde do negão, reverenciado por todos nós por sua sensibilidade e senso de justiça.

Por que ministros íntegros, que manifestam retoricamente “profunda aversão” à tortura, votam contra o julgamento dos torturadores? Hic culum cotiae sibilare como nos ensina o direito romano. É aqui que o fiofó da cotia assovia, porque eles justificaram seu voto de forma estranha para leigos como eu e tu, leitor (a). Parece até um voto envergonhado. É melhor ouvi-los um pouco, através de trechos de suas declarações publicadas nos jornais:

Eros Gueiros, o relator, ele mesmo vítima das arbitrariedades: “A anistia não foi ampla, pois beneficiou torturadores, mas excluiu militantes que haviam sido condenados pelos tribunais militares. No entanto, esse foi o acordo possível à época. A lei da anistia não é uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada”.

Carmen Lúcia: “A lei (da anistia) não é tão justa como poderia ter sido, pois beneficia torturadores. Nem sempre as leis são justas, embora elas sejam criadas para ser”.

Peluso: “Os crimes cometidos na ditadura já estão prescritos e, portanto, imunes a qualquer punição”.

Celso de Mello: “A Constituição de 1988 estabelece que tortura é crime imprescritível, mas a lei da anistia é anterior a esta data e, portanto, não poderia ser examinada sob essa ótica”.

Ellen Gracie: “Anistia significa esquecimento, desconsideração intencional e perdão a ofensas passadas. E, como instrumento de pacificação a anistia deve ser necessariamente mútua”.

Por fim, a pérola do ministro Marco Aurélio de Mello, o primo do Collor de Mello: “Anistia é ato abrangente de amor, sempre calcado na busca do convívio pacífico entre os cidadãos”. Sem comentários sobre esse sólido argumento jurídico, porque seu autor tem legitimidade para fazê-lo. De qualquer forma, foi assim que o STF determinou o arquivamento da tortura.

Tortura arquivada



A decisão do STF, no entanto, foi reprovada pelo Comitê contra a Tortura da ONU, formado por juristas de renome internacional, vindos de todo o mundo. A alta comissária da ONU para direitos humanos, Navi Pillay criticou: “Essa decisão é muito ruim. Não queremos impunidade e sempre lutaremos contra leis que proíbem investigações e punições”. Ela entende do riscado, porque foi ela que julgou os crimes de guerra da Ruanda no Tribunal da ONU.

Os juristas da ONU deploram que o Brasil esteja seguindo uma direção diferente ao que ocorre na Argentina, Uruguai, Colômbia, Peru e outros países latino-americanos, que decidiram investigar a tortura cometida durante as ditaduras militares. “Leis de anistia foram tradicionalmente formuladas por aqueles que cometeram crimes e se concederam um auto-perdão que o século XXI não pode mais aceitar” – afirmou o jurista Fernando Mariño, acrescentando: “O Brasil está ficando isolado”.

Dessa forma, o Brasil deixou de afirmar com clareza para si mesmo e para o mundo que é contra a tortura. Não é convincente afirmar que daqui pra frente somos contra a tortura, quando daqui pra trás deixamos os torturadores em paz. Não dá para aceitar a filosofia do quem-comeu-comeu: quem torturou, torturou, está perdoado, mas quem não torturou, não tortura mais.

O ministro da Defesa Nelson Jobim e o deputado Aldo Rebelo, que ultimamente têm se manifestado sempre contra os índios, os sem-terra, os fracos, elogiaram a decisão. “Mexer na anistia seria reabrir velhas feridas sem ganhar nada em troca”, declarou Jobim nesse sábado à Folha de São Paulo. Pois é, né, o que é que a gente ganha punindo os torturadores? Só incompreensão da extrema direita e da área militar. Não vale a pena.

A questão não é o que ganhamos, mas o que perdemos. A impunidade de ontem estimula os torturadores de hoje. Nos últimos quinze dias, só em São Paulo foram registrados quatro casos de tortura, um deles provocou a morte de um motoboy, um trabalhador, cuja bicicleta havia sido roubada. O torturado de outro caso está em estado grave: levou uma coronhada, que afundou seu crânio. Os três torturadores não foram identificados, porque “a PM não colabora”, segundo o delegado que investiga o crime.

A aversão à tortura como um crime hediondo não pode funcionar só após 1988. Ela tem que ser permanente. Isso exige uma condenação clara dos torturadores, justamente para impedir que ela continue sendo praticada no país. Foi o que aconteceu na Argentina, onde os torturadores estão em cana, inclusive Reynaldo Bignone, o último general-presidente, que está com 82 anos e na semana passada foi condenado a 25 anos de prisão. Os argentinos sabem, agora, que quem tortura é punido.

Ninguém quer que se fuzile ou se torture os torturadores. A gente só quer saber quem são eles, quer que sejam identificados e julgados, com amplo direito de defesa, evitando que os crimes que praticaram sejam sepultados no esquecimento. A gente quer que a sociedade brasileira combata a tortura, em vez de conviver pacificamente com ela, de relativizá-la ou de justificá-la.

Se a ONU inventasse um Índice de Desenvolvimento Desumano (IDD), da mesma forma que tem o Índice Desenvolvimento Humano (IDH) o Brasil certamente iria ocupar um dos últimos lugares, depois dessa decisão do STF. O IDD do Brasil está lá embaixo.

P.S. - ORA VEJA! QUEM AINDA ACREDITA NA VEJA? Reproduzo aqui a nota enviada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro

Aos Editores da revista Veja:

Na matéria "A farra da antropologia oportunista" (Veja ano 43 nº 18, de 05/05/2010), seus autores colocam em minha boca a seguinte afirmação: "Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente cultural original" . Gostaria de saber quando e a quem eu disse isso, uma vez que (1) nunca tive qualquer espécie de contato com os responsáveis pela matéria; (2) não pronunciei em qualquer ocasião, ou publiquei em qualquer veículo, reflexão tão grotesca, no conteúdo como na forma. Na verdade, a frase a mim mentirosamente atribuída contradiz o espírito de todas declarações que já tive ocasião de fazer sobre o tema. Assim sendo, cabe perguntar o que mais existiria de "montado" ou de simplesmente inventado na matéria. A qual, se me permitem a opinião, achei repugnante. Grato pela atenção, Eduardo Viveiros de Castro

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José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (Uerj), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti http://www.taquiprati.com.br/home/index.php

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Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons

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