terça-feira, 30 de agosto de 2011

Quiçá, em Alfa Centauro

.



Fernando Campos (Só ares latentes)

Gênio! Este era praticamente o outro nome de Mellquiadhes Ollivyettho. Ele estava em voga, tornara-se o economista mais badalado dos últimos tempos. Todos abriam o jornal diretamente na sua coluna diária -Wall ß$treet i$ here-, o restante era só o restante.

A partir das listas de favoritos de muitos milhares de assinantes, ocorria uma verdadeira romaria diária ao seu sítio (pronuncia-se "site", do inglês saite). Sua presença era a garantia do sucesso de qualquer evento, fosse qual fosse o ramo do conhecimento humano em debate. Agenda lotada, nenhuma chance de contratação para os próximos anos. Para os raros felizardos que privavam de sua intimidade, ele era simplesmente Mell – apesar daquele ar bilioso, demonstrando menosprezo pelos reles mortais que o bajulavam.

Mell tinha a mania de dizer que não tinha manias. Afirmava isso em toda entrevista, mesmo que o entrevistador não lhe perguntasse sobre seus hábitos ou possíveis vícios.

Superstição? "Nenhuma!", garantia ele.

A fitinha do Bonfim, o patuá na correntinha do pescoço, a ferradura atrás da porta, a figa no chaveiro, a carranca no canto da sala, para ele, tudo isso não passava de estilo decorativo ou moda. Considerava-se despojado de qualquer sentimento machista: "Não tenho qualquer tipo de preconceito contra as mulheres. Reconheço que, hoje, com o corretor ortográfico dos computadores, a mulher está bem mais preparada para ser uma boa secretária".

Semanalmente Mell recebia, em média, trinta livros de novos autores que solicitavam sua opinião, ansiosos pela aprovação e elogios do mestre. Sua secretária respondia a todos através de uma mensagem modelo. Vez ou outra encaminhava uma dessas obras ao patrão, principalmente as que se desmanchavam em elogios às suas lucubrações sobre o futuro sócio-político-econômico do país.

No Clube dos Orquidófilos de Caraguatatuba, ninguém conhecia Dona Rosa Oliveira pelo nome, para todos ela era apenas a mãe de Mellquiadhes Ollivyettho, porém ela nunca entendeu por que tratavam seu filho Malaquias por aquele estranho apelido. Seus filhos também eram reconhecidos apenas como "os filhos do Ollivyettho". Enfim, todas as pessoas que tinham algum parentesco com "O Mago da Economia" perdiam a identidade própria e se tornavam apenas irmãos, tios, netos, primos ou cunhados de Mellquiadhes Ollivyettho.

Há muito tempo Mell vem tentando emplacar um neologismo com a sua marca registrada. Não se cansa de repetir: "Vivemos hoje a pós-globalização, o que já faz do momento atual a Era da Pré-Planetarização Cultural" – repetiu essa expressão ene vezes no seu último livro: "Pré-planetarização cultural - a nossa música nas sondas espaciais".

Quando foi anunciada a primeira viagem espacial de um brasileiro, Mell procurou fazer contato imediato com o astronauta escolhido. Escreveu para o cosmonauta informando:

"Contam que Santos Dumont, enquanto realizava seu primeiro vôo com um aparelho mais pesado que o ar, assobiava uma marchinha de carnaval. Esse foi, sem dúvida, o princípio de uma nova era. Considero que este fato marca a largada para o que ocorre nos dias de hoje: a Pré-Planetarização Cultural, cujo acontecimento mais marcante ocorreu quando o robô da sonda Sojounerum acordou-se, em solo marciano, ao som da música 'Ô coisinha tão bonitinha do pai', do cantor-compositor brasileiro Jorge Aragão. Portanto, com o propósito de ampliar a nossa vanguarda colonizadora interplanetária, solicito que V.Sa., ao participar da expedição do programa espacial russo, possa levar consigo um exemplar da minha última obra sócio-científica, 'Pré-planetarização cultural - a nossa música nas sondas espaciais', e, em se oportunizando ocasião, faça com que o exemplar seja lançado no espaço sideral em direção a distantes galáxias. Assoma-me à alma a esperança de que ele venha a ser interceptado por seres inteligentes, que logo entenderão a importância de um sistemático intercâmbio cultural entre os habitantes do Universo. Atenciosamente. Mellquiadhes Ollivyettho, PhD em Sociocultura Interplanetária."

Mell não recebeu resposta do astronauta brasileiro, porém acreditou que ele estaria preparando-lhe uma surpresa, certamente viria a anunciar, lá do alto, o lançamento do seu livro. O primeiro lançamento de uma obra literário-científica humana no espaço sideral, em direção a galáxias distantes...

– Poderá vir a encabeçar a lista dos mais vendidos em... nem precisa ser muito distante, talvez, em Alfa Centauro... – delira Mell numa enfermaria do Pinel.

____________________________

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

Pressaa


segunda-feira, 29 de agosto de 2011

CACIMBINHAS

.




Clerisvaldo B. Chagas - Extraído do Portal Maltanet

Empenhado em nossa organização de livro sobre Virgulino Ferreira da Silva, temos referências várias sobre a nossa tão querida cidade Cacimbinhas. Município alagoano localizado no meio do caminho Santana do Ipanema ─ Palmeira dos Índios, Cacimbinhas foi ponto de descanso e referência de quem transitava do alto Sertão à Maceió e vice-versa. Tempos das estradas de terra, buracos e solavancos, poeira e lama que enganchavam as viagens sertanejas à capital. Originária no sítio Choan, o atual município recebia caçadores de Pernambuco ─ com o qual faz fronteira ─ que acampavam no sítio, nas proximidades de uma cacimba onde havia um limoeiro. Com mais pessoas parando por ali para descanso, outras cacimbas foram cavadas gerando, assim, a denominação do município.

Quem nasce em Cacimbinhas é cacimbense. E quem é cacimbense tem orgulho de sua fundação que aconteceu em 19 de setembro de 1958. Atualmente o município faz parte da Microrregião de Palmeira dos Índios e da Mesorregião do Agreste Alagoano. Possuindo uma área de 272,98 km2, com a distância de 177 km da capital, Cacimbinhas tem como sua padroeira, Nossa Senhora da Penha, celebrada em 8 de setembro. Com mais de dez mil habitantes, o município conta com atrações, além da festa da padroeira, como Festa de Santos Reis, Baile do Sábado da Aleluia. Forró Fest, emancipação política e ainda o Baile Macabro realizado em novembro. Para quem quer fazer visita turística, a recomendação é a serra do Cruzeiro com a capela de São Francisco e o castelo medieval da fazenda Alfredo Maya.

No início da década de vinte, Cacimbinhas recebia um bando de cangaceiros chefiados por Pedro, um dos famigerados irmãos Porcino, cujo bando abrigou o mais célebre, Lampião. Isso gerou dor de cabeça para o governo que convocou o comissário de Palmeira dos Índios e enviou tropas para Cacimbinhas. Além da década de vinte, Lampião usou Cacimbinhas outras vezes nos anos trinta, pela sua proximidade fronteiriça com Pernambuco. Ali foi sempre a porta de saída de Virgulino que geralmente entrava em Alagoas por Água Branca ou Mata Grande, via Piranhas, saída Cacimbinhas em busca de Bom Conselho (PE), e imediações.

Dizem os historiadores que os primeiros habitantes chegaram por volta de 1830. Após os primeiros habitantes, chegou a Cacimbinhas José Gonzaga que se associou a Clarindo Amorim par a construção da linha do telégrafo, ligando Palmeira dos Índios a Santana do Ipanema. Gonzaga, além desse feito histórico sobre comunicações, criou a primeira feira, com bastante movimento.

Dos tempos da estrada de terra, o que mais me chamava à atenção era a linha do telégrafo margeando a estrada, em cujo tempo de inverno, víamos passarinhos encolhidos sobre o fio. Ainda hoje quando passo entre Cacimbinhas e Palmeira dos Índios, nunca deixei de procurar com a vista os postes históricos e o fio que parece que foram retirados. Por que não estão em um museu municipal em uma das três cidades do trajeto? Aproxima-se o tempo de festa. Cacimbinhas entrou também em dois romances meus ainda inéditos: “Deuses de Mandacaru” e “Fazenda Lajeado”, com os personagens fictícios Né de Zeca e João de Brito, respectivamente. Ah! Mas isso são outras histórias. Bênçãos a CACIMBINHAS.

• Visite também o blog do autor: Clerisvaldo Chagas


__________________________

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

Pressaa



sábado, 27 de agosto de 2011

O TAMBOR DO CABOCO SUBURUCU

.






´Charapa´ é o nome que no Peru e no Equador se dá a um cágado que vive nos rios, lagos e floresta da Amazônia. Essa espécie de tartaruga, de casco negro com manchas amarelas, corresponde ao nosso tracajá. É com essa palavra que os peruanos denominam todos aqueles que nascem na região amazônica.

Nascido em Iquitos, em 1943, o poeta Manuel Morales é um ‘charapa’, um ‘tracajá’ autêntico, do tipo ‘caboco suburucu, popa de lancha e bandeira azul’. Ele ganhou vários prêmios de poesia, entre os quais o primeiro lugar nos Juegos Florales Universitários de 1967, organizado pela Universidade Nacional de Educação, conhecida como La Cantuta.

Nessa época, publicou dois livros: Peicen Bool (1968) e Poemas de entrecasa (1969), editados por La Cantuta. Enquanto viveu no Peru, esse caboco suburucu integrou o Movimento Hora Zero, que congregava os poetas de sua geração. Mas logo depois, nos anos 1970, viajou para o Brasil, vivendo por mais de trinta anos em Porto Alegre (RS), onde morreu no dia 2 de outubro de 2007, aos 64 anos, longe dos amigos peruanos, mas cercado por tocadores de tambor, flauta, violão e cavaquinho.

Continuo intrigado sem saber bem por que nós, da Amazônia brasileira, desconhecemos os nossos vizinhos de outros países amazônicos, de cujo convívio salutar estamos privados, apesar da proximidade geográfica e cultural. Lendo o poema de Manuel Morales intitulado ‘Si tienes um amigo que toca tambor´, pensei que os brasileiros gostariam de conhecê-lo. Por isso, publiquei há vinte anos uma tradução desse poema, que quero uma vez mais compartilhar com os leitores para tentar, dessa forma, derrubar alguns tijolos do muro que nos separa.

“Se tens um amigo que toca tambor
Cuida bem dele!
É mais que um conselho: cuida bem dele!
Porque hoje em dia ninguém mais toca tambor.
Pior ainda: ninguém mais tem um amigo.
Então, cuida bem dele,
Que esse amigo guardará tua casa.
Mas não o deixes sozinho com tua mulher, lembra-te
Que ela é tua mulher e não de teu amigo.
Se segues este conselho, viverás
Muito tempo. E conservarás a tua mulher
E um amigo que toca tambor.

Uma carta de Manuel Morales enviada do Brasil ao seu amigo Tulio Mora, que também é poeta, foi publicada recentemente num periódico de Lima. Nela, ele se declarava ainda vinculado, mesmo de longe, ao movimento Hora Zero:

“Te digo que escrever é viver. A poesia é, portanto, um estado de reconstrução e nominação dos elementos do mundo. Vocês dirão: Manuel Morales viveu longe e nos esqueceu. Não é verdade. Tenho orgulho de ser um militante de Hora Zero, o movimento que ajudamos a construir para que a poesia não seja uma farsa”.

Outro poema de Manuel Morales, publicado na Antologia da poesia peruana, organizada por Alberto Escobar, se intitula ‘Usos son de la guerra’, algo assim como ‘São os costumes da guerra’, e guarda o mesmo humor refinado.

“No amor e na cama,
Napoleão foi um fracasso.
Não digo o mesmo
na guerra. Seu êxito
consistia em envolver o inimigo.
E a França o teve
como seu filho mais dileto;
e lhe deu fama
e suas mais formosas mulheres.
Tão grande na estratégia
e com um pênis tão pequeno, na cama
mandavam suas mulheres. (A vitória
se deveu a seus generais).





O voo do Sarney

Havia pensado em conversar hoje com os leitores sobre a presepada do presidente do Senado José Sarney, que viajou de férias de São Luís para sua ilha particular, em Curupu, num helicóptero da Polícia Militar do Maranhão, um modelo comprado por R$ 16,5 milhões, com recursos públicos do Ministério da Justiça, destinado ao uso exclusivo da segurança e saúde.

O voo do Sarney, que deu carona a Henry Dualibe Filho, um empresário de “ficha duvidosa” segundo a Folha de São Paulo, acabou prejudicando o transporte e o socorro a um doente, um pedreiro acidentado que teve de aguardar numa maca, em outro helicóptero, até ser transportado para a ambulância.

Quando deram um flagra nele, vestido de branco, com uma boina, cercado por funcionários da PM que carregavam suas bagagens e caixas de isopor, Sarney teve o cinismo de declarar que tem direito a transporte de representação em todo o território nacional. Foi apoiado pelo vice-líder da governadora Roseana Sarney, o deputado Magno Bacelar, do Partido Verde, que respondeu agressivamente:

- “Vocês queriam o quê? Que o presidente do Senado fosse andar em jumento? Esse helicóptero, é claro, tem que servir os doentes, mas tem que servir as autoridades, esta é a realidade”.

José Ribamar Sarney é o atraso do atraso do atraso. Só podia usar esse helicóptero, se fosse para ser conduzido à prisão. Enquanto ele exercer qualquer tipo de poder, o Brasil não deixará de ser uma República das Bananas. Decididamente, não se faz mais Ribamar como antigamente. Lula, que em campanha eleitoral havia chamado Sarney de corrupto, vai ficar devendo essa para a História do Brasil: tê-lo ressuscitado.

Peço desculpas ao leitor, mas prefiro me refugiar na poesia. O Sarney me dá nojo, talvez porque sua existência mostra que nós brasileiros, que convivemos com tanto cinismo, somos uns vermes, por permitirmos que a máquina pública do Estado seja apropriada por coronéis de barranco como Sarney, dono do Maranhão, o estado mais pobre e miserável do Brasil. Que país é esse?

Retorno a Manuel Morales, o nosso caboco suburucu, para concluir com outro poema dele, intitulado “No busquen una pátria”.

“Não busque uma pátria
Que contenha rosas. Hoje
As rosas não existem mais. Só existe
Uma pátria na palma do peito
E outra no centro do olho.
Continuem buscando rosas. Encontrarão
Um balaço no peito
E outro
No centro do olho”.

______________________

José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (UERJ), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz

Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons

PressAA

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Seria cômico se não fosse cônico - ou vice-versa



.






por Fernando Soares Campos

Durante muito tempo, contestei, cá com meu zíper, as posições de alguns dos meus amigos sobre a imprensa brasileira e, mais abrangente, sobre as veiculações midiáticas em suas mais diversas expressões: a publicidade, a veiculação das artes cênicas, literárias, o didatismo educacional (coisas do tipo telecurso) entre outras formas de as mídias se manifestarem.

Quando eu lia ou ouvia amigos meus dizerem: “Precisamos acabar com todo esse jornalismo-que-existe! Tudo! Botar tudo num incinerador e fazê-los queimar como almas no inferno!” Aí eu ria e apaziguava dizendo: “Peralá! Também não é assim... Pra que essa desconstrução sob tão radical niilismo?!”

Acho que foi por isso (por essa minha visão das coisas) que tempos atrás, depois de ler um artigo do Luis Nassif, escrevi o slogan de um dos meus blogs que formam o conjunto Assaz Atroz, o blog departamento agencia assaz atroz (pressaa) – redação, que tem como lema: “Ativismo com atavismo sem saudosismo – mas com um toque de pragmatismo”. Certamente ainda continuo pensando dessa forma, mas não deixo de dar razão aos meus amigos, principalmente agora, depois de ler a opinião dos companheiros da Vila Vudu. Opinião essa fundada em excelente análise sobre uma entrevista da BBC de Londres (conforme a gente costumava especificar antigamente, como se existisse outra BBC naquela época “não globalizada”).

Eu poderia continuar fazendo mil considerações sobre a opinião e análise do pessoal da Vila Vudu Coletivo de Tradutores, mas prefiro que você, leitor, acompanhe o trabalho desse incansável ajuntamento de pessoas pensantes e tire suas próprias conclusões. Adiante posso até tecer mais algumas considerações sobre essa saudável clareza súbita que o texto e o vídeo por eles indicado me proporcionaram.

Antes, porém, me arrisco a dar um conselho. Você pode assistir ao vídeo antes de ler a tradução do determinante trecho da entrevista, abrangente ao todo, mas eu mesmo preferi ler primeiro a tradução e depois assistir ao vídeo. Isso me ajudou na presente luta que mantenho contra os preconceitos que trago enraizados desde os primórdios de minha formação educacional.

Mas você pode seguir o caminho inverso, isso fica a seu critério. Assistir primeiro ao vídeo e depois ler a tradução, ou vice-versa.

Fernando Soares Campos - Editor Assaz Atroz Chefe

_________________________________________________

“Jornalismo = “Objetividade que só se encontra na mentira”

“Comentário entreouvido na Vila Vudu
Quem precisa do jornalismo-que-há?!(Além dos jornalistas empresários e profissionais empregados, claro...)

“Não há diferença essencial entre a Rede Globo e a BBC. Os que querem “mídia” podem perder suas últimas ilusões liberalóides conservadoras. Nenhum jornalismo-que-há sempre será melhor que o jornalismo-que-há.

A matéria abaixo esteve no ar. Nunca aconteceria no Brasil, porque a Rede Globo NUNCA entrevista gente que seja realmente contra a posição da “mídia” e as convicções pessoais dos jornalistas. Aliás, fazem todos muito bem, porque ouviriam o que não querem ouvir nem querem que ninguém ouça e vivem para impedir que as pessoas digam e, se alguém disser, para impedir que a opinião pública ouça. Mas o horror do jornalismo-que-há, que só existe para impor opiniões feitas, é muito parecido.

“Prôs que pensem que só a Rede Globo faz o que faz e que algum outro tipo de jornalismo-empresa seja algum dia possível ou pensável, aí vai bom exemplo de que a Rede Globo é, só, a pior do mundo, mas faz um mesmo e idêntico “jornalismo”, feito por jornalistas autistas, fascistas sinceros, absolutamente convictos de que “sabem mais”, só porque são donos da palavra e nunca ouvem o “outro lado”, sobretudo se o outro lado quiser falar DELES e das empresas para as quais trabalham.

“O melhor jornalismo-que-há vive a procurar
uma “objetividade” que só se encontra na mentira.


“O problema do mundo não é a Rede Globo (ou, pelo menos, não é mais a Rede Globo que a BBC). O problema do mundo é que o jornalismo (que é aparelho ideológico criado e mantido para uniformizar as opiniões e constituir mercados homogêneos, seja para o consumo uniforme de sabão em pó e remédio antipeido, seja para o consumo uniforme de ideias sobre ética e democracia e justiça) é o único dono da palavra social. Se se inventar mídia que não seja única dona, feudatária, da palavra social, acaba-se o jornalismo-que-há.


----------------------------------------------

http://www.youtube.com/embed/WoFak7MRBJw"frameborder="0"allowfullscreen>


“Quem ainda duvidar, veja (acima) e leia a seguir (traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu):

“Transcrição da entrevista:
Shocking Footage: BBC Presenter Attacks Black Veteran Over London Riots – Aug, 09,2001

“BBC (para a câmera): Vamos falar com Marcus Dowe, escritor e jornalista. (A câmera mostra um senhor, visivelmente perturbado.) Marcus Dowe, qual sua opinião sobre tudo isso? Você está chocado com o que viu lá a noite passada em Londres?

“Entrevistado: Não, não estou. Vivo em Londres há 50 anos e há “climas” e momentos diferentes. O que sei, ouvindo meu filho e meu neto, é que algo muito, muito sério estava para acontecer nesse país. Nossos líderes políticos não tinham ideia. A Polícia não tinha ideia. [Só faltou completar: “Os jornais e os jornalistas não tinham ideia”.]

“Mas se se olhasse para os jovens negros e para os jovens brancos, com atenção, se os ouvíssemos com atenção, eles estavam nos dizendo. E não ouvimos. Mas o que está acontecendo nesse país com eles...

“BBC: Posso interrompê-lo, por favor... O senhor está dizendo que não condena o que houve ontem? Que não está chocado com o que houve em nossa comunidade ontem à noite?

“Entrevistado: É claro que não condeno! Por que condenaria? A coisa que mais me preocupa é que havia um jovem chamado Mark Dogan, tinha casa, família, irmãos, irmãs. E a poucos metros de sua casa, um policial rebentou sua cabeça com um tiro.

“BBC [interrompendo]: Sim, mas não podemos falar sobre isso. Temos de esperar o julgamento, o tribunal não se manifestou sobre isso... Não sabemos o que aconteceu. O senhor estava falando do seu filho, de jovens...

“Entrevistado: Meu neto é um anjo. Me enfureço só de pensar que ele vai crescer e um policial pode colá-lo a uma parede e explodir sua cabeça com um tiro. A Polícia detém e pára e revista os jovens negros sem qualquer razão. Alguma coisa vai muito mal nesse país. Perguntei ao meu filho quantas vezes ele foi parado pela polícia. Ele me disse “Papai, não tenho conta de tantas vezes que aconteceu...”

“BBC: Mas... Isso seria justificativa para sair e quebrar tudo, como vimos nos últimos dias em Londres?

“Entrevistado: Onde estava você em 1981 em Brixton? Não digo que estão acontecendo “tumultos”. O que está acontecendo é insurreição das massas, do povo. Está acontecendo na Síria, em Liverpool, em Port of Spain... Essa é a natureza do momento histórico que vivemos.

“BBC: O senhor não é estranho a essas agitações. O senhor já participou de agitações como essa, como sabemos.

“Entrevistado: Nunca participei de agitação alguma. Estive em muitas manifestações que acabaram em conflitos. Seria normal que a Polícia da Índia Ocidental me acusasse de ser agitador. Mas absolutamente não admito que você me acuse de agitador. Quis oferecer um contexto para o que está acontecendo. O que é que vocês queriam? Masmorras?

“BBC: Infelizmente, o senhor não conseguiria ser objetivo. Obrigada pela entrevista. [Corta e o “jornal” passa a falar da suspensão de uma partida de futebol]”


_________________________________

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

Pressaa

.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

La Insignia - Flash Back

.





Cabo Anselmo e os neogolpistas


Fernando Soares Campos
La Insignia. Brasil

Em janeiro de 1969, eu contava lá com os meus 19 anos de idade. Foi nesse período que me apresentei a bordo do Submarino Bahia (S12) a fim de me incorporar à tripulação como marinheiro do serviço de máquinas. Como em todas as unidades militares da época, no Bahia havia diversos "secretas" (era como o pessoal denominava os agentes do CENIMAR - Centro de Informações da Marinha). Em qualquer setor de bordo, podia-se identificar pelo menos um deles. Eram, em geral, elementos do quadro subalterno, os quais faziam questão de exibir suas relações com oficiais de alta patente que os indicavam para aquelas funções de alcagüete. Na verdade, os "secretas" não passavam de colaboradores voluntários dos serviços de informação. Em troca dos seus préstimos, invariavelmente conseguiam transferência para servir em unidades de suas preferências.

Naquela época, momento em que o golpe militar havia se consolidado recentemente, através do Ato Institucional nº 5 (AI-5), um sargento meu amigo, ali, entre as fainas de manutenção dos velhos Fairbanks Morses, me contava sobre a atuação do cabo Anselmo à frente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB). Cabo Anselmo transformara-se no mais famoso agente da repressão na Armada. No entanto sua atuação se dera sob o disfarce de um agitador a serviço das entidades de esquerda. Era um elemento infiltrado entre sindicalistas e estudantes, auxiliando o CENIMAR a monitorar os movimentos sindicais e estudantis. E era disso que o pessoal se lembrava. Alguns se referiam a ele imprimindo um tom de desprezo; outros falavam de seus liderados tratando-os com jocosidades, considerando-os elementos ingênuos, inocentes úteis; todos, porém, concordavam que o cabo Anselmo não passava de um oportunista, um indivíduo sem convicções ideológicas, tratando-se tão-somente de um pau-mandado a serviço das forças de repressão, um elemento sem vontade própria, movido por interesses pessoais menores.

Cabo Anselmo atuava como um agitador, agia no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, insuflando os marinheiros à indisciplina. Distribuía panfletos nas unidades militares, o que, por si mesmo, já seria suficiente para que todos desconfiassem dele. É inconcebível que um militar subalterno pudesse agir daquela forma sem o consentimento de autoridades superiores. E o líder dos "grumetes" fazia propaganda revolucionária nas dependências do maior complexo de instituições da Marinha de Guerra do Brasil (o Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro), sem ser importunado, sem sofrer represália ou qualquer tentativa de obstrução de sua panfletagem - exceto alguns poucos casos em que a "repressão" e "punição" serviram apenas para lhe conferir aspectos de agente do "comunismo ateu". As eventuais punições que sofrera com base no regulamento interno tinham como propósito disfarçar as relações de servilismo do cabo Anselmo com a oficialidade do CENIMAR. Ele sofreu duas "punições de prisão rigorosa" por 10 dias em cada aplicação da pena. De acordo com o regulamento interno da Marinha, com mais uma punição dessas, ele seria automaticamente desligado do serviço militar (praticamente uma expulsão). E isso sempre foi fácil aplicar. Qualquer tenente que tivesse interesse em demitir um marinheiro perseguia seu desafeto e, com pouca sutileza, encontrava motivos para enquadrá-lo e enviá-lo para audiência de julgamento de sua infração, arbitrada pelo comandante da unidade.

Em pouco tempo de atuação, cabo Anselmo já se movimentava com muita habilidade e conhecimentos nos meios sindicais e estudantis, transformando aquela associação de marinheiros lá do CIAW em uma instituição parceira de legítimos movimentos da esquerda militante. No dia 27 de março de 1964, a AMFNB, sob a liderança de cabo Anselmo, provocou a paralisação de parte das atividades da Marinha. Os marinheiros "amotinados" recusaram-se a reassumir seus postos de trabalho. Foram presos em um quartel do Exército, porém foram inexplicavelmente soltos, poucas horas depois, e saíram em barulhenta passeada pela cidade do Rio de Janeiro. Certamente os militares agaloados poderiam ter impedido que o movimento "insurgente" assumisse aquele vulto, pois conheciam seus movimentos desde o princípio, quando a proposta da AMFNB se limitava a proporcionar atendimento social e recreativo aos seus associados. A entidade era dirigida por disciplinados marinheiros, os quais, a exemplo do próprio cabo Anselmo, eram, em geral, elementos protegidos de certos oficiais graduados, do contrário não teriam oportunidade de criar qualquer núcleo de defesa dos próprios direitos dentro das instalações militares (a AMFNB não tinha sede própria, funcionava nas dependências do Centro de Instrução Almirante Wandenkolk - CIAW).

Há quem acredite que cabo Anselmo mudou de lado quando voltou do exílio (Uruguai e Cuba) em 1970. Engano. Na verdade, ele era um agente infiltrado nos movimentos populares que precederam o golpe militar. Sua primeira prisão, em 64, no momento da investida dos militares contra um governo legal e democraticamente constituído, não passou de um jogo de cena dos serviços de informação. E sua fuga da cadeia não foi senão mais uma etapa desse jogo. Veja que eu cheguei a bordo do Submarino Bahia em janeiro de 1969, e, naquela ocasião, os mais antigos já o tratavam como traidor (à boca pequeníssima, claro). Também a sua prisão pela equipe do delegado Sérgio Fleury (não se sabe como ocorreu), pouco tempo depois de sua volta do "exílio", foi, sem dúvida, mais uma armação dos aparelhos repressores, a fim de legitimá-lo como membro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e viabilizar a continuação de seu papel como delator.

O golpe militar que depôs o presidente João Goulart, usando tanques de guerra, jornais, emissoras de rádio e tevê e procissões de beatas, foi articulado com muita antecedência. Os movimentos golpistas começaram mesmo antes de Goulart sentar-se na poltrona presidencial, em 7 de setembro de 1961. Os conspiradores foram assessorados por fontes altamente qualificadas. No apoio logístico, contaram com a vasta experiência da espionagem ianque: sabotagem, tortura física e psicológica, propaganda, mercado, apoio financeiro, colonialismo, imperialismo, enfim, tudo que houvesse necessidade para conter o avanço do comunismo na América, que já contava com um péssimo exemplo: Cuba. O apoio recebeu o nome de "Operação Brother Sam". Em 64, no comando da operação, estava o embaixador Lincoln Gordon. Em atividade, os agentes, que chegavam travestidos de padre, pastor, jornalista, executivo, ou mesmo de simples turista. No entanto a singela insatisfação pessoal não constitui argumento suficiente para se executar um golpe de Estado. Precisa-se de "motivos" que justifiquem uma ação dessa grandeza. Os agentes da CIA e os conspiradores daqui e de alhures sabem muito bem que os autóctones entreguistas necessitam de "agasalhos" para aquecerem as suas glaciais consciências. Em 64, a "ameaça comunista" fez o papel de psicotrópico com efeitos sedativos, calmantes, estimulantes, antidepressivos... uma verdadeira panacéia, a fim de que os militares brasileiros fizessem "revolução" (num coquetel psicotrópico desses, deve ser acrescentada vitaminas morais). Em 64, uma esquadra dos Estados Unidos fora colocada on standby para o caso de as tropas brasileiras não darem conta do recado - o socorro emergencial.

Mas estamos mesmo em 2005. Os trabalhadores não pressionam o governo como em 64, exigindo radicalizações do tipo "reforma agrária já!". O próprio MST, de certa forma, aguarda na disciplina. Sindicalistas participam do governo central. Os militares estão ocupados em eletrificar os muros dos quartéis a fim de evitar que os traficantes de droga saqueiem os seus paióis. A Igreja Católica "parece" mais preocupada em fazer proselitismo para recuperar parte do rebanho perdido para os neopentecostais nos últimos anos. Num quadro desses, aparece uma oposição que não tem costume de ficar nesta posição. Porém não dá pra conceber uma passeata de capitalistas gritando palavras de ordem, nos centro das grandes cidades. Até que já ensaiaram alguma coisa parecida: tratores agrícolas invadiram o Planalto e centenas de fazendeiros agitaram-se em frente ao Palácio do Governo, aproveitando o momento para exigir uma polpuda ajuda financeira. Contudo a História indica meios mais sofisticados para fazerem seus "protestos": os tentáculos da mídia. E saibamos nós que os atuais golpistas preferem o enfraquecimento político do governo Lula, através da difamação e da calúnia, ao golpe do impeachment. Desejam ainda menos a deposição à força com o uso de tanques de guerra, como em 64. Querem voltar de "cara limpa". Entretanto temem a reeleição do ex-metalúrgico retirante da seca do Nordeste. Um homem que às vezes se confunde e fala coisas que os adversários usam para fazer chacota. E aí, ninguém se surpreenda se eles partirem para o vale-tudo.

O presidente João Belchior Marques Goulart era muito mais pressionado pela classe trabalhadora do que Luiz Inácio Lula da Silva, portanto aquele esteve mais vulnerável a agitações populares que resultassem em desestabilização de seu governo do que este. Goulart é tratado por muitos historiadores (e nem tanto) como um "fraco de caráter". Chegam a dizer que o seu governo "não foi derrubado", apenas "caiu de poder". Escrevem "histórias" contando que o golpe de 64 não fora o resultado de planejamentos conspiratórios delineados com muita antecedência, mas sim um movimento improvisado, oportunista. Hoje a imprensa já está se antecipando à História: antes mesmo da possível derrubada de Lula, já lhe conferem características desse tipo. Falam dele como um "acuado". Dizem até que tomou decisões atendendo exigências de Roberto Jefferson, quando do depoimento deste na CPI dos Correios e nas suas declarações à imprensa. No artigo "É só Jefferson mandar...", revista Época, assinado por Raquel Ulhôa, a autora apresenta a matéria com a seguinte epígrafe: "Depois de Dirceu, Lula demite três diretores acusados pelo deputado [Roberto Jefferson] de desviar dinheiro de Furnas e, acuado, se prepara para mudar o ministério". No contexto, encontram-se declarações atribuídas ao senador Álvaro Dias (PSDB): "Parece que só o senhor [Roberto Jefferson] demite neste governo. Pediu a demissão de José Dirceu e ele saiu da Casa Civil. Provocou a demissão das diretorias dos Correios e do Instituto de Resseguros do Brasil. Agora, com uma frase, derrubou a direção de Furnas". Cita-se ainda um certo (não dá nome) ministro que teria dito: "O que vai acontecer se na próxima entrevista Jefferson atacar mais gente do governo? Todo mundo que ele disser que é ladrão vai ser demitido na hora? Esse poder seria maior que o do próprio Lula". Pode não ser, mas parece que estão pintando propositadamente uma imagem de Lula de tal forma que, depois de ser banido do Planalto, seria colocado na galeria dos "fracos de caráter", como fazem com João Goulart.

Andei pesquisando sobre o cabo Anselmo e li alguns comentários estarrecedores. Não propriamente em relação ao alcagüete oficial da repressão, mas espantosos no que diz respeito à opinião de certas pessoas sobre a sua sórdida conduta: a delação que levou muita gente a ser sumariamente executada pelos aparelhos de repressão. Talvez um comentário desse tipo não merecesse qualquer referência., muitos preferem ignorá-lo, porém gosto de chamar a atenção para determinados sofismas que parecem meros equívocos de opinião. Apenas parecem. Tem um rapaz aí chamado Álvaro Velloso de Carvalho que escreveu isto:

...a revista Época publica uma matéria gabando-se de ter encontrado "o traidor", o cabo Anselmo. Foi ele quem denunciou dezenas de membros das guerrilhas, durante a ditadura militar, praticamente desmontando o esquema da luta armada. Segundo a revista, ele foi um "traidor da pátria". Traidor da pátria coisíssima nenhuma. Traidores da pátria eram os facínoras que ele denunciou; traidores eram os jovens descerebrados e desprovidos de senso moral, prontos a matar todos os seus inimigos políticos e a seguir rigorosamente todas as ordens que viessem de seus superiores da União Soviética ou da China. Sem as denúncias de cabo Anselmo, a ditadura teria sido muito mais terrível, e teria havido muito mais derramamento de sangue: a guerrilha teria continuado, e muitas vidas teriam sido perdidas no conseqüente confronto entre Exército e guerrilheiros. A denúncia de cabo Anselmo poupou muitas vidas, tanto de guerrilheiros, quanto de militares (e já mostramos aqui* como, comparativamente, morreram mais militares do que guerrilheiros durante a ditadura).

Será que muito em breve vamos ler versões deste tipo justificando os arrotos de Roberto Jefferson? Quem viver lerá.

Eu disse aí em cima que é um equívoco pensar que o cabo Anselmo virou a casaca depois de voltar do exílio no Uruguai e em Cuba, em 1970. Tentei comprovar isso contando sobre o que ouvi a seu respeito em janeiro de 1969 (ingressei na Escola de Aprendizes Marinheiros da Bahia em 1967 e, ao término do curso, embarquei no Submarino Bahia). Continuo afirmando que a AMFNB foi uma entidade utilizada "pelos próprios golpistas" para radicalizar artificialmente as lutas sociais e, assim, desestabilizar um governo que demonstrava simpatia pelos inimigos dos Estados Unidos da América (hoje está claro que o governo petista demonstra simpatia pelo governo venezuelano).

Em 1988, uns amigos meus, jornalistas pernambucanos, me indicaram como colaborador do jornal Folha de Pernambuco. Naquela ocasião (23/11/88), escrevi um artigo intitulado "As Especulações e os Golpes". Eis alguns trechos desse artigo:

Alguém aí já ouviu, em qualquer época, o anúncio [oficial] de um golpe de Estado em andamento?Acredito que não. Então, por que a imprensa nativa, geralmente ao som de boatos, procura as autoridades competentes para confirmar ou desmentir os rumores de um provável golpe que estaria sendo articulado nos bastidores do poder? (...) Não se especula as possibilidades de um golpe junto a quem deseja a virada da mesa. Negar é dever de quem conspira, ignorar é inconsciência de quem não tem compromisso com a Democracia; desmentir, baseando-se em declarações oficiais, é direito de quem não quer jogar lenha na fogueira.

Hoje o que me causa estranheza é ver que os próprios alvos de um golpe de Estado negam a existência de um complô contra o governo Lula, incluindo aí o próprio presidente Lula, que já exteriorizou seu ceticismo em relação aos "boatos" de golpe. Muita gente alega que a política do atual governo está plenamente alinhada com os interesses das elites econômicas e financeiras daqui e de além-mar. E por isso descartam as possibilidades de um golpe contra um governo eleito com esmagadora aprovação popular (só isso já constitui motivo suficiente para os derrotados nas urnas desejarem golpear).

Desconheço as verdadeiras diretrizes do governo brasileiro no que diz respeito à sua política econômica. Sei apenas que sou um dos milhões de trabalhadores vítimas do arrocho salarial que o presidente Lula tanto combateu quando fazia oposição às políticas econômicas dos últimos governos. Nesse sentido, concordo que os detentores do poder econômico continuam cada vez mais poderosos, e que nós, trabalhadores, permanecemos reféns do capital (produtivo ou não). Contudo não creio que os senhores da vida e da morte se contentem em comandar à distância; que se conformem em não ter o controle direto dos órgãos da máquina administrativa. Eles não aceitam ver as luzes dos holofotes iluminando um ex-metalúrgico. Não podem aceitar que um retirante da seca nordestina tenha o poder de mandar a Polícia Federal investigar e prender poderosos corruptos; que a "incultura dos iletrados" demonstre competência nas relações internacionais; enfim, para eles, dinheiro realmente não é tudo. o Poder institucional, sim, é a melhor parte do tudo. É o orgasmo.

Mas vamos parar de nhenhenhém e partir pros finalmente.

E finalmente gostaria de destacar um trecho do artigo "Um novo agosto com outros fortunatos", de Frédi Vasconcelos, na revista Fórum:

Depois da morte do PT o país será melhor. Toda a corrupção acabará e nosso servilismo à pátria mãe América voltará a ser com dantes, na terra de FHC Abrantes... Todos dormirão em paz no país mais injusto no mundo. Esse grito não terá efeito. Os donos do poder já decidiram e contaram com a ajuda de diversos idiotas e corruptos no PT e no governo. Mas mais uma vez tenta-se prender Gregório Fortunato para derrubar Getúlio, ninguém de verdade preocupado com o crime.

Você ainda está querendo saber por onde anda cabo Anselmo? Ora! desde o princípio ele está fazendo o seu papel de "secreta". O "cabos Anselmos" da Nova Era jogam excrementos no ventilador, falam e escrevem meias-verdades e mentiras completas. Na era da informática, os tanques de guerra já podem ser apenas miragens, projeções holográficas. A moeda agora não passa de uma ilusão ótica nos terminais de computadores dos bancos; a um clique num mouse ou no teclado, entram e saem do País como num passe de mágica. Mesmo com tudo isso, os golpistas precisam de pílulas filosóficas e de apoio moral. Terá sido por isso mesmo que, em agosto do ano passado, o novo embaixador dos Estados Unidos no Brasil, John Danilovich, pretendendo apresentar suas credenciais ao atual governo, errou de endereço e apresentou-se primeiro a sua ex-Excelência FHC?

(Taí, gostei de La Guaira - Venezuela -. Estive lá em dezembro de 1969. Será que hoje, vendido meu velho Renault, eu conseguiria comprar um chalezinho naquelas montanhas?)

(*) http://oindividuo.com/avelloso/idiotas/eladir.htm
http://oindividuo.com/avelloso/idiotas/apocalipse.htm

Leia Também: Projeto Fábula no Atacama







______________________________________________

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

Pressaa

.


terça-feira, 23 de agosto de 2011

MUITO OBRIGADA, PAPAI!

.




Lou Micaldas

Meu pai, Micaldas Corrêa, foi um cara incrível.

Éramos cinco filhos: quatro meninas e um menino. Ele era, e ainda é motivo de comentários que me deixam felicíssima por ser filha de um homem tão admirado pelos filhos, ex-alunos e amigos.

Sorte a nossa e das pessoas que tiveram a oportunidade de conviver com ele.

Meu pai foi um menino pobre, que andava descalço, sem camisa, pelos quatro cantos do Rio. Gostava de jogar "pelada", com bola de meia, no morro do Santo Cristo com seu melhor amigo, Mariano, também menino pobre.

Unidos pelo esporte e pela liberdade de correr de pés descalços e braços nus, eles tinham ideais diferentes quando crescessem. Papai queria ser professor e Mariano médico. Sonhos que pareciam impossíveis pra outras crianças com dificuldade financeira, mas não para aqueles dois.

Quando tinha dez anos, papai ganhou da professora como prêmio uma entrada pra brincar no parque de diversões por ter conquistado o primeiro lugar na prova.

Ele deu o ingresso para o Mariano. Ele contou o motivo: "ver a felicidade do amigo me faria mais feliz do que se estivesse no brinquedo. Do lado de fora, pude sentir com ele toda aquela alegria."

Meu pai foi criado por um tio português rico, dono de uma padaria. Ele achava que o futuro certo para o sobrinho seria entregar o pão cedinho e depois ficar na padaria, aprendendo o ofício, até o dia em que se tornaria o dono do negócio. Ele não era mau, mas impunha sua autoridade contrariando o sonho daquele menino, que desejava seguir outro caminho em busca de sua vocação.

Micaldas adorava ler e estudar, mas só conseguia fazer isso à noite, escondido no porão, à luz de vela, pra não ser descoberto cometendo tamanho deslize.

O tio costumava dizer que estudar e ler livros eram coisas de preguiçoso, que "homem de verdade" tinha que pegar no pesado e ser dono de algum negócio.

Mas Micaldas perseguia seu ideal, protegido pela tia, que distraía o marido para que o sobrinho pudesse estudar.

Ele quase não dormia pra dar conta do trabalho da padaria e estudar durante a noite.

Entrou num colégio e propôs ao dono:

- Deixa eu estudar aqui? Limparei as salas todos os dias. Só quero uma carteira pra assistir as aulas e poder concluir o ginásio.

Trato feito, o menino conseguiu estudar à noite.

Certo dia, a diretora o viu sentado na porta da escola estudando. Ela fez um carinho na cabeça dele e disse:

- Micaldas, você será um grande homem!

Ele nunca se esqueceu das palavras daquela educadora. Elas tiveram fundamental influência na vida do menino.

Mais tarde, ele resolveu que iria seguir a carreira Militar. Era de graça e ele poderia ficar interno. Estaria solucionado o problema de moradia, alimentação e o estudo garantido. Passou na prova. No início do ano, lá estava ele como cadete da Academia Militar de Realengo. Tornou-se oficial e foi transferido pra Itu.

Conheceu Magdalena Léa, filha do então comandante daquele Regimento. Casou-se com ela, "a moça mais bonita e interessante que ele já tinha conhecido em toda a sua vida", dizia.

Sempre que arranjava um tempo, o tenente Micaldas dava aulas para os soldados analfabetos.

Depois de algumas transferências, carregando louças, alguns móveis, mulher e filhos nos trens ou caminhões, ele veio transferido para o Forte de São João na Urca, Rio de Janeiro, onde continuou alfabetizando muitos soldados. Depois, foi para o Colégio Militar, também no Rio.

Chegou, finalmente, a oportunidade de realizar seu grande sonho: foi convidado a dar aulas de Latim e Literatura Portuguesa. Mais tarde, optou pela cadeira de professor titular de Literatura e da Língua Portuguesa.

Inovador, dava suas aulas a partir de textos modernos de Carlos Drumond de Andrade, Manoel Bandeira e de outros grandes autores que despertassem o interesse dos alunos pela matéria e pela leitura.

Certa vez, num exame de fim de ano, um aluno escreveu a palavra "porra" numa redação.

As provas finais eram avaliadas por dois professores.

O texto impecável e muito interessante recebeu nota zero de um dos professores, embora não apresentasse um só erro. Meu pai havia dado nota dez.

O então coronel Micaldas foi chamado ao gabinete do comandante pra participar do julgamento daquela "indisciplina grave", cometida por seu aluno. E a punição consistiria em perder o ano, ser expulso do colégio e, por conseguinte, romper a carreira.

Ao entrar no gabinete, o coronel Micaldas tirou o quepe. Na cabeça ficou presa uma rodela de jornal.

- Coronel, alertou o comandante, prendendo o riso, tem uma touca de jornal em cima de sua cabeça.

Ele não se atrapalhou.

- Nem senti! É que o quepe estava grande. Achei mais prático recheá-lo, ao invés de providenciar um novo...

Pegou a "touca", arrumou dentro do quepe, e ficou empertigado diante do comandante, aguardando a ordem pra se sentar.

Começou o julgamento. O professor, que dera zero na prova, alegou que o aluno, ao escrever uma palavra chula na redação, desrespeitara os professores e os princípios disciplinares daquele egrégio colégio.

Meu pai argumentou: - dei nota 10, porque o aluno fez uma ótima redação, sem cometer qualquer erro. E o principal para mim é conhecer o sentimento dos alunos e verificar a forma correta de escrever. E perguntou: como posso punir um aluno, por utilizar um termo que faz parte de um poema analisado em minha aula? Abriu um livro de poemas e mostrou a palavra "porra", ali editada, por um conceituado poeta brasileiro. Mantenho a minha nota 10 e não concordo com qualquer tipo de punição. A liberdade de expressão deve ser respeitada!

Resultado do julgamento: o aluno pôde seguir a carreira militar.

Nos intervalos, os alunos o procuravam pra bater papo com aquele "cara bacana", um professor amigão, pronto pra ouvir os mais íntimos problemas, dar ensinamentos que não se restringiam unicamente ao ensino de sua matéria, falando de homem pra homem, sem escolher palavras técnicas, relacionamento entre pais e filhos, problemas escolares, dúvidas sobre sexo, etc.

Por ser tão querido, foi eleito três vezes paraninfo das turmas de formandos.

Mas na quarta vez, o comandante proibiu, dizendo que não seria possível ser paraninfo quatro vezes seguidas. Então, os alunos o elegeram o "Patrono da Turma". Micaldas foi o único Patrono vivo da história do Colégio Militar.

Na educação dos filhos, papai também era um cara compreensivo e avançado. Ele nos ensinava como conviver com os preconceitos sobre comportamento sexual. Sempre franco, sem papas na língua, dizia que a virgindade era uma burrice que se prendia a um tabu de uma pelinha, que não tinha a menor importância na dignidade de uma mulher.

Mas ressaltava que a sociedade exigia que casássemos virgens. Ele, como homem, sabia que aquilo seria primordial para que fôssemos respeitadas pelos nossos pretendentes.

E aconselhava: segurem-se meninas! É difícil segurar o desejo sexual. Não permitam intimidades além do beijo. Depois de casadas, vocês terão liberdade pra gozar as delícias das relações sexuais com seus maridos.

Com meu irmão, ele também abria o jogo e sempre mantinha uma conversa aberta sobre todos os assuntos.

Papai e mamãe se afinavam muito bem, tanto na parte intelectual como na educação dos filhos e nas conversas com nossos amigos.

Mariano, aquele amigo de infância, formou-se médico. Mais tarde, ficou conhecido como Professor Mariano de Andrade, ganhando uma placa com o seu nome numa ala de cirurgia da Santa Casa de Misericórdia.

Meu pai também foi homenageado com uma placa na entrada da Capela do Colégio Militar.

Aqueles dois meninos de rua escolheram seus destinos: vencedores!

Aprendemos com nosso pai que a vida é como a natureza: Precisa ser amada e respeitada desde as coisas mais simples. E que a nossa vida vale a pena, quando somos capazes de buscar fazer o melhor por nós e pelos outros.

A vida de meu pai vale a pena!

Muito obrigada, papai!

Lou Micaldas é professora, formada pelo Instituto de Educação, e jornalista, criada e formada no Jornal do Brasil; administra o site Velhos Amigos e colabora com a nossa Agência Assaz Atroz


_______________________________

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons (cartoon copiado do blog "É a minha profissão" )



Pressaa

.



segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Guerra do Crioulo Doido

.

.



Líbia: notícias do front

por Thierry Meyssan

Sábado 20 de Agosto 2011, pelas 20h, ou seja, na altura do Iftar, rompeu-se o jejum do Ramadão quando a Aliança atlântica lançou a "Operação Sereia"

As Sereias são os alto-falantes das mesquitas que foram usadas pela Al-Qaeda para lançar um apelo de modo a iniciar as revoltas. Logo de seguida, células adormecidas de rebeldes entraram em ação. São pequenos grupos de extrema mobilidade que multiplicaram os ataques. Os combates durante a noite fizeram 350 mortos e 3000 feridos.

A situação estabilizou durante o dia de domingo.

Um navio da Otan acostou em Tripoli, fornecendo armas de alto calibre e desembarcando jihadistas da Al Qaeda, contratados pelos oficiais da Aliança.

Os combates retomaram durante a noite. Atingiram um pico de violência extrema. Os drones e os aviões da Otan bombardeiam em todas as direções. Os helicópteros metralham as pessoas nas ruas de forma a abrir caminho aos jihadistas.

No início da noite, uma escolta de veículos oficiais transportando personalidades de primeiro plano foi atacado. Refugiaram-se no hotel Rixos onde se encontra a imprensa estrangeira. A Otan não se atreveu a bombardear por causa dos jornalistas. O hotel Rixos, onde me encontro, está sob fogo constante.

Às 23h30, o ministério da Saúde constatou que os hospitais se encontravam saturados. Contavam-se no início da noite 1300 mortos e 5000 feridos.

A Otan recebeu esta missão do Conselho de Segurança da ONU para proteger os civis. Na realidade, a França e o Reino-Unido recomeçaram com os massacres coloniais.

1h00 Khamis Kadhafi vem em pessoa trazer armas para defender o hotel. Foi-se embora após entregar as armas. Os combates são extremamente duros nos arredores.



--
Publicado no site Terceira Teoria___________________________________

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

Pressaa

.

domingo, 21 de agosto de 2011

The War on Tax - A Guerra do Imposto sobre a guerra

.




Entreouvido na Vila Vudu:

“Pêqmepê! De tanto os panacas [os panacas, bem entendido] petistas falarem em “tucanos”, “tucanos”, porque os jornais e a televisão só dizem “tucanos”, “tucanos” – justamente para fazer esquecer que o PSDB é o Partido da Social Democracia Brasileira – até já tinha mesquecido! Pêqmepê! O PSDB é o partido da social democracia brasileira! Comé que eu fui mesquecê?!

Nenhum partido social democrata jamais prestou, no mundo, nunca!

Em 2004 o Mangabeira Unger já ensinava em SOCIAL DEMOCRACIA: “O discurso político dominante no Brasil hoje é o da social-democracia européia. Na Europa, porém, fica cada vez mais patente a insuficiência da fórmula social-democrata para lidar com os problemas atuais. Mais razão para concluir que está errado o subtexto da política brasileira.

O que definiu a formação da social-democracia no curso do século 20 foi o abandono da tentativa de reorganizar o Estado e o mercado em favor da adoção de políticas de redistribuição econômica e proteção social. Políticas que humanizariam as instituições que os social-democratas deixaram de criticar”.

___________________________________________________________

Contra impostos? “Austeridade”? Por quê?!

Corey Robin, London Review of Books, vol. 33, n. 16
The War on Tax Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

A crise da dívida pela qual passa o governo Obama é resultado da guerra e dos impostos. Não se discute que a crise vem de antes da eleição de Obama. Quando George W. Bush tomou posse em 2001, os EUA tinham excedente de $2 trilhões. Muitos acreditavam que, se o país simplesmente seguisse o rumo traçado por Bill Clinton, a dívida nacional, então de $5,7 trilhões, estaria zerada ao final da década. Bush escolheu outra via. Cortou impostos e reduziu a arrecadação em cerca de $1,8 trilhão. Declarou guerra geral ao terror e fez duas guerras específicas. Financiadas inteiramente por empréstimos – fato inédito na história dos EUA – as guerras e os gastos extras da Defesa acrescentaram $1,5 trilhão à dívida. A crise financeira e a recessão que a seguiu fizeram encolher ainda mais a arrecadação. Quando deixou o governo, Bush já havia consumido o excedente e praticamente dobrara o tamanho da dívida – foi o presidente que mais aumentou a dívida pública, em toda a história dos EUA.

Não importa o caminho pelo qual chegamos ao ponto onde estamos: a atual crise é política, não financeira. Os EUA não estão ante a perspectiva de não mais poder tomar empréstimos por ninguém querer emprestar; as convulsões são resultado de contingências inteiramente políticas: uma lei de 1917, que exige que o Congresso autorize aumentos no teto da dívida; uma Câmara de Deputados controlada pelos Republicanos que parece sinceramente querer – também pela primeira vez na história dos EUA – impedir qualquer aumento; e um presidente Democrata que – por convicção, astúcia ou necessidade – prefere cooperar, a confrontar a oposição. Dessa convergência nasceu a ideia de que, se o Congresso não autorizasse o aumento do teto de endividamento no dia 2/8, os EUA quebrariam. Isso jamais aconteceria, em nenhum caso: os EUA tinham reservas para pagar as dívidas (e tinham arrecadação futura), e Obama antes cortaria outros gastos, e em nenhum caso o país quebraria. Mesmo assim, com a histeria e o desvario de que só Washington é capaz, fixou-se o consenso de que era preciso fazer alguma coisa, imediatamente.

Se a política não tivesse intervindo e se Obama desse ouvidos aos economistas de centro-esquerda, eis o que deveria ter feito. Primeiro, nada fazer, coisa alguma, em relação à dívida, pelo menos por hora. A dívida pode ser significativamente reduzida, bastando, para tanto, que a economia melhore. A melhor maneira de obter isso é o governo gastar, o que aumentará a dívida no curto prazo, mas a fará diminuir no longo prazo, com a arrecadação gerada pelo crescimento. Segundo, estando a economia saudável, aumentar impostos, sobretudo para os mais ricos. Como parte do PIB, a arrecadação está no nível mais baixo desde 1950. Exceto durante um curto período no final dos anos 1980s e início dos 1990s, os principais impostos marginais chegaram ao nível mais baixo, desde 1931. Impostos cobrados a empresas nos EUA são os mais baixos dentre todos os países da OECD. A ideia de que não se poderiam aumentar impostos, não só para financiar gastos necessários e desejados, mas também para reduzir o déficit, é contraintuitiva. Finalmente, reduzir os gastos militares.

Como o jornalista de economia Doug Henwood observou, se os EUA simplesmente voltassem aos níveis de gastos de 2000 – 3,7% do PIB, bem diferentes dos atuais 5,4% –, já poderia economizar $3,6 trilhões, na próxima década, 72% a mais que economizará nos termos do acordo sobre endividamento que Obama negociou com o Congresso.

Nada disso. Obama e o Congresso tomaram o caminho inverso, pavimentado há 40 anos pela filosofia “contra impostos” da direita norte-americana. Em fevereiro de 2010, Obama nomeou uma comissão bipartidária para equilibrar o orçamento até 2015, e fazendo da redução da dívida prioridade absoluta. Depois das eleições de meio de mandato, em novembro, quando os Republicanos reconquistaram a maioria da Câmara com a ajuda do Tea Party, Obama congelou os salários dos trabalhadores federais e endossou um programa de “austeridade” ainda mais agressivo. Só cortes e nenhum aumento de impostos: não uma vez (quando, em dezembro, Obama prorrogou a validade dos cortes de impostos feitos por Bush), mas duas vezes (na primeira fase do acordo da dívida, que elimina $900 bilhões da dívida exclusivamente cortando gastos) e, agora, já quase três vezes (com a segunda fase do acordo, que eliminará mais $1,2 trilhões só em gastos... se uma comissão do Congresso não conseguir produzir pacote de aumentos de impostos e cortes de gastos até novembro). O acordo não fala de cortar gastos da Defesa – e não se sabe se os cortes são cortes ou simples taxas de crescimento mais lento, nem se e como acontecerão – mas recentes comentários de Obama e de seu secretário da Defesa sugerem que o acordo final teria sido o melhor possível, para evitar cortar benefícios.

Por definição, o acordo a que chegaram seria politicamente viável. Por que seria viável – e outras soluções não seriam viáveis – é assunto muito discutível e ferozmente discutido. Muitos culpam os Republicanos, que quereriam encurralar o governo, para prosseguir em sua agenda de baixar impostos e minimizar gastos. Outros culpam Obama: sua sobrenatural aversão a conflitos e crença absurda na boa fé dos Republicanos e no valor do bipartidarismo. Há quem fale também das limitações que constrangem o poder do presidente nos EUA: diferente do que ocorre em sistema parlamentarista, o presidente tem de negociar com deputados da situação e da oposição cujos destinos eleitorais não estão atrelados aos do presidente.

Há quem diga que não se pode assumir que Obama desejasse resultado substancialmente diferente do que obteve. Pode ser verdade: Obama sempre declarou seu desejo de cortar gastos do governo; talvez porque suponha que assim melhorariam suas chances de ser reeleito, ou porque embarcou nas ortodoxias neoliberais da moda ou, simplesmente, porque conviveu por tempo demais com os friedmanistas da Universidade de Chicago, Obama não é o progressista que muitos imaginaram que fosse. Obteve o acordo que obteve simplesmente porque era o acordo que desejava obter; ou, então, porque não desejava com o indispensável empenho qualquer outro tipo de acordo.

Todos esses argumentos dão a impressão de ter algo de substancial, mas se os deixamos esfriar e voltamos a eles na manhã seguinte, vê-se que, em todos, falta uma dinâmica mais profunda.

Historicamente, crises de dívidas resultantes de guerras sempre catalisaram avanços políticos progressistas e, algumas, até precipitaram revoluções. Charles I e Louis XVI viram-se metidos em conflitos militares que seus sistemas tributários não podiam financiar. Acabaram, os dois envolvidos em confrontações fatais: Charles com o Parlamento em 1640; e Louis com os Estados Gerais em 1789. Além da motivação financeira, as revoluções que derrubaram esses soberanos alimentaram-se também das disputas que os reis tiveram de fazer para aumentar impostos e financiar suas guerras.

Como Richard Tuck sugeriu, é possível que o próprio Charles tenha aberto a porta para a democracia na Inglaterra. Para reimplantar um antigo imposto sobre cidades costeiras (“ship money”) e com esse dinheiro financiar uma expedição naval contra os holandeses, a Coroa argumentou que a segurança da população seria o mais intocável fundamento da ação política – axioma de todos os republicanos de todos os tempos –, superior a qualquer lei ou constituição. Embora usado para justificar o absolutismo, a retórica de Charles sobre “interesses do povo” carregava importante implicação democrática subversiva: essas guerras não são minhas, são suas, de vocês, do povo, e vocês têm de fazer o possível e o impossível para que sejam guerras vitoriosas. Forças parlamentares poderiam ter contra-argumentado que, se o padrão ouro da política são os interesses e a segurança do povo, melhor seria que representantes eleitos do povo determinassem de que interesses e segurança se tratava e como preferiam vê-los defendidos.

Logo depois do 11/9, muitos liberais esperavam que a guerra ao terror inaugurasse novo capítulo na história da social democracia nos EUA, porque a conclamação ao sacrifício patriótico geraria uma ética da solidariedade social. O que se viu foi Bush capando impostos, endividar o país até o pescoço e converter a guerra ao terror em esporte nacional pela televisão, não em guerra do povo. Soberanos modernos tardios, parece, afastam suas políticas de qualquer democracia, criando exércitos mercenários e mergulhando no pântano dos mercados de crédito fácil. Como resultado, ninguém nos EUA precisa reclamar a propriedade de qualquer valor comum ou coletivo: nem de guerras nem de dívidas; nem o governo nem, com certeza, os cidadãos, cada dia mais empobrecidos e precários.

Por isso, a atual crise foi tomada pela esquerda como oportunidade para retirada e encolhimento, não como fagulha que poderia desencadear uma revolta democrática. Nessa medida, faz lembrar crises semelhantes no Terceiro Mundo ao longo dos últimos 30 anos, sempre usadas pelas elites para justificar cortes drásticos nos gastos do governo e a reestruturação de economias social-democratas. Por exemplo, também, a crise fiscal da cidade de New York em 1975, quando Wall Street pôs-se a impor políticas de “austeridade” e disciplina à social democracia nos EUA, em movimento que, para muitos, deu origem a experimentos posteriores, sempre de crescente “austeridade”, na América Latina e pelo mundo.

O persistente discurso de Obama a clamar por “austeridade” atualiza para 2011 o que diziam os Democratas de Wall Street durante a crise de 1975. Depois daquela crise, o partido Democrata foi reconfigurado à imagem de Wall Street [no Brasil, criou-se o PSDB, Partido da Social Democracia Brasileira, à moda FMI e Wall Street. BINGO!]

Mas há duas diferenças cruciais, hoje. Não há qualquer ameaça de os emprestadores fecharem as torneiras; emprestadores internacionais parecem perfeitamente desejosos de continuar a financiar o endividamento dos EUA. De fato, quando a Bolsa de Valores desabou depois que Standard and Poor’s rebaixou a avaliação dos EUA, dia 5 de agosto, os investidores correram a pôr seu dinheiro em bônus do Tesouro dos EUA. E onde crises anteriores provocaram resistência popular, dessa vez – por mais que a crise seja simulacro – exceto em Wisconsin e alguns outros estados, o único sinal de mobilização que se viu na esquerda, foi para rápida retirada.

Se há texto de leitura indispensável nesse momento, é O 18 Brumário de Luis Bonaparte, de Marx [1]. Não pela super repetida frase da primeira vez como tragédia, depois como farsa, mas, isso sim, pela impressionante análise, de retrovisão e previsão, do comportamento reacionário dos camponeses franceses ao longo das monarquias Bourbon e de Julho. Embora a revolução de 1789 e Napoleão tivessem libertados os camponeses da servidão, a geração que veio em seguida foi entregue, sem qualquer atenção, à dura disputa dentro do mercado da produção agrícola, contra pequenos proprietários que não lhes podiam oferecer emprego e salário. Sim, já não tinham de pagar impostos feudais aos donos da terra, mas tinham de pagar hipotecas e impostos que nenhum benefício lhes traziam. Com Napoleão III, o estado só lhes ofereceu o espetáculo imperial. Não era pouco, como Marx observou, porque, no exército, os camponeses foram “transformados em heróis, defendendo suas novas posses contra o mundo externo, glorificando a nacionalidade recém adquirida, pilhando e revolucionando o mundo. A farda era seu manto de poder estatal; a guerra, sua poesia”. A isso Marx chamou “o império do campesinato”.

Na análise de Marx vê-se o baixo ventre da crise da dívida – de fato, das últimas quatro décadas da revolta da direita contra impostos, da Proposição 13 de Howard Jarvis em 1978, que destruiu as finanças da California ao impor estritos limites a qualquer aumento de impostos, ao Tea Party. Os liberais sempre têm dificuldade para entender esses movimentos – impostos não servem para nada que preste? – porque não veem como é pouco o que o estado, nos EUA, oferece diretamente aos cidadãos, em relação às circunstâncias econômicas em que vivam.

Desde o início dos anos 1970s, com curtos períodos de exceção, os salários dos trabalhadores estão estagnados. O que o estado ofereceu em resposta? Transporte público praticamente não existe. Nem com a “reforma” de Obama o estado oferece assistência médica ou seguro-saúde à maioria da população. Exceto nos bairros ricos, só muito raramente se encontra educação pública de boa qualidade. Nessas circunstâncias, não surpreende que os cidadãos queiram pagar menos impostos. Aí está um tipo de mudança na qual conseguem crer.

Nesse ponto, Democratas como Obama e os que o defendem, que tanto reclamam de o Tea Party ter sitiado a política norte-americana, são os únicos culpados. Durante décadas, os Democratas ajudaram a depauperar o estado norte-americano [no Brasil, a social democracia brasileira, o PSDB, fez o mesmo serviço sujo (NTs)] sempre na vã esperança de que o mercado operaria sua mágica. Por algum tempo, até que operou, enquanto o estado endividava-se sem parar. E os trabalhadores encontraram compensação para os salários estagnados, no crédito fácil e nas hipotecas a juros baixos. Na hora de pagar as dívidas, os salários – no caso dos felizardos que ainda tivessem emprego e salário – não era suficiente para pagar coisa alguma. Só restou aos assalariados clamar por menos impostos e ‘austeridade’. E o império do campesinato.


Nota dos tradutores

[1] MARX, Karl. [dez.1851-mar.1852] O 18 de Brumário de Louis Bonaparte

redecastorphoto

http://goo.gl/uo6lN /twitter

____________________

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

Pressaa

.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Jundiaí: uma cidade dominada pelo medo

.






por André Lux

Infelizmente a Folha do Japi não será mais impressa e distribuída pela cidade. Durante esses quatros meses, tentamos levar até a população de Jundiaí informações, questionamentos e debates sobre temas que raramente são abordados pelo restante da mídia local. Mostramos que nossa cidade está muito longe de ser essa “Ilha da Fantasia” que o governo do PSDB, que já está há 20 anos no poder, tenta vender por meio de caríssimas peças de marketing – inclusive durante o horário nobre da rede Globo, um dos mais caros do planeta.

Nesse período, a Folha do Japi recebeu inúmeras mensagens de apoio e carinho, bem como ofertas de ajuda inclusive na distribuição do jornal. Mas, lamentavelmente, foi no aspecto financeiro que a coisa desandou. Mantido com recursos próprios e com pequenas contribuições dos poucos anunciantes que ousaram comprar um espaço no jornal, chegamos a um ponto em que não havia mais condições de manter a publicação do jornal.

E é ai que se revela o aspecto mais triste dessa história: muita gente que prometeu ajudar o jornal comprando espaço para publicidade desistiu da ideia quando percebeu que a Folha do Japi primava por manter uma postura firme e crítica frente ao poder público local. A justificativa para a desistência? Medo.

Sim, isso mesmo. Medo de sofrer represálias desse mesmo poder público. Inclusive, é preciso dizer, alguns de nossos anunciantes sofreram ameaças anônimas por terem aparecido em nossas páginas! Isso sem falar nos donos de bancas que receberam, logo no início da distribuição da Folha do Japi, uma carta com ameaças veladas feitas pelo maior distribuidor de jornais e revistas da cidade. A quem será que interessa ameaçar anunciantes e donos de bancas só porque compraram espaço publicitário e distribuíram um jornal que manteve postura independente e não alinhada com a propaganda oficial do governo tucano? Isso não podemos responder, infelizmente.

E nem vamos aqui falar das inúmeras falsas acusações, ameaças e difamações feitas contra o jornal e seus colaboradores - proferidas inclusive por funcionários de cargo comissionado da Prefeitura de Jundiaí durante o horário de expediente de trabalho nas redes sociais. Esse descaramento e falta de respeito aos valores democráticos e republicanos já nem impressiona mais ninguém.

Todos esses fatos lamentáveis demonstram que, apesar de já estarmos em pleno século 21, em Jundiaí ainda vivemos num clima antidemocrático, de controle do poder na base do terror e de ataques à liberdade de expressão que remetem aos períodos mais obscuros da ditadura cívico-militar que tomou o Brasil de assalto no golpe de estado de 1964 e durou 22 amargos anos, durante os quais centenas de homens, mulheres e até crianças foram presos, torturados e mortos simplesmente por discordarem dos “coronéis” de plantão.

Assim, incapaz de continuar arcando com os custos da produção impressa do jornal, a Folha do Japi vai continuar existindo apenas virtualmente, aqui no blog, nas redes sociais e nas inúmeras listas de e-mails que os cidadãos com caráter progressista da cidade possuem. Vamos tentar, quando possível, imprimir edições especiais do jornal quando houver algum tema de grande pertinência.

Perdemos uma batalha, é verdade. Mas não perdemos a guerra. Na verdade, quem sai perdendo mesmo é justamente a população de Jundiaí, que a partir de agora será privada de obter informações que mostram o outro lado da moeda da realidade local e também de conhecer opiniões que não se alinham com o que vende como “verdade única” a imprensa local e as milionárias peças de publicidade do governo do PSDB.

Entretanto, saímos com as cabeças erguidas e cientes de ter feito um bom trabalho, fato que pode ser medido facilmente pelo nível de ódio e de desespero das campanhas de difamação feitas contra o jornal por pessoas incivilizadas e de sem caráter que não aceitam ser contraditas ou sequer questionadas.

Dizem que o caráter de uma pessoa pode ser medido pelo tipo de amigos e inimigos que ela tem. Se for assim, a Folha do Japi e todos aqueles que ajudaram esse sonho a se tornar realidade, mesmo que por um breve período de tempo, tem um excelente caráter.

E vamos em frente, porque amanhã vai ser outro dia...

Obrigado a todos.

André Lux
André Lux é jornalista, editor do blog TUDO EM CIMA.
Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
_____________________________

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

Pressaa
.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Pra que diabo serve a literatura?

.



por Urariano Mota

Recife (PE) - Em um dia distante, as letras já foram chamadas de belas letras. E apesar de assim se chamarem, de belas, e para melhor belo belo terem como objeto a beleza, nem assim as belíssimas defenderam os seus cultivadores. O poeta Geraldino Brasil, que bem conhecia a educação do comum das gentes, assim viu como são recebidos os autores na boa sociedade:








“CLASSE MÉDIA
Um médico.
Ótimo na família.
Um executivo.
Ótimo.
Um engenheiro
Um arquiteto
Um magistrado.
Ótimo.
Um poeta.
Melhor na família dos outros.”

Mas falar nesse tom, irônico e apolíneo, infelizmente não nos serve. Bem que eu gostaria de continuar nesse diapasão, para, defendido pela paciência e método, construir um discurso sobre a serventia da literatura. E para melhor estilo, o que sempre impressiona, concluir pela sua absoluta inutilidade. Mas deixemos de lado esses maneirismos de elegância, de bocejo, tédio e falsa altura. Deixemos, porque, meus amigos e inimigos, este artigo é sobre a grande, absoluta e imprescindível utilidade da literatura.

Falarei apenas do que sei, falarei apenas do vivido. Nada do que adiante se escreve foi lido, ocorrido a outros, em outras vidas ou experiências. Falarei apenas da minha própria, miserável ou medíocre experiência, pouco importa.

Minha primeira impressão prática, material, das letras me veio na adolescência. Eu tenho um amigo, eu tenho um inimigo (e assim deveríamos nos referir sempre aos amigos, pois em circunstâncias históricas estão do nosso lado, ao nosso lado, e em outras mudam de sinal e amizade), eu tenho um amigo que um belo dia me pediu uma redação. Não lembro do tema, desconfio que era sobre a ciência e o nordeste brasileiro. Lembro do real motivo que me moveu: meu amigo, meu inimigo, se achava em dificuldade, porque a depender daquela redação ele seria aprovado ou reprovado em português no terceiro ano colegial. Movido pois de bom espírito, escrevi, na inexperiência dos meus 18 anos, e invoquei Prometeu e seu fígado para fortalecer as precárias linhas que unem, ou deveriam unir, a mais avançada ciência e o nordeste do Brasil. Só muitos anos depois eu soube, quando a minha própria necessidade material não era das mais nordestinas, que aquela redação servira para meu amigo ganhar um prêmio. A redação era para um concurso no colégio, e ele pôde andar pelas noites do bairro com uma lindíssima camisa, fruto do primeiro lugar alcançado com o fígado de Prometeu, do suor deste autor e da invocação aos deuses do Olimpo. E melhor lembro da argumentação amiga, para justificar o ato, com palavras dignas de outros gregos, os sofistas:

- O prêmio era somente uma camisa. Uma, uma só, e dois pobres estavam necessitados. Mas como é que eu ia dividir o prêmio? Eu podia cortar a camisa no meio com uma tesoura?

Era justo. A sorte e a esperteza não escolhem cara. Os que não são espertos somente possuem a seu favor a persistência, ainda que nem sempre mantenham um prudente afastamento dos caras que adoram e adotam um otário. Mas poucos anos depois, narrei uma aventura vivida com esse mesmo amigo num prostíbulo, na forma de um conto, sob o nome de Uma noite na Bahiana. O texto, publicado na revista Ficção, misturado a Millôr Fernandes e a Fernando Sabino como joio no trigo, rendeu um pagamento um pouco melhor que uma camisa, e até hoje rende uma certa alegria, e sorrisos, em quem o lê.

Até aqui, está visto, falei do que me aconteceu, mas não uni a própria e miserável experiência ao título deste artigo. Para que diabo é mesmo que serve a literatura? De um ponto de vista estrito de grana, de moeda que compra alimento, álcool, camisa que sirva além do corpo de quem escreve, que vá além da vaidade do autor, existe alguma utilidade na literatura? Existe algo nela que diga somos todos humanos, e o reino da felicidade é a socialização da carne espírito? Existe nela algo que, sem descer dos seus objetos mais nobres, chame a atenção para outros em estado de necessidade, e por isso lhes traga um pouco mais de carinho e pão?

Suspensa aí em cima, isso não é uma pergunta, é uma espada de Dâmocles. Que não caia até a próxima oportunidade.

___________________________

Urariano Mota, jornalista e escritor, autor de "Soledad no Recife" - Boitempo-2009 - é colunista do site Direto da Redação, entre outros. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.

___________________________

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

Pressaa

.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O MUSEU ARQUEOLÓGICO DE SALTA

.





(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo, publicado em 2006)

Urda Alice Klueger

Como no dia seguinte não haveria o Trem das Nuvens, decidiu-se viajar ao meio-dia, ao invés do dia de parada que estava programado. Assim, havia uma manhã inteira para tentar conhecer Salta, embora num instante eu me convencesse de que seria necessário ao menos uma quinzena para se aprender mais sobre aquela cidade maravilhosa!
Assim que soube daquela folga, joguei-me para a rua, a tentar descobrir se havia um Museu de Arqueologia ou algo assim. A cidade era realmente magnífica, com uma catedral toda de mármore cor-de-rosa, uma Praça de Armas fascinante, uma arquitetura colonial conservada que era talvez a mais bonita que eu já vira nos países hispânicos – penso que junto a este texto serão publicadas fotos de Salta para que tenham um vislumbre do que tento falar. Num instante, eu chegava ao antigo Cabildo [1][1], onde se situava exatamente o ... Museu Histórico, com seções e seções dedicadas à longuíssima História pré-colonial local, e meu queixo foi caindo e meu coração se apaixonando cada vez mais a cada passo que eu dava dentro daquele museu!

Vou tentar resumir o que ali estava exposto, isto é, um pouco da História da antiga Sagta.

Desde o início da sua povoação, diversos povos dominaram a região, até os de língua Aimara, antes dos Incas. No museu onde ora estava era possível ver-se dezenas, centenas dos mais variados objetos e utensílios de toda essa gente que habitou a minha América antes que o europeu cá chegasse com a cruz numa mão e uma espada na outra, a matar e destruir em nome da religião. Havia os objetos de pedra, de cerâmica, de metal, e tantas coisas que era de entontecer, além de cartazes explicativos e um vídeo que era possível se ver numa das salas. A partir de uma certa data, creio que por volta de 5.000 anos antes do presente, os antigos salteños passaram a dominar as técnicas de agricultura e a cultivar o milho e, consequentemente, a fazer o pão. Claro está que para fazer-se pão era necessário moer-se o milho para produzir-se farinha, e o método encontrado foi o de produzir-se farinha pilando o milho.

Daí quero fazer um parêntesis para botar vocês a imaginar. Nessa área pré-Colonial do Museu Histórico de Salta[2][2] há diversas pedras que serviram para pilar milho no passado. São pedras enormes, do tamanho, digamos, de kombis, que talvez possuíssem alguma pequena reentrância, já lá no passado, onde uma primeira pessoa um dia pusera um punhado de milho e batera nele até transformá-lo em farinha. Digamos que naquele ano, ou naquela década, ou naquele século, sempre de novo alguém pilava milho naquele mesmo lugar, o que foi abrindo um buraco naquela pedra. Deve ter ficado cada vez mais fácil ir pilando o milho naquele lugar previamente preparado, e sempre deveria haver alguém lá trabalhando. É de se supor que outras pessoas gostassem de ficar ali, pilando milho e conversando com a primeira , pois a tal pedra do tamanho de uma kombi começou a ficar toda esburacada de buracos de pilão. E lá estão tais pedras hoje, perfuradas como um queijo, algumas com seus buracos-de-pilão usados por tanto tempo que furaram a pedra de fora a fora, abriram buracos até o outro lado da pedra, como se se tratasse de um pedaço de isopor, e não de uma dura rocha. (Não se esqueçam do tamanho-kombi). Então, agora vale a pergunta: quanto tempo é necessário ficar-se a pilar um cereal sobre uma rocha daquele tamanho, para perfurá-la de um lado até o outro? Um século? Um milênio? Diversos milênios? Eu não sei. Sei é que aquelas pedras enormes estão lá no Museu de Salta a atestar a pujança e o tempo da sua História, e eu tinha calafrios de prazer por estar ali, a olhar para elas.


Urda Alice Klueger é escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.

________________________

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

Pressaa

.