quinta-feira, 11 de março de 2010

CRÔNICA PARA A MULHER MADURA

.

Urariano Mota

Assim como a noite depois do dia, que não mais pode ser da natureza do dia, mas no seu escuro, nas suas estrelas, tem um encanto que por ser diverso não deixa de ser um encanto. Assim como nas sucessões do tempo de toda a natureza, da flor que fenece e cai e se ergue em outra a partir dos grãos derramados até a onda do mar que se espraia e se desfaz e se refaz dos seus restos em nova onda, assim o amor à mulher madura também se faz um sentimento curtido, de marcas e rugas que entranham à vista o sol que se foi e se organiza em nova pele. Que não tem a elasticidade e o frescor dos primeiros anos. Mas que tem um sabor íntimo do vinho de que se aprendeu a gostar, uma cumplicidade de lições apreendidas ao toque sem palavras, que o rebento dos primeiros fogos não poderiam construir.

Pois não é próprio do fogo o consumo e o autoconsumo voraz no incêndio, mas lento depois até as brasas que por fim esfriam? Pois sendo próprio do fogo a destruição inexorável, linear e de sentido único, do começo para o fim e sempre, é no entanto mais próprio da coisa humana o guardar semelhança com os fenômenos naturais, mas sem se deixar reduzir ao que não tem o salto e a qualidade da pessoa. Se os primeiros anos de amor são um fogo sem medida, e ao dizer isto guardamos apenas uma aproximação, pois não são exatamente um fogo a loucura e a impulsividade e o não ter limites os atos e ações daqueles anos, menos própria será a comparação do amor que amadurece ao fogo que lentamente se apaga. Pois se esse amor guarda correspondência com o próprio amadurecimento, e portanto faz sua casa nas rugas do rosto, e por rugas lembrarmos sempre os efeitos do sol ao longo do tempo na matéria couro do semblante, isso não quer dizer que o amor antigo, por lembrar sol e destruição do frescor, venha a ser um inventário de perdas.

Pois as perdas na vida não são um número de sinal negativo. Diríamos, num primeiro impulso, que as perdas se reservam em experiência. Dizendo menos mal, diríamos que as perdas na vida organizam um novo ser, porque a vitória não é bem um metódico e unidirecional fazer a coisa certa. Que a vitória é um fazer inúmeras coisas erradas, que ao receberem uma reflexão iluminam o fazer a coisa menos errada. Que a vitória sobre as trevas é como um labirinto que oculta o caminho secreto até a maravilhosa saída. Mas ainda aí, nessa tradução de perdas, o amor amadurecido ainda não é alcançado. Pois para ele, para esse amor que sofreu mudanças ao longo dos anos, o que há e o que houve não são bem perdas. É exatamente uma perda o não levar a amada para a cama com a mesma freqüência dos primeiros tempos? Um cínico, míope, diria que sim. Que uma coisa é fazer sexo, e aqui mais se mostra a miopia ao fazer equivalentes o amor e o sexo, pois uma coisa seria fazer sexo três vezes por dia nos 30 dias de um mês, todos os meses, e outra bem diferente é fazer sexo quando Deus, a conveniência, a oportunidade e as forças forem servidas. Já nessa resposta o cínico não vê a etapa superior que é o prazer que conhece sobre a fome onívora. A coisa madura evita caminhos precários, enquanto a coisa verde segue às cegas até atingir uma satisfação sempre insatisfeita.

É claro que o amor que amadurece não nos deixa menos carnais, mais virtuosos ou santos. De um ponto de vista menos prático, ele é a transformação daquele sentimento juvenil que só desejava a própria satisfação. Que em vez de abrigar buscava urgente abrigo. Em lugar da busca de formas perfeitas, e sabe-se lá o que a carência idealizava como perfeitas, coxas, busto, ventre, rosto, perfume e fetiches exuberantes, esse amor maduro compreende que a estação das formas fôrmas não se guarda nua em mármore. Que aquela pedra é forma oca de experiência. Mas que nem por isso esse amor transformado é um sentimento outonal, do ocaso. Ele não é o sentimento de alguém que vê a chuva batendo na janela, e aconchegado no calor da sala se diz, “para a rua não poderei mais sair”. Ele é apenas, talvez, uma doce intimidade conquistada. Sujeito a trovoadas, tempestades, pois a vida não é de paz, dentro e fora do sentimento. Mas sem aquelas soluções terminativas, definitivas, dos arroubos sectários dos primeiros anos, “ou isto ou aquilo”.

Esse amor maduro diz melhor, fala melhor às sístoles e diástoles do coração velho. Dele fala melhor o que não é conceito, ao que é essencial encarnado no destino de toda a gente. E o essencial é que as rugas, as gorduras, os ossos frágeis do objeto que se ama se revelam uma fortaleza. O amor que amadurece ama a pessoa exatamente nesse tempo de aparente decadência física, e por causa mesmo dessas formas frágeis. As fragilidades físicas se tornam uma qualidade, pois remetem a uma história comum. Esse amor apenas deseja dizer, “saiba que aprendi muito a amar as suas rugas”. O que quer dizer, ele, esse novo amor, não quer vê-la sozinha, ele a quer a seu lado nos próximos, nos poucos e infelizmente poucos anos que lhes restam.

Como flores na praia açoitadas pelo vento. Até que venham as ondas e tudo cubram.


Urariano Mota, escritor e jornalista, autor de “Soledad no Recife” (Boitempo – 2009) seu último romance, indicado como um possível livro do ano pelo conceituado site Nova Cultura, elaborado e administrado na Alemanha, com os destaques literários da CPLP - Comunidade de Países de Língua Portuguesa. É colunista do site Direto da Redação, edita o blog SAPOTI DE JAPARANDUBA http://urarianoms.blog.uol.com.br/

Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz


Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

.

PressAA

.


Nenhum comentário: