Laerte Braga
Anamara é uma ex-policial militar. Dá plantão no programa Big Brother Brasil. Dia desses, diante da confissão de uma outra “sister”, chamou um brother e pediu-lhe que usasse uma cenoura no lugar do pênis. Ia ensinar à sister como fazer sexo oral.
O “evento” foi transmitido ao vivo pela maior rede televisão do País, a GLOBO, comentado e mostrado em rádios, jornais e revistas do Brasil inteiro no dia seguinte, e muitos sites da rede mundial de computadores instaram seus participantes a emitir opinião sobre o assunto.
O problema não está no “blow job”, como costumava escrever o jornalista Paulo Francis, mas na exposição pública das vísceras, da mostra do ser objeto. A “importância” e a “necessidade” de se colocar na vitrine de apto(a) ao mundo contemporâneo, o do espetáculo.
A GLOBO é a paladina da moral, dos bons costumes e da cruzada contra a corrupção. Nas eleições de 2006 criou a “caravana da cidadania”, cujo objetivo era “exibir” aos brasileiros as mazelas do seu País e culpar o governo por todas elas, abrindo espaços à oposição. Como agora.
O mesmo jornalista que chama Anamara de heroína, “como vão os nossos heróis”, apresentou e chefiou a “caravana da cidadania”. Pedro Bial. Dia desses disse que não se preocupa com credibilidade, “quem tem que se preocupar com credibilidade é o padre, o pastor, eu não quero fundar uma igreja”. Em 2006 foi chamado de mentiroso pelo governador do Paraná, Roberto Requião. Engoliu a afirmativa do governador pelo simples fato que havia mentido sim.
Imagino o estupor do primeiro humano a surgir no curso do processo de evolução das espécies. Suponho que uma de suas reações tenha sido a de enxergar, ver, perceber, sentir tudo à sua volta e sentir-se. Terá sido uma reação de medo, de um fantástico encantamento com o desconhecido e o desconhecer-se. O não saber-se.
Jung constata e afirma que “estamos de tal modo habituados à natureza aparentemente racional do nosso mundo que dificilmente podemos imaginar que nos aconteça alguma coisa impossível de ser explicada pelo bom senso comum. O homem primitivo, ao se defrontar com esse tipo de conflito, não duvidaria de sua sanidade – pensaria em fetiches, em espíritos ou em deuses”.
E o mesmo Jung. “as emoções que nos afetam são, no entanto, exatamente as mesmas. Os receios que nascem de nossa elaborada civilização podem ser mais ameaçadores do que os atribuídos pelos povos primitivos aos demônios. A atitude do homem civilizado faz-me, por vezes, lembrar de um paciente psicótico da minha clínica, que era médico. Uma manhã perguntei-lhe como se sentia. Respondeu-me que passara uma excelente noite desinfetando o céu inteiro com cloreto de mercúrio, mas durante todo esse processo sanitário não encontrara o menor traço de Deus”
O empresário Luís dos Santos, de 49 anos, pai de três filhos, viajou da cidade mineira de Ponte Nova, Minas Gerais até a cidade de São Paulo, para exibir sua repulsa ao crime cometido por Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá. Autocrucificou-se à porta do Fórum rodeado de fotografias e cartazes contra o pai e a madrasta de Isabela Nardoni. Disse a jornalistas que não se pretende fazer um Cristo, mas manifestar seu protesto contra a natureza bárbara do crime.
Foucault ensaia – “nós, os modernos, começamos a nos dar conta de que, sob a loucura, sob a neurose, sob o crime, sob as inadaptações sociais corre uma espécie de experiência comum das angústias”.
Fala do “confisco da ética sexual através da moral da família”.
“O amor dessacraliza-se através do contrato... O casamento é uma coisa santa e sagrada, e é próprio das pessoas honestas começar por esse ponto. Não é mais o amor que é sagrado, mas apenas o casamento, e diante do tabelião.”
“Infeliz a terra de onde saem continuamente uma fumaça tão espessa, vapores tão negros que se elevam dessas paixões tenebrosas, e que nos ocultam o céu e a luz de onde partem também os clarões e os relâmpagos da justiça divina contra a corrupção do gênero humano”.
Alexandre Nardoni é o típico padrão de “brother”. Boa pinta, classe média, malha, mantém a forma física e está em dia com as regras que regem o mundo nos dias atuais. Ana Carolina Jatobá não é necessariamente uma “sister”, mas está bem próxima de ser nos seus desajustes e desarranjos de uma angústia contida nos padrões do mercado, o novo deus e no ser primitivo que traz em seu inconsciente. Que como o de todos nós é coletivo e ao contrário do se supõe não é estático, agrega continuamente. Como desabrocha. Saiu do nada, virou Nardoni e agora lê a bíblia.
“Em lugar de Deus ou do medo de Deus, há uma neurose de angústia ou espécie de fobia. A emoção conservou-se a mesma, mas a um tempo, o nome e a natureza do seu objeto mudaram para pior” (Jung).
O espetáculo. O homem autocrucificado, a cobertura contínua de cada detalhe do julgamento, desde o choro de Ana Carolina, da exibição de uma foto da moça lendo a bíblia em sua cela, a um revival da barbárie cometida contra Isabela, tudo num batalhão de repórteres, comentaristas, a multidão na expectativa de se ver saciada de justiça num show que pode ser visto em casa, comodamente, diante da telinha, explodindo em revolta e dando vontade de comer pipoca enquanto espera a decisão final.
“O espetáculo é a principal produção da sociedade atual” (Guy Debort, “A sociedade do espetáculo”, Contraponto).
“É o momento histórico que nos contém”.
“A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social acarretou, no modo de definir toda a realização humana, uma evidente degradação do ser para o ter. A fase atual, em que a vida social está tomada pelos resultados acumulados da economia, leva a um deslizamento generalizado do ter para o parecer, do qual todo “ter” efetivo” deve extrair seu prestígio imediato e sua função última. Ao mesmo tempo, toda realidade individual tornou-se socialmente, diretamente dependente da força social moldada por ela. Só lhe é permitido aparecer naquilo que ela não é.”
Alexandre e Ana Carolina, criminosos, sim, integram uma elite montada em ilusão, em vento, que se abriga em condomínios e assalta faxineiras a pretexto de limpar o mundo de “vagabundas”, mas com o produto do assalto compram a ilusão maior, a das drogas. E, na avaliação do pai de um dos assaltantes, “meu filho estuda direito, não pode ficar preso com pessoas comuns”.
Ou Boninho e seus amigos, da janela de seu apartamento em Copacabana, ao lado de um bando de desvairados e desvairadas, jogando água suja naquelas que, a critério deles, podem ser rotuladas de vagabundas.
Senhoras e senhores, para melhor assistir ao espetáculo Nardoni o ideal é pipoca e ração humana, já que horas diárias de televisão podem contribuir para que a forma seja perdida.
É importante não se esquecer do JORNAL NACIONAL e todos os jornais menores, quaisquer que sejam, na verdade absoluta do espetáculo.
Do contrário não se conseguirá atingir o estádio Homer Simpson, que na opinião de William Bonner é o padrão do telespectador brasileiro, alvo de um processo espetaculoso de condenação da loucura.
Desde que, as ordens sejam obedecidas.
Não se está julgando um casal que assassinou de forma cruel e perversa a uma menina de nove anos, filha de um dos criminosos.
Há um show, um espetáculo, em que se digladiam a ordem, a democracia cristã e ocidental sob a guarda de benfajezos e benvindos homens santos (Bento XVI e Edir, o Macedo), que para qualquer emergência tem armas capazes de explodir tudo em nome da sanidade que essa mesma democracia significa.
“O espetáculo é o sonho mau da sociedade moderna aprisionada, que só expressa afinal o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guarda desse sono”.
Quando for ao supermercado não se esqueça do tira manchas adequado. Como diz Angélica, não aquela mancha sensual e natural de sua perna, mas a que macula os tecidos quaisquer que sejam.
Ah! E tem o desinfetante inteligente que poupa a você o esforço de manter a casa, o banheiro acima de tudo, perfumada e com aquela sensação de limpeza que só OMO dá.
No mais, vá a um desses blogs que costumam perguntar quem quer um bom dia, dê o seu palpite, emita seu comentário sobre Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá. E não perca as “aulas” de Marinara sobre blow job.
Por acaso alguém tem idéia de quantas vidas se foram nos habeas corpus a bandidos que Gilmar Mendes concedeu ao longo de sua carreira de “magistrado”?
É claro que não, ele limpa o sangue depois que mata, deixa o ambiente com cheiro de coisa nova. Não existe o corpo visível de uma criança inocente estatelada e morta no chão frio de um prédio. Só os corpos invisíveis do espetáculo. Os mortos vivos.
Esses não interessam ao espetáculo, são os mortos produzidos pelos produtores.
Laerte Braga é jornalista. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA
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Um comentário:
Ola,
sou Maria Zuppello, uma jornalista italiana morando em São Paulo. Leu este post sobre o caso Nardoni. Eu também escrevi sobre este caso no meu blog
http://ocaminhodafloresta.blogspot.com/2010/03/o-caso-nardoni.html
Obrigada pela atenção
Maria
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