terça-feira, 28 de setembro de 2010

O CAVALEIRO DA TRISTE FIGURA




Num lugar da Paulicéia Desvairada, cujo nome não quero lembrar, vivia há muito tempo um fidalgo, que ficou conhecido como o Cavaleiro da Triste Figura. Beirava os 80 anos. Era de compleição dura, seco de carnes, enxuto de rosto, nariz adunco, com aparência física do personagem do filme russo de Kozintsev. Era o próprio conde de Rachimbal.

Na sua juventude, esse cristão novo entregou-se à leitura de livros de filosofia e de economia. Inconformado com a existência, de um lado, de donos de fábricas, de terras e de bancos e, de outro, de proletários destituídos de bens, em situação de extrema miséria, possuidores apenas de sua força de trabalho, o nosso cavaleiro quis saber por que uns poucos têm tanta terra, tanto dinheiro, e muitos não têm onde cair morto, onde cultivar uma roça. A propriedade privada era mesmo um roubo?

Foi procurar nos livros a resposta sobre as injustiças do mundo. Começou com os dois tomos da Filosofia da Miséria de Proudhon e continuou com a Miséria da Filosofia de Karl Marx, acompanhando a polêmica sobre o que é o lucro e o que é o salário. Na Contribuição para a crítica da Economia Política descobriu a contradição entre as forças produtivas materiais da sociedade e as relações sociais de produção.

Ampliou suas leituras, varando dia e noite sem dormir. Compreendeu o que era o lucro no sistema capitalista, quando devorou os três tomos de O Capital onde aprendeu o conceito de ‘mais-valia’, depois de ruminar – já que ninguém é de ferro – o manual didático da chilena Marta Hanecker – O Capital: conceitos fundamentais – e até mesmo o curso dado aos operários belgas pelo filósofo húngaro-francês, Georges Politzer, em cujo livro - Princípios Elementares de Filosofia - encontrou mastigadas e vulgarizadas as leis do materialismo dialético.

Daí decidiu que não era suficiente compreender o mundo, era necessário mudar o mundo. Como? Leu no Manifesto Comunista que a história social da humanidade é a história da luta de classes. Sonhou com o socialismo e com uma sociedade sem classes folheando as páginas da Crítica ao Programa de Gotha. De tanto se empanturrar de literatura marxista, esse fidalgo paulista acreditou piamente na revolução proletária.

Dom Plinio Del Tieté

Certo de que a classe operária tinha condições de emancipar toda a sociedade, o nosso cavaleiro não quis esperar mais tempo para se tornar, ele próprio, um revolucionário, um cavaleiro andante. Montou seu cavalo Psol, fraco e esquálido, e fugiu de casa em busca de aventuras, com o objetivo de endireitar o que estava torto, corrigir os abusos, praticar a justiça. Pegou uma armadura enferrujada de seu bisavô, fez uma viseira de papelão, armou-se com uma lança e se auto-intitulou Dom Plínio Del Tieté.

Muita gente achou que o excesso de leituras havia deixado seu miolo mole, fazendo com que perdesse o juízo. Foi visto como louco. Ninguém aceitava que os ímpetos e os sonhos da juventude pudessem habitar aquela carcaça envelhecida pelo tempo. Confundido com um Enéas de esquerda – meu nome é Plínio – ele, no seu cavalo, tololoc, tololoc, saiu pra luta, tentando resgatar a esperança no horizonte socialista, com alucinações, como se estivesse vivendo ainda no século XIX, quando o fantasma do comunismo percorria a Europa.

Na sua primeira aventura em suas andanças pelo mundo, o nosso fidalgo encontra um menino, um camponês de nome Andrés, que amarrado numa árvore, era açoitado pelo seu patrão, um cruel latifundiário. Dom Plínio propõe, então, a expropriação de todas as terras que utilizassem trabalho escravo e infantil e a redução da propriedade rural. “Ninguém pode ter terras com mais de mil hectares” – ele sentencia. Advoga também a redução da jornada de trabalho de 40 horas, sem redução salarial.

Mais adiante, depois de lutar contra o latifúndio e o agro-negócio, o nosso cavaleiro visionário dá de cara com outros monstros – os moinhos de vento da agiotagem internacional e da globalização, com seus braços e seus tentáculos assustadores, contra quem ele arremete com toda sua fúria, consciente de que lutava contra gigantes. Quer destruí-los, deseja feri-los mortalmente, clamando por uma auditoria da dívida pública, a suspensão do pagamento dos juros e amortizações, além da taxação progressiva das grandes fortunas.

O nosso cavaleiro se decepciona com seu fiel escudeiro barbudo – Sancho Pança – a quem havia ajudado a se tornar governador de uma ilha, transformada pelo novo governante em um paraíso dos banqueiros e do mercado financeiro, com elevados juros que sangravam cotidianamente o Orçamento da Insula. O cavaleiro critica a política assistencialista, que distribui bolsas - bolsa-disso, bolsa-daquilo - mas não toca nas relações sociais, nem no sistema de propriedade dos meios de produção, nem contribui para mobilizar e organizar a classe operária que vai redimir o mundo.

Na ânsia de combater as injustiças, ele segue enfrentando situações de perigo, mas é ridicularizado, surrado por pastores, pisoteado por ovelhas, cassado por militares, amarga o exílio, leva uma surra de repolhos testemunhada pelo duque de Ibope, que registra que suas façanhas são aprovadas e levadas a sério por apenas 1% dos habitantes da Insula. Muita gente ri dele, debocha desse cavaleiro, “que es valiente, pero tonto”.

A geral copulação

Por que um discurso que se apresenta como “uma opção de esquerda, socialista, popular, feminista, anti-racista e ecológica” não encontra eco na população da Insula? Por que ele é levado para o campo do burlesco, do grotesco, do pícaro? A ironia do destino é que se trata de um discurso generoso e combativo, que nos convida a sonhar e a acreditar na possibilidade de construir uma sociedade mais justa. Tudo que ele diz é ético e justo. Tem razão em tudo. Mas não cola.

Ele luta por saúde pública universal, integral e com controle social; educação gratuita e de qualidade para todos; meios de comunicação efetivamente democratizados; extirpação definitiva do racismo, da homofobia e do machismo. Quando é ridicularizado, quem está sendo achincalhado? É ele, individualmente, ou as idéias da construção de um mundo diferente, consideradas delirantes porque defendem a utopia?

Será que os habitantes da Insula perderam a capacidade de sonhar e de buscar o reino da utopia? Estão acovardados, fracos, envelhecidos? Trocaram as proezas pelas “nãoezas”? Perguntam-se: de que serve a revolução sem a geral copulação? Ou o que está afastando as pessoas é certa soberba do cavaleiro acuado, isolado, que acredita deter o monopólio da verdade e não consegue costurar alianças com outros setores da sociedade?

Devemos agradecer a Dom Plinio Del Tieté, esse atrevido, lírico, fora de moda, por nos mostrar como somos ridículos quando colocamos em público o sonho de mudar o grande teatro do mundo? Por nos ajudar a ver, como num espelho, que somos “tantas vezes reles, tantas vezes vil, tantas vezes irrespondivelmente parasitas e indesculpavelmente sujos”? Ou, enfim, a triste figura, na realidade somos nós, que ridicularizamos seu discurso, porque a utopia é mesmo ridícula no espelho pragmático da política?

No debate da próxima quinta-feira, 1º de outubro, ele entrará nos estúdios da Tv Globo montado em seu cavalo Psol, com sua lança em riste, como se estivesse vivendo no tempo da cavalaria. No final da história original, Dom Quixote morre como um piedoso cristão, mas nos deixa de herança o direito de sonhar, apesar de nossas fraquezas. E Dom Plinio Del Tieté, o que fará depois das eleições de 3 de outubro? E nós?

P.S.1 - No roteiro original, Sancho Panza renuncia ao poder, mas não compactua com as práticas políticas dos duques - os banqueiros da época, de cujos aplausos desconfia.

P.S.2 – A partir dessa data, os interessados em receber a coluna tem que seguir o taquiprati no twitter: @ taquiprati. Agradecemos as aulas sobre Dom Quixote ministradas por MACAL.
José Ribamar Bessa Freire
26/09/2010 - Diário do Amazonas


Num lugar da Paulicéia Desvairada, cujo nome não quero lembrar, vivia há muito tempo um fidalgo, que ficou conhecido como o Cavaleiro da Triste Figura. Beirava os 80 anos. Era de compleição dura, seco de carnes, enxuto de rosto, nariz adunco, com aparência física do personagem do filme russo de Kozintsev. Era o próprio conde de Rachimbal.

Na sua juventude, esse cristão novo entregou-se à leitura de livros de filosofia e de economia. Inconformado com a existência, de um lado, de donos de fábricas, de terras e de bancos e, de outro, de proletários destituídos de bens, em situação de extrema miséria, possuidores apenas de sua força de trabalho, o nosso cavaleiro quis saber por que uns poucos têm tanta terra, tanto dinheiro, e muitos não têm onde cair morto, onde cultivar uma roça. A propriedade privada era mesmo um roubo?

Foi procurar nos livros a resposta sobre as injustiças do mundo. Começou com os dois tomos da Filosofia da Miséria de Proudhon e continuou com a Miséria da Filosofia de Karl Marx, acompanhando a polêmica sobre o que é o lucro e o que é o salário. Na Contribuição para a crítica da Economia Política descobriu a contradição entre as forças produtivas materiais da sociedade e as relações sociais de produção.

Ampliou suas leituras, varando dia e noite sem dormir. Compreendeu o que era o lucro no sistema capitalista, quando devorou os três tomos de O Capital onde aprendeu o conceito de ‘mais-valia’, depois de ruminar – já que ninguém é de ferro – o manual didático da chilena Marta Hanecker – O Capital: conceitos fundamentais – e até mesmo o curso dado aos operários belgas pelo filósofo húngaro-francês, Georges Politzer, em cujo livro - Princípios Elementares de Filosofia - encontrou mastigadas e vulgarizadas as leis do materialismo dialético.

Daí decidiu que não era suficiente compreender o mundo, era necessário mudar o mundo. Como? Leu no Manifesto Comunista que a história social da humanidade é a história da luta de classes. Sonhou com o socialismo e com uma sociedade sem classes folheando as páginas da Crítica ao Programa de Gotha. De tanto se empanturrar de literatura marxista, esse fidalgo paulista acreditou piamente na revolução proletária.

Dom Plinio Del Tieté

Certo de que a classe operária tinha condições de emancipar toda a sociedade, o nosso cavaleiro não quis esperar mais tempo para se tornar, ele próprio, um revolucionário, um cavaleiro andante. Montou seu cavalo Psol, fraco e esquálido, e fugiu de casa em busca de aventuras, com o objetivo de endireitar o que estava torto, corrigir os abusos, praticar a justiça. Pegou uma armadura enferrujada de seu bisavô, fez uma viseira de papelão, armou-se com uma lança e se auto-intitulou Dom Plínio Del Tieté.

Muita gente achou que o excesso de leituras havia deixado seu miolo mole, fazendo com que perdesse o juízo. Foi visto como louco. Ninguém aceitava que os ímpetos e os sonhos da juventude pudessem habitar aquela carcaça envelhecida pelo tempo. Confundido com um Enéas de esquerda – meu nome é Plínio – ele, no seu cavalo, tololoc, tololoc, saiu pra luta, tentando resgatar a esperança no horizonte socialista, com alucinações, como se estivesse vivendo ainda no século XIX, quando o fantasma do comunismo percorria a Europa.

Na sua primeira aventura em suas andanças pelo mundo, o nosso fidalgo encontra um menino, um camponês de nome Andrés, que amarrado numa árvore, era açoitado pelo seu patrão, um cruel latifundiário. Dom Plínio propõe, então, a expropriação de todas as terras que utilizassem trabalho escravo e infantil e a redução da propriedade rural. “Ninguém pode ter terras com mais de mil hectares” – ele sentencia. Advoga também a redução da jornada de trabalho de 40 horas, sem redução salarial.

Mais adiante, depois de lutar contra o latifúndio e o agro-negócio, o nosso cavaleiro visionário dá de cara com outros monstros – os moinhos de vento da agiotagem internacional e da globalização, com seus braços e seus tentáculos assustadores, contra quem ele arremete com toda sua fúria, consciente de que lutava contra gigantes. Quer destruí-los, deseja feri-los mortalmente, clamando por uma auditoria da dívida pública, a suspensão do pagamento dos juros e amortizações, além da taxação progressiva das grandes fortunas.

O nosso cavaleiro se decepciona com seu fiel escudeiro barbudo – Sancho Pança – a quem havia ajudado a se tornar governador de uma ilha, transformada pelo novo governante em um paraíso dos banqueiros e do mercado financeiro, com elevados juros que sangravam cotidianamente o Orçamento da Insula. O cavaleiro critica a política assistencialista, que distribui bolsas - bolsa-disso, bolsa-daquilo - mas não toca nas relações sociais, nem no sistema de propriedade dos meios de produção, nem contribui para mobilizar e organizar a classe operária que vai redimir o mundo.

Na ânsia de combater as injustiças, ele segue enfrentando situações de perigo, mas é ridicularizado, surrado por pastores, pisoteado por ovelhas, cassado por militares, amarga o exílio, leva uma surra de repolhos testemunhada pelo duque de Ibope, que registra que suas façanhas são aprovadas e levadas a sério por apenas 1% dos habitantes da Insula. Muita gente ri dele, debocha desse cavaleiro, “que es valiente, pero tonto”.

A geral copulação

Por que um discurso que se apresenta como “uma opção de esquerda, socialista, popular, feminista, anti-racista e ecológica” não encontra eco na população da Insula? Por que ele é levado para o campo do burlesco, do grotesco, do pícaro? A ironia do destino é que se trata de um discurso generoso e combativo, que nos convida a sonhar e a acreditar na possibilidade de construir uma sociedade mais justa. Tudo que ele diz é ético e justo. Tem razão em tudo. Mas não cola.

Ele luta por saúde pública universal, integral e com controle social; educação gratuita e de qualidade para todos; meios de comunicação efetivamente democratizados; extirpação definitiva do racismo, da homofobia e do machismo. Quando é ridicularizado, quem está sendo achincalhado? É ele, individualmente, ou as idéias da construção de um mundo diferente, consideradas delirantes porque defendem a utopia?

Será que os habitantes da Insula perderam a capacidade de sonhar e de buscar o reino da utopia? Estão acovardados, fracos, envelhecidos? Trocaram as proezas pelas “nãoezas”? Perguntam-se: de que serve a revolução sem a geral copulação? Ou o que está afastando as pessoas é certa soberba do cavaleiro acuado, isolado, que acredita deter o monopólio da verdade e não consegue costurar alianças com outros setores da sociedade?

Devemos agradecer a Dom Plinio Del Tieté, esse atrevido, lírico, fora de moda, por nos mostrar como somos ridículos quando colocamos em público o sonho de mudar o grande teatro do mundo? Por nos ajudar a ver, como num espelho, que somos “tantas vezes reles, tantas vezes vil, tantas vezes irrespondivelmente parasitas e indesculpavelmente sujos”? Ou, enfim, a triste figura, na realidade somos nós, que ridicularizamos seu discurso, porque a utopia é mesmo ridícula no espelho pragmático da política?

No debate da próxima quinta-feira, 1º de outubro, ele entrará nos estúdios da Tv Globo montado em seu cavalo Psol, com sua lança em riste, como se estivesse vivendo no tempo da cavalaria. No final da história original, Dom Quixote morre como um piedoso cristão, mas nos deixa de herança o direito de sonhar, apesar de nossas fraquezas. E Dom Plinio Del Tieté, o que fará depois das eleições de 3 de outubro? E nós?

P.S.1 - No roteiro original, Sancho Panza renuncia ao poder, mas não compactua com as práticas políticas dos duques - os banqueiros da época, de cujos aplausos desconfia.

P.S.2 – A partir dessa data, os interessados em receber a coluna tem que seguir o taquiprati no twitter: @ taquiprati. Agradecemos as aulas sobre Dom Quixote ministradas por MACAL.
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José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (Uerj), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti

Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz

Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons

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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

DILMA COM 51%

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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

DE VOLTA À DITADURA MILITAR

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Rui Martins*

Na rua, alguns carros levantavam uma poeira avermelhada, criada pela estiagem de três meses, e o sol forçava os passantes a escolher o lado da sombra ou a colocar um chapéu de boiadeiro.

Meu relógio marcava pouco mais de meio-dia e, de pé, aguardava o atendimento, na fila de um banco, na cidade vizinha ao meu vilarejo natal. O espaço era diminuto, mas situado no primeiro andar, nos protegia dos escaldantes raios solares. Será o calor que nos faz falar e trocar idéias com desconhecidos? Por que as populações meridionais parecem mais falantes e mais extrovertidas? Quantas situações similares já vivi em Paris ou Genebra, mas num tedioso silêncio, enquanto aguardava chegar minha vez.

Conversávamos. Para mim, recém-chegado, reouvir pessoas falando na minha língua é sempre um agradável reencontro que agora, renovo anualmente. A questão passou a ser documentos e a maneira mais rápida de se obter sua carteira de identidade, possibilidade criada pelo Poupa Tempo. Já havia ouvido falar e o tema me interessava porque preciso orientar minhas filhas sobre como tirarem a carteira de identidade. Um senhor, pouco distante na fila, contava com alguém de sua família renovou sua identidade em tempo recorde, nesse serviço na Praça da Sé, centro de São Paulo.
Agradeci a informação e como tenho a tendência de falar demais, contei que, por viver no Exterior, tenho de me reatualizar periodicamente sobre as novidades brasileiras. Uma coisa puxa outra e, logo me perguntaram desde quando vivo no Exterior, dei uma resposta precisa e já repetida tantas vezes – desde 1969, exílio durante a ditadura militar.

Longe estava de imaginar que essas palavras provocassem, lá dentro, o levantar de uma poeira, negra e irrespirável, no corredor apertado, onde esperávamos nossa vez.
« A época militar foi a mais próspera deste País », vaticinou um senhor, que se identificou como ex-militar, agora reformado. E, de repente, ali na minha frente sorvido por uma espécie de buraco negro, tive a impressão de ter retornado àquela época conturbada da ditadura, do receio de ser preso, das arbitrariedades policiais, das torturas, do silêncio forçado.

Até aquele momento, imaginava sempre terem desaparecido definitivamente, no Brasil, os fantasmas da ditadura e não esperava, num dia claro e ensolarado como aquele, sentir de novo percorrer minha espinha, aquele medo de ser espancado, torturado, preso ou mesmo morto, antes de poder fugir para um outro país onde pudesse falar, escrever, pensar, respirar livremente.

Para quem não viveu aqueles anos, talvez baste uma expressão – a ditadura e a falta de liberdade de expressão tornam o ar extremamente espêsso e é com dificuldade que aspiramos e expiramos. O coração vive em sobressalto – um olhar estranho, uma sombra, alguém que bate na porta e o ritmo cardíaco dispara.

Como tantos anos depois, o simples fato de me defrontar com um militar já reformado saudoso dos tempos em que se ensinava aos jovens universitários, com cassetetes, a obediência, o respeito, a ordem, pode reavivar velhos demônios ? O trauma, é o trauma que me torna ainda inquieto quando ao entrar no Brasil, examinam meu passaporte.

Mas, com certeza, os tempos mudaram. O elogio da ditadura não ficou sem resposta. Outro senhor, atrás de mim, respondeu à provocação e, em pouco tempo, se criou ali, um debate sobre o Brasil do militares e o Brasil de hoje de Lula. O Brasil da ditadura, nossa vergonha denunciada pela imprensa internacional, cujos ditadores não seriam jamais aceitos pelos líderes de outras nações; o Brasil de hoje, alçado à condição de potência mundial, respeitado e com seu presidente considerado figura política de destaque em todas as grandes conferências.

Porém, esse inesperado encontro - nestes dias que antecedem a eleição de Dilma Roussef à presidência, mostrando a vitória dos ideais do passado, das reformas de base, que um golpe de Estado e o assassinato de tantos companheiros não conseguiram impedir - prova que não nos devemos desmobilizar. A serpente está viva, seus ovos, como os do Allien, esperam apenas serem chocados.

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*Rui Martins, jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura, é líder emigrante, ex-membro eleito no primeiro conselho de emigrantes junto ao Itamaraty. Criou os movimentos Brasileirinhos Apátridas e Estado dos Emigrantes, vive em Berna, na Suíça. É correspondente do Correio do Brasil, em Genebra, escreve para o Direto da Redação, Expresso, de Lisboa, e agência BrPress.Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz

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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

No tempo da Ditadura II

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Urda Alice Klueger *

Um amigo, faz uns tempos, emprestou-me um livro onde um jornalista entrevistava oficiais do exército brasileiro que deram “sustança” ao golpe de 64, que apoiaram os generais para que tudo desse certo. Eu fiquei boba quando li aquilo: os caras não tinham o mínimo preparo para o que estavam fazendo, foram, mesmo, “na onda”, acreditaram em tudo o que lhe disseram e se deixaram guiar direitinho por um tal de Estados Unidos, que naquele momento desejava governos militares para o resto do continente americano. Na ocasião, fiquei de queixo caído, mas mais de queixo caído fiquei, mesmo, foi na semana passada, quando, conversando com meu amigo Ivo Hadlich, muitas vezes vereador em Blumenau pelo PMDB, soube de umas coisinhas mais.

No final da conversa eu perguntei ao Ivo: “Vem cá, tu tinhas alguma formação política? Tu eras marxista, ou alguma coisa assim, por exemplo? O que te levou a querer participar de um MDB que estava nascendo?” (Para os mais jovens: MDB foi o antepassado do PMDB, a única opção que havia para os corajosos serem contra o governo da Ditadura.)

O Ivo me disse que não. Contou-me que era extremamente jovem, então, e que, como tal, gostava de rebelar-se contra o estabelecido. Foi isto que o levou ao MDB, sem a menor formação política, e contra a vontade da família. É muito engraçado o jeito como ele conta que sua mãe tinha tanto medo de vê-lo na oposição, que pedia para que ele se escondesse no mato.

Assim, tínhamos um jovem politicamente despreparado para lutar contra a Ditadura, e num instante ele foi preso, levado para o Quartel do Exército, onde amargou horas e horas esperando para saber o que iria acontecer. Finalmente, falaram com ele, e ele foi acusado de ser comunista. COMUNISTA? O que era aquilo? Gente, ele me garantiu que não sabia – foi depois daquela prisão que ele acabou indo se informar, entender o que era aquela palavra.

Bem, mesmo não sabendo o que era, o Ivo Hadlich, devidamente taxado de comunista, fazia seu papel no MDB. E como haveria eleições municipais, ele e um amigo saíram a ajudar o partido. O que levavam? Cartazes para colar nos postes, um balde de cola de trigo, e uma escada de carpinteiro. Onde é que carregavam tudo isso? Sobre uma minúscula lambreta, com suas rodinhas de nada – um dirigia e o outro ia no banco de trás, e os dois se equilibravam, principalmente na coisa de carregar uma comprida escada. Fica implícito que paravam a cada poste, encostavam a escada, subiam, e colavam lá em cima o retrato do seu candidato.

Daí, chegaram a uma região de Blumenau chamada Itoupava Central, onde funcionava a falecida Cia. Jensen, que muita manteiga e muita lingüiça produziu para todo o Brasil, no passado. Os nossos perigosos “ comunistas” também deram sua paradinha lá, para colar cartazes nos postes. E o que aconteceu? O guarda da Cia. Jensen, sem a menor cerimônia, foi lá e prendeu tudo: a lambreta, a escada, o balde de cola, os cartazes, mesmo estando eles em via pública e o guarda ser segurança de uma empresa particular.

E então, e então, o que aconteceu? Claro que o Ivo Hadlich e seu companheiro, jovens como eram, espernearam e reclamaram, até que o dono da empresa (o mesmo que mandara prender as coisas), acabou liberando tudo de novo. Já era noite, no entanto, e os nossos heróis receberam sua lambreta ... com o tanque cheio de areia! Que lhes restava fazer naqueles tempos difíceis, onde quase não havia condução? Um deles empurrou a lambreta, enquanto o outro carregava a escada e o balde, e pela rua escura e sem calçamento, andaram os doze quilômetros que faltavam para chegarem em casa. Ainda bem que eram jovens!

Pois é, este tipo de coisa era comum na Ditadura. Arbitrariedades aconteciam a toda hora. Quem não viveu aquele tempo, nem faz idéia. É por isso que gosto de contar um pouquinho, de vez em quando.
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*Urda Alice Klueger é escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.

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VAMOS REFRESCAR A CUCA DOS TUCANOS!

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NAS MALAS DO PSDB

PF apreende 500kg de cocaína e prende ex-candidato do Tocantins


A Polícia Federal apreendeu meia tonelada e prendeu em Castanhal, no Pará, o candidato derrotado a prefeito do município de Tupiratins, no Tocantins, Misilvan Chavier dos Santos (PSDB-TO), por tráfico internacional de drogas.

Na superintedência da Polícia Federal em Belém, Misilvan, que também já foi candidato a deputado estadual, admitiu que trouxe meia tonelada de cocaína da Colômbia e que entregaria a droga no interior de São Paulo.

"Eu fiz uma primeira vez há três anos e pouco e resolvi fazer de novo por questão de necessidades, mas não deu certo", disse o acusado a jornalistas em Belém neste sábado.

O carregamento foi localizado em uma pista de pouso clandestina no sul do Pará a 108 quilômetros do município de Santana do Araguaia. A droga foi levada na tarde deste sábado para Palmas, capital do Tocantins.

"Lá naquelas pistas de pouso do sul do Pará ninguém tem controle e as pistas ficam suscetíveis a utilização de qualquer pessoa", disse o superintendente da Polícia Federal no Pará, José Ferreira Salles.

A droga estava encondida no meio da floresta amazônica próximo ao rio Xingu. No local, os policiais prenderam em flagrante Elias Lopes Pimentel e Leocídio Lima da Cruz, acusados de guardar a cocaína.

Misilvan Chavier dos Santos é investigado há três anos e conseguiu fugir da polícia quando um avião pilotado por ele foi apreendido em uma pista de pouso no município de Tupiratins, interior de Tocantins, na última segunda-feira. Depois de deixar a droga no Pará, a aeronave de Misilvan foi perseguida por um avião tucano da Força Aérea Brasileira. Após o pouso em Tocantins, o político conseguiu fugir em uma moto.

De acordo as investigações, ele receberia quatrocentos mil reais pelo transporte da droga, dinheiro que, segundo a Polícia Federal, seria usado na campanha eleitoral de Misilvan a deputado estadual nas próximas eleições. O acusado negou a informação. A operação foi coordenada pela Polícia Federal em Brasília e teve apoio de policiais do Amazonas, Pará, Tocantins e Goiás.

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Maurício Vieira de Andrade

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O Trem de Lula partiu, e o Metrô da Soninha lotou

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terça-feira, 14 de setembro de 2010

Se um brasileiro descer num disco voador

Urariano Mota

Recife (PE) - O que faria um brasileiro de volta ao Brasil, depois de anos em outra estrela ou planeta? Vamos supor que voltasse pelo aeroporto. A primeira coisa que perguntaria era se não se enganou de tempo, lugar ou pouso. Em vez de aeroporto, não teria pousado em uma estação rodoviária? Avião teria virado ônibus? Pois espantado e com espanto veria a cara dos que embarcam ou desembarcam. Que é isso? Entre pessoas educadas, aquelas que se distinguem pela altura da voz, tom, palavras, roupas, modos, cor da pele e, até, um certo ar no andar, veria gente, gentinha, sem modos e classificação. Ali, na mesma fila das melhores, por tradição, gente, descobriria pessoas, pois, por todas as condições do esqueleto nos raios x deviam ser pessoas, enfim, veria indivíduos com caras de subalternos ao lado de pessoas de terno laptop e revista Veja. Que constrangimento. Como podem viver tais dessemelhantes lado a lado?

Talvez acasos do aeroporto nessa hora e semana, pensaria. Então ele, entre absorto e tonto, sentaria no restaurante e pediria uma cerveja. Mas pediria aos gestos e voz de comando, como antes, do antes de sua partida do Brasil. Pois não é que, ao ser atendido, ele notaria que na expressão do antigo e servil empregado existe agora uma feição de contrariedade? Algo como, digamos, “o senhor não é melhor que eu, por que me trata dessa maneira?”. E como o jovem, ou a jovem, abusada ou abusado, já se vê, conduzia também facas e garfos, ele daria uma gradação mais suave à sua maneira de terráqueo brasileiro de antes. Que constrangimento. Como é possível que pessoas diferentes recebam trato de remoto semelhante?

Então ele, antes de ganhar a rua, passaria na revistaria, ou banca de revista, como se diz no Recife. Ah, que bom, o brasileiro que voou para outra estrela e volta notaria que as revistas e jornais são tão boas quanto antes. As capas, mais coloridas, as caras da melhor cara mais bonita, os anúncios dos carros mais avançados, as colunas para a gente que vive na Europa e por acaso habita no Brasil continuam. Aqui o tempo não passou, pensa. É o bom Brasil de antes. E ganharia a rua, pelo caminho do táxi. A outra surpresa é o motorista. Ele pareceria um ser igual a ele, retirada a condição de taxista, of course. Pois não é que o inferior fala de história, de política, até, creia, de cultura e música, como se fosse um homem? O que é isso, que tempos são estes? Então, ao ver um aparelho de televisão, pede ao motorista para se atualizar com o noticiário.

- O senhor não prefere música? A tevê mente muito.

- Não, eu quero ver, por favor. (Em dúvida, rápido, aprendeu a usar “por favor”.)

E viu aparecer um barbudo, “é o Lula!”, ele se disse, mas era um Lula mais sereno, ponderado, a falar algumas coisas estranhas como redistribuição de renda, Brasil respeitado em todo o mundo, e, até mesmo, recomendar uma mulher, ex-presa política, como candidata à presidência do Brasil. Que é isso? Depois veio um careca, de olhos arregalados, sempre assustado, certamente com as coisas que o cidadão do disco voador via. O careca falava dos males da saúde, dos cuidados com a saúde, de educação com dois professores por sala, de segurança, da sujeira dos petistas, ah, sim, aqui, sim, estava o velho Brasil.

Então o nosso brasileiro foi aos correios, como antes, para dar notícias aos antigos que chegou e está de volta. Para quê? Viu pessoas que nunca viram telegramas, que não sabem nem sequer se isso se come, que se metiam a enviar correspondências, atrapalhadas entre destinatário e remetente, era certo, mas ainda assim mui metidas a gente, perguntando as coisas mais disparatadas, mas metidas onde nunca fora o seu lugar. Em muitos pôde observar que ligavam de celular, tomavam água mineral, até mesmo comiam iogurte. Outros batiam e se batiam fotos. E, ousadia, vestidos em roupa de gente!

Que tempo, que costumes. O que acontecera? Até parecia ter havido mudança na renda dos antigos brasileiros, e para melhor. Até parecia que todos copiavam a classe média como uma xerox absurda. Então o nosso extraterrestre pensaria em voltar para o seu casulo, mas que não fosse tão distante. Por isso compraria uma banca de revistas com televisão e rádio, e passaria a viver nessa estrela todos os dias. No ar e no papel do Brasil tudo estaria como antes. Que sorte, voar para uma nova galáxia sem sair do ex-mundo.

(Esse texto à feição de Fernando Soares, jornalista e escritor, vai em sua homenagem. Saúde, amigo.)

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Urariano Mota, escritor e jornalista, autor de “Soledad no Recife” (Boitempo – 2009) seu último romance, indicado como um possível livro do ano pelo conceituado site Nova Cultura, elaborado e administrado na Alemanha, com os destaques literários da CPLP - Comunidade de Países de Língua Portuguesa. É colunista do site Direto da Redação e colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz edita o blog SAPOTI DE JAPARANDUBA


Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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