A peruana Chabuca Granda, conhecida por muitos brasileiros depois que duas de suas músicas - Fina Estampa e La flor de La canela – foram gravadas por Caetano Veloso, canta a cidade de Lima em algumas valsas memoráveis. Numa delas, ‘Lima de verdade’, demonstra amor pela cidade onde viveu, mas confessa que a fonte de sua inspiração não é a Lima moderna, “de carne e osso” – digamos assim - mas a velha cidade que está dizendo adeus: La Lima antigua que se va.
As alamedas, ruas, becos e praças, as pontes sobre o rio, os jardins, os balcões coloniais, as sombras que ocultam miradas, os passos de dança da marinera, o charme de suas mulheres, as cores, os cheiros e o som da cidade – nada escapa aos olhos observadores de Chabuca. Em outra valsa diz que “essa Lima que se distancia e se perde na lembrança é uma bela senhora, cheia de mistério e de tempo”. Entrega, então, a Lima de mis amores a um cavalheiro que vem de longe.
Lembrei-me da cantora peruana, visivelmente enamorada de sua cidade, ao ler o livro organizado por Joaquim Marinho – Manaus meu sonho – publicado pela Valer. Ele também está enamorado. Vem paquerando Manaus desde sempre, chegou a ter um caso com a cidade – que a Silene me perdoe a inconfidência – quando dirigiu o Departamento de Turismo do Amazonas. Foi aí que convidou Ziraldo, Henfil, Fernando Sabino e outros cavalheiros vindos de longe, a quem pediu que ajudassem a cuidar da Manaus de mis amores.
Manaus meu sonho
O livro, editado com cuidado, reproduz fotos de Manaus antiga. Marinho se recusa a dar adeus àquela cidade que só existe na nossa lembrança. É como se ele teimasse em nos dizer que ela continua existindo porque está dentro de nós, em nosso pensamento. Penso, logo ela existe. Ele se queixa que tentaram destruir tudo: o porto flutuante, o entorno da Manáos Harbour, “até as mais novas ameaças de fazer um porto em frente ao Encontro das Águas”:
“Merecemos continuar a ser a cidade sorriso, e mesmo com tantos milhões de carros, ar-condicionados e toneladas de asfalto para atender os quase dois milhões de habitantes, nos dias de hoje, temos de preservar a floresta, os rios, os animas e a nossa gente (...)”.
Esse é o foco central do livro, que traz textos de quinze autores. Renan Freitas Pinto recupera o etnólogo alemão Theodor Koch-Grunberg, que passou por Manaus em 1903 e retornou em 1911, testemunhando as mudanças sofridas em oito anos.
“No dia 27 de maio de 1911 cheguei a Manaus. O porto está irreconhecível. A Companhia Manáos Harbour o modernizara inteiramente. Por todas as partes erguem-se grandes armazéns. Os transatlânticos atracam imediatamente em suas plataformas flutuantes, pelas quais se desembarca facilmente. Pelas toscas ruas correm e saltam os automóveis. A cidade perdeu por certo muito de seu panorama, antes tão encantador”.
Observa Renan o confronto entre duas cidades. Os sentimentos do visitante estão divididos, mas parece que estão mais próximos da cidade que deixara de existir, “daqueles elementos de Manaus que a identificavam mais claramente como uma cidade amazônica, com um modo de ser impregnado de elementos mais locais do que cosmopolitas”.
Nessa mesma linha insistem dois autores que passaram por Manaus em 1970: Fernando Sabino e Ziraldo. Sabino comparece com uma crônica, onde apresenta as palavras de um presidente africano como diretrizes ideais para Manaus:
“A herança que nos legaram nossos antepassados é a beleza natural de nosso país. São os nossos caudais, nossos rios, nossas florestas, nossas montanhas, nossos animais, nossos lagos, nossos vulcões e nossas planícies. Em uma palavra: a natureza é parte integrante, inseparável e real da nossa essência peculiar”.
O livro reproduz desenhos de Ziraldo, que converteu a floresta amazônica em formas geométricas e coloridas. Ele fala de sua experiência: “Quando, enfim, pude conhecer de perto o rio e a mata colossal que o contém, descobri que era preciso inventar outro jeito de contar para todo o mundo o susto do meu olhar. As cores da Amazônia são as do começo do mundo!”. Será? Vamos ver. Fala, Márcio Souza!
Vê bem, Maria
Num livro de Marinho não podia faltar seu parceiro de sempre, o escritor Márcio Souza, com seu estilo ferino e provocador. Ele critica prefeitos e administradores da capital amazonense e sobra pra quem enfiar a carapuça:“Manaus é a cidade mais odiada do mundo, cidade acostumada a apanhar na cara, a ser violentada, a ser roubada vergonhosamente pelos seus amantes. Cidade puta”.
O ator Ediney Azancoth lembra “os anos em que vivemos na escuridão”, no final da guerra, os bondes que paravam com o corte de energia, as lanternas, os lampiões apagados nos postes de ferro, as lamparinas de querosene, o som inaudível do rádio, as manifestações teatrais e, finalmente, o oásis de luz, único refúgio de alegria e diversão: os cinemas que tinham gerador próprio.
O mais amazonense de todos os paraenses, José Seráfico defende: “Manaus, a despeito das sucessivas tentativas de desfigurá-la, é uma cidade bela” – diz, mas condena a violência ambiental: “Se ontem aterrar igarapés e promover o sacrifício de espécies florestais não significava mais que adequar-se aos padrões de modernidade admitidos, desde a reunião de Oslo (1972), isso se tornou cada dia mais questionado”.
Vale a pena ler a carta escrita por Tenório Telles ao poeta Quintino Cunha, autor do poema ‘Encontro das Águas’. Tenório suspeita que o poeta estava apaixonado quando escreveu esse poema: “Vê bem, Maria, aqui se cruzam: este / é o Rio Negro aquele é o Solimões./ Vê bem como este contra aquele investe,/ Como as saudades com as recordações”. O poema termina: “Se esses dois rios fôssemos, Maria / todas as vezes que nos encontramos,/ Que Amazonas de amor não sairia / De mim, de ti, de nós que nos amamos”.
Os outros autores são: João Bosco Araújo, Domingos Demasi, Tricia Cabral, Ulisses de Azevedo Filho, além dos poemas de L. Ruas, Aldisio Figueiras e Ornan Correa, todos eles sobre Manaus. Vale a pena conferir.
Os textos são de qualidade. Nada que lembre o deputado Josué Filho, que num comício no bairro Alvorada II, em 1992, comparou Manaus a “uma linda mulher, uma noivinha de véu e grinalda, que durante as eleições procura um noivo perfeito para se casar”. Diante dos pretendentes à mão da noiva, só resta lembrar o irreverente escritor irlandês Bernard Shaw: “O primeiro homem que comparou a mulher a uma rosa era um poeta. O segundo, um perfeito imbecil”.
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José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (Uerj), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti
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Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons
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