A propósito da visita da presidenta Dilma a Cuba, a nossa Agência Assaz Atroz reproduz crônica de nosso Editor-Assaz-Atroz-Chefe, redigida e publicada na revista digital NovaE em outubro de 2007.
Quando informamos o autor sobre essa nossa intenção de republicar o texto, ele pretendeu que corrigíssemos o último parágrafo, alterando onde se lê "meio milhão" para uns "cinquenta mil", alguma coisa mais próxima daquilo que ele enxergava naquele momento. Discordamos e preferimos manter a exagerada estimativa do observador; pois para nós, nesse específico caso, tanto faz como tanto fez.
Editor-Assaz-Atroz-Alter Ego
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Fernando Soares Campos
Muito se fala sobre a emigração clandestina de cubanos. Para os defensores do socialismo e da revolução cubana, quem se aventura de Cuba à Flórida num barco, canoa, jangada ou balsa improvisada, não é migrante, mas sim desertor. O outro lado, formado por aqueles que têm verdadeira ojeriza pela Cuba de Fidel, trata-o como vítima de perseguições políticas, portanto seriam simplesmente refugiados, pois é esta condição que o cubano migrante vai evocar se conseguir desembarcar numa praia dos EUA. E certamente contará uma história capaz de comover até os velhos torturadores do DOI-CODI.
A chamada lei "wet foot, dry foot" (pé molhado, pé seco) estabelece que o refugiado cubano que consegue pisar em terra firme nos EUA pode ser autorizado a permanecer no país, enquanto aquele que for apanhado ainda no mar será enviado de volta a Cuba.
Estivessem os mexicanos nas mesmas condições que os cubanos, fosse o México um país que tivesse ousado enfrentar a arrogância do colonizador e se, no lugar de um capacho de Washington, houvesse um Fidel Castro, o muro que isola os dois países ao longo de suas fronteiras teria sido construído há 50 anos, não seria coisa tão recente. Aí os mexicanos estariam “gozando” os direitos de uma lei chamada “foot above , foot below” (pé em cima, pé embaixo), ou seja, quem fosse pego em cima do muro seria empurrado de volta; quem conseguisse saltar e pôr os pés em solo americano teria a chance de permanecer no “paraíso”.
Certamente não dá para escancarar e receber os milhões de migrantes do quintal, mas essa lei do pé molhado, pé seco serve para mostrar ao mundo o quanto são bonzinhos os americanos, que precisam de cucarachos para lavar suas privadas, para movimentar o narcotráfico, mercenários para suas guerras sujas, contra-revolucionários, enfim, essa gente para eles é um mal necessário. (Antes que o pessoal do politicamente correto se manifeste, quero deixar claro que isso é o que imagino que os imperialistas pensam de nós, não estou usando termos e expressões que revelem a minha opinião sobre o povo latino-americano.)
Falam que os cubanos se aventuram mar adentro, enfrentado tubarões e a revolta das águas, morrendo a metade para que a outra metade se engaje na luta contra a “tirania” de Fidel e, de lambujem, desfrutem as delícias do capitalismo “libertador”, coisa que muita gente chega a confundir com Democracia. Porém, baseado na realidade que conheço do lado de cá, vivendo num país igualmente capitalista, posso garantir que, se a distância entre o Brasil e os EUA fosse a mesma entre Cuba e os EUA, cerca de 160 milhas, teríamos que instalar balcões da Alfândega em todas as praias brasileiras.
Também se propala aos quatro cantos do mundo o fato de que atletas cubanos teriam se refugiado em países capitalistas com o propósito de realmente desfrutar as benesses que lhes seriam de direito; pois, permanecendo em solo cubano, teriam se esforçado à toa, visto que se tornaram celebridades mundiais dos esportes e vivem “miseravelmente”, ganhando salários de US$40,00 mensais. Eu respondo: se os atletas cubanos não tivessem compromisso e consciência revolucionária, não seria apenas 0,2%, entre as centenas que vieram ao Pan do Brasil, que se renderia a uma proposta milionária de um agente alemão; eles desertariam em massa, como a Rede Globo inventou que estava para acontecer; ou seja, fariam como os atletas brasileiros, que hoje formam a Seleção Canarinho com quase 100% de jogadores que atuam no exterior.
Se a classificação dos países que participam de grandes eventos esportivos, como as Olimpíadas e os Jogos Pan-Americanos, fosse feita considerando-se o número de medalhas conquistadas por milhão de habitantes de cada país, aí, no caso do Pan 2007, realizado aqui no Brasil, Cuba teria sido classificada em primeiro lugar isoladíssmo, pois ganhou 11,25 medalhas por milhão de habitantes. O Canadá, 4,15; a Venezuela, 2,65; o Brasil conquistou 0,89 medalha por milhão de brasileiros, na frente dos norte-americanos, que ficaram na lanterna, com 0,79 por milhão de ianques.
Se eu morasse num país onde eu recebesse um salário de US$40,00 e, com esse ganho, pudesse prover a minha subsistência, pagando escola para os meus filhos, plano de saúde, lazer, alimentação, transporte, vivendo sob uma excelente sistema de segurança pública, pudesse comprar meus livros, meus discos, meus charutos e meu rum, e, ainda por cima, minha nação fosse soberana, sem se submeter aos ditames imperialistas, minha cultura fosse autêntica, eu viveria mui feliz! E nem me preocuparia se o meu salário equivaleria a tantos ou quantos dólares.
Se eu ganhasse US$3.000,00 por mês, mas morasse num bairro de classe média, em uma das melhores cidades dos EUA, certamente meu endereço seria: Embaixo do Próximo Viaduto.
Muitas vezes fui chamado de dinossauro, retrógrado, por defender o socialismo e protestar contra o embargo dos EUA a Cuba. Condenam até algumas palavras e expressões que às vezes uso. Entretanto, se só me fosse permitido usar palavras e expressões da moda ou de acordo com a cartilha colonialista, eu já não poderia falar: “socialismo”, “golpistas”, “comunismo”, “esquerda”, “imperialismo ianque”, entre outras consideradas ainda mais anacrônicas.
(Também não poderia construir frases usando a conjunção "se", em qualquer de suas acepções, principalmente a condicional.)
Se as populações pobres e miseráveis dos países capitalistas pudessem se hospedar nos melhores hotéis dos seus países, comer nos melhores restaurantes e beber nos melhores bares, eu diria que em Cuba há um apartheid social, pois lá existem hotéis, restaurantes e bares somente para turistas estrangeiros deixar seus mojitos-dólares, onde o pobre cubano não freqüenta.
Enquanto isso, daqui de onde estou escrevendo, avisto uma das maiores favelas do mundo. Lá vive cerca de meio milhão de pessoas. Raras são as que poderiam pagar, hoje à noite, um quartinho numa pensão fuleira no Centro do Rio, para uma noite de deliciosa luxúria "com uma nega chamada Teresa."
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Leia também, na revista digital NovaE, "O American way of life e a Casa Grande"
Presidenta Dilma concede entrevista coletiva em Havana
http://www.youtube.com/watch?v=3BrrniKRA00&feature=player_embedded
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terça-feira, 31 de janeiro de 2012
Pé em cima, pé embaixo e uma pensão fuleira com uma nega chamada Teresa
segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
Encontro de emigrantes em NY
Berna (Suiça) - Haverá um novo encontro - debate entre emigrantes brasileiros para a discussão de três temas – solução ou dissolução do CRBE (Conselho de Representates de Brasileiros no Exterior), a imprensa dos emigrantes junto à comunidade brasileira e a criação da Secretaria de Estado dos Emigrantes.
Os debatedores viajarão para Nova Iorque com seus próprios meios e o encontro terá lugar na Casa do Brasil, na 43 st. Número 4, com o patrocínio do Brazilian Times Newspapers, do conhecido Edilson Paiva. São debatedores, a titular do Conselho de Representantes das Comunidades no Exterior, Ester Sanches Naek; o presidente da chamada ABII, Zigomar Vuelma, e este colunista.
Embora acertado bem antes, o encontro-debate se tornou bastante oportuno porque coincide com um motim dentro do CRBE, comandado por alguns titulares e suplentes contra seu presidente.
Na verdade, essa nova crise tem feições de um remake de crise, quando, ignorando as regras democráticas, os titulares, « enrolados na farinha », como se disse, quiseram expulsar um suplente pelo delito de ter opinião diferente.
Na época, o presidente do Conselho agiu como o romano Brutus e votou pela expulsão do seu cabo eleitoral, o suplente articulador de sua eleição. Como dizia minha mãe, hoje uma sábia senhora de 91 anos, « o castigo vem a cavalo ». E veio. Agora querem expulsar o presidente.
Tenho lido os emails trocados e só posso mesmo lamentar.
Por uma razão simples, trata-se de uma luta fratricida e sem futuro, baseada num mal-entendido. O de que o CRBE constitui o concretizar das aspirações dos emigrantes.
Não, o CRBE, como o próprio nome indica, é apenas um Conselho, só isso. E, dada a diversidade de opiniões ocorrem brigas, disputas, xingamentos, está sob a tutela dos diplomatas, que há muito tempo aprenderam, no Instituto Rio Branco, como evitar esses atritos e cozinhar contendas no banho-maria ou na água morna, até amolecerem e se acalmarem.
Faz parte da própria razão de ser do CRBE não chegar a lugar nenhum. Por quê? Porque no documento de sua criação está bem claro e, poderia ser em letras maiúsculas para os míopes, que se trata de um órgão consultivo e de assessoria ou de interlocução como preferem alguns.
Ou seja, não de se trata de um órgão para decidir, mas para ser consultado, dar palpites e bater papo ou ficar na conversa mole. Tanto que agora virou bandeira dos amotinados colocar o CRBE no Skype. Cada membro tem três ou cinco minutos para dar seu recado. Se todos falassem seriam 16 vezes 3 igual a 48 minutos ou vezes 5 igual a 80, uma hora e meia, mais a introdução e os anúncios.
Como se acertou ser sem vídeo, cada um poderá ficar fazendo outra coisa até chegar sua hora de dar o recado.
Decidimos ficar do lado de fora desse motim, porque nem os amotinados e nem o chefe do conselho têm razão. Quando ajudamos a eleger o presidente, seu compromisso era o de nos ajudar, por sua vez, a chegarmos a um órgão institucional emigrante sem a tutela do Itamaraty, a uma Secretaria de Estado dos Emigrantes. O CRBE seria uma simples e curta etapa. Na sua meditação zen esqueceu o compromisso e quase ajudou a nos expulsar.
E os amotinados?
Seu líder fala em resgatar o CRBE em querer fazer funcionar o CRBE, vítima, ao que diz, da preguiça ou da falta de interesse do presidente.
E aí está o erro. Sendo apenas um etapa, não há nenhuma necessidade de se resgatar esse conselho. O importante, isso sim, é o de se proclamar a independência, sair da tutela do Itamaraty, encurtar a fase CRBE, para se chegar logo à Secretaria de Estado dos Emigrantes. Os amotinados estão perdendo um precioso tempo que poderia ser dedicado à reivindicação da Comissão de Transição para se criar a Secretaria de Estado. Exceto se a luta é apenas para se trocar de lugar. E nisso não entramos não.
Vejam bem, por melhor que seja, com revista, skype, suplente agindo como titular, titulares simplesmente ausentes, o Conselho vai ser sempre conselho tutelado, consultivo e de assessoria.
Para se fazer alguma coisa válida para os emigrantes, e não ser só coisa para vitrina, para inglês ver, é preciso haver um órgão sem tutela, próximo do governo, com independência e em nível de igualdade com ministérios e secretarias de Estado.
Devem existir também parlamentares emigrantes para agir no Parlamento, em Brasília. Eleitos, terão independência para propor leis em favor dos emigrantes.
E, em terceiro lugar, deve haver um grande Conselho de Emigrantes, reunindo todos os segmentos representativos da emigração, desde grupos religiosos, filantrópicos, associações de prestações de serviços, despachantes, advogados, doleiros, todos, enfim, para trabalhar em conjunto com a Secretaria de Estado e com os parlamentares emigrantes.
E como deve ser um Conselho ainda maior, provavelmente haverá ainda mais brigas, porém com um objetivo válido. Mas nesse novo conselho haverá ideologia, porque com o tempo as pessoas eleitas não serão a título pessoal mas em nome de uma política e de um conceito ou ideologia. O que atualmente não existe no CRBE.
Não apoiamos e nem atiçamos os amotinados, apenas lembramos que não é esse o caminho, que estão perdendo tempo e fazendo os emigrantes perderem tempo. Nossa luta deve ser a nossa independencia.
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*Rui Martins: jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura, é líder emigrante, ex-membro eleito no primeiro conselho de emigrantes junto ao Itamaraty. Criou os movimentos Brasileirinhos Apátridas e Estado dos Emigrantes, vive em Berna, na Suíça. Escreve para o Expresso, de Lisboa, Correio do Brasil e agência BrPress. É colunista do Direto da Redação. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.
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domingo, 29 de janeiro de 2012
AI DE TI, HAITI!
Se o mundo é um vale de lágrimas, o Haiti é, certamente, o cantinho mais irrigado desse vale (René Depestre).
Eles fizeram uma longa fila e foram embarcando, um a um, no navio chamado “Sagrado Coração de Jesus”, que zarpou de Tabatinga (AM) para Manaus neste sábado, 21 de janeiro. Os passageiros, na realidade, não sabiam direito de quem era aquele coração: de Jesus ou de Maria? Desconfiavam que era de Maria. Com todo o respeito ao calvário do filho, só um coração sangrado de mãe - onde sempre cabe mais um - pode abrigar mais de 400 haitianos com tantos sonhos, sofrimentos, dor, medo.
O medo dentro do barco-coração que descia o rio Solimões era “o medo da fatalidade que sempre acompanhou o Haiti”. Quem diz isso é um amigo chileno, Fred Spinoza, professor de espanhol em Tabatinga, que testemunhou a passagem dramática dos haitianos pelo Alto Solimões, ameaçados de se tornarem um boat people – refugiados que ninguém quer receber e que, sem chão onde pisar, transformam o barco em sua nova pátria e ficam, à deriva, vivendo na terceira margem do rio.
Fred, poeta como qualquer chileno - todo chileno verseja – me enviou trechos do Navio Negreiro de Castro Alves para ilustrar o cenário daqueles haitianos amontoados em redes armadas umas sobre as outras. No domingo passado, ele me cantou o roteiro do motor da linha: “O Sagrado Coração, que saiu ontem daqui, deve passar hoje por Fonte Boa, amanhã por Coari e chegar no Roadway, em Manaus, na terça, dia 24”. Manifestou preocupação quanto à recepção aos hermanos haitianos em Manaus.
Sangrado Coração
Manaus, nascida de um parto sangrento, é filha de um crime e de um roubo, cometidos em 1669 por militares portugueses. Tropas armadas invadiram e saquearam a aldeia dos Manaú, mataram muitos índios, escravizaram outros e usurparam suas terras. Seu comandante, Francisco da Mota Falcão, construiu ali, bem em cima do cemitério indígena, o Forte de São José do Rio Negro, usando a mão de obra de índios escravizados e, como matéria prima, o barro das urnas funerárias quebradas e violadas. Portanto, foi a pilhagem colonial que pariu Manaus.
Por isso, talvez, Manaus sabe ser impiedosa, cruel. Mas sabe também ser generosa, como mostra o outro lado de sua história. Muitas vítimas do terremoto de Lisboa, de 1755, foram acolhidas pela cidade já mestiça, que lhes deu teto, trabalho, comida. Na época da borracha, entre 1877 e 1914, mais de 500 mil nordestinos, fugindo da seca, migraram para a Amazônia, muitos deles armaram suas redes aqui. Com eles chegaram sírios, libaneses, espanhóis, judeus, árabes, palestinos, japoneses, espanhóis e nova leva pacífica de portugueses. Recentemente, a Zona Franca trouxe os sulistas.
Dessa forma, a cidade foi se construindo sobre os alicerces da diversidade, com trabalho, sangue e suor dos estrangeiros que souberam muito bem se integrar à sociedade de base índia. Era tudo gente de paz. Como o portuga José Ventura - o Comandante Ventura - que em 1961 morreu para nos salvar. Manaus não tinha como combater incêndios. Ele criou em 1952 o Corpo de Bombeiros Voluntários. Faleceu quando combatia um incêndio que consumia vorazmente a periferia da cidade, como nos lembra pesquisa histórica realizada por Roberto Mendonça.
Outro portuga que ama a cidade e ajudou a construí-la é o dono do bar da Bica, o Armando, o mais caboco de todos os portugas, que está nesse momento, aos 75 anos, numa UTI de um hospital manauara com uma infecção pulmonar. Armando e o comandante Ventura fizeram mais por Manaus do que o belicoso Francisco da Mota Falcão, Pedro Teixeira e todo o exército colonial. Jornais lusos editados nessa época no Amazonas, estudados pelo historiador Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, estão nos revelando muito sobre essa migração.
Água no feijão
Os haitianos que chegaram agora vieram também em missão de paz, de trabalho, mas foram recebidos à bala com um grito de “nós não queremos vocês aqui”. O governador do Amazonas, Omar Aziz (PSD), filho de um imigrante palestino que se mudou para Manaus em 1968, debochou, sugerindo que o governo federal os abrigasse em Brasília, “em apartamentos de deputados federais”, conforme matéria publicada pela Folha de São Paulo assinada pela correspondente Kátia Brasil.
Pra puxar o saco do governador, a colunista social Mazé Mourão atacou os haitianos, chamando-os de “abusados”. Num texto boçal, reclamou que eles estão tomando conta dos empregos nas fábricas do Distrito Industrial e “como não sabem falar a nossa língua, trabalham caladinhos e até passam da hora sem cobrar nada”. Preocupada exclusivamente com o quintal de sua casa, sugere: “Por que os haitianos não ficam em Tabatinga ou vão povoar outros municípios do Amazonas?”. Conclui: “Sorry, sorry e sorry, o Haiti definitivamente não é aqui”.
Que me perdoem os ouvidos pudibundos, mas esse é o lado escroto de Manaus, o lado “farinha pouca meu pirão primeiro”. A colunista social alega que “se nós não conseguimos resolver os nossos problemas, que dirá de quem chega e toma de assalto esta Manaus de Mil Contrastes”. É como se ela dissesse, em 1919, ao Comandante Ventura e às centenas de portugas que com ele vieram: “Não podemos receber vocês, porque temos muitos problemas, não temos sequer um Corpo de Bombeiros Municipais” ...E olha que nesse momento naufragava a economia da borracha, com centenas de mendigos espalhados pelas ruas da capital.
Felizmente, o outro lado, generoso e solidário, o lado “água no feijão que chegou mais um” se manifestou imediatamente. Dezenas de leitores ocuparam as redes sociais apoiando artigos que se solidarizaram com os haitianos e lhes deram as boas-vindas. Três deles merecem destaque.
Allan Gomes, com base no processo histórico da Amazônia, sustentou que “a imigração haitiana não deve ser vista como um problema, mas como parte da solução”. Da mesma forma que Manaus não podia apagar um incêndio porque carecia de bombeiros e foi salva pela migração lusa, assim também os haitianos podem contribuir para melhorar a cidade, se formos capazes de organizar e planejar a estadia deles aqui.
Alberto Jorge, coordenador geral da CARMA – Coordenação Amazônica da Religião de Matriz Africana e Ameríndia – confessa que teve ânsias de vomitar quando leu o texto de Mazé “que destila ódio e desprezo,é preconceituoso, asqueroso em todos os sentidos”. E Ismael Benigno considerou que a reação dela mais parece “um chilique da socialite Narcisa Tamborindeguy contra os pobres do que uma tentativa de entender o problema que ainda vamos ter”.
De qualquer forma, se o artigo tem algum mérito é o de desencadear um debate, permitindo revelar a xenofobia e a intolerância que trazemos dentro de todos nós, mas também a solidariedade com os refugiados. Quem sofreu o exílio, por razões políticas, econômicas ou sociais, sabe a importância dessa acolhida. É evidente que a questão é complexa, é claro que precisamos organizar uma intervenção de forma mais planejada, mas sem preconceitos, como o de um leitor de Mazé Mourão, que se referiu depreciativamente à religião dos haitianos e à magia negra.
Se a colunista social não pedir desculpas, publicamente, nós, os que ficamos chocados com seu texto - sorry, sorry, sorry - acamparemos com os haitianos no quintal da casa dela. Faremos um trabalho de magia negra para transformá-la em um ser inteligente, sensível e solidário. Se bem que suspeito não existir magia capaz de dar jeito nisso. Mas a gente tenta.
P.S. - O poeta haitiano René Depestre escreveu, entre outros, um belo livro – “Aleluia para uma Mulher-Jardim”, editado em português em 1988. Não tive acesso à edição brasileira, mas à edição francesa, de 1981, de onde traduzi a frase, diz: “Si le monde est une vallée de larmes, Haiti est le coin le mieux arrosé de la vallée” (pg. 40)
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José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (UERJ), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
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Mostrando o esplendor da América para meu amigo Carlinhos Klitzke
Urda Alice Klueger*
(Excertos do livro !Viagem ao Umbigo do Mundo, publicado em 2006.)
Naquela tarde, a soberba paisagens de montanhas continuava, e me aconteceu uma coisa estranhíssima. Eu tinha um amiguinho chamado Carlos Klitzke, menino de 25 anos, com quem eu passara cinco anos e meio estudando História. Estávamos a começar uma Especialização em História quando veio a má notícia: Carlinhos estava com um câncer perigosíssimo, super-agressivo. Deveria viver, no máximo, algumas semanas. O meu amiguinho, no entanto, tinha tal coragem, tamanha vontade de viver, que lutou com aquele câncer por quase três anos. Eu fora visitá-lo, antes da viagem, e ele mal teve forças para abrir os olhos e sorrir um pouco quando falei das coisas engraçadas que tinham acontecido durante o nosso Curso de História. Depois eu tinha viajado e quase não pensara mais nele – numa viagem, quase tudo muda todo o dia, e é difícil sobrar tempo para se pensar em coisas tristes. E naquele dia, nas montanhas do final do Norte do Chile, cerca de duas horas da tarde, hora do Chile (quatro da tarde no Brasil) de repente Carlinhos Klitzke como que estava ao meu lado, suspenso no nada, viajando por aquelas montanhas magníficas, e eu conversava com ele em pensamento, na maior naturalidade, como se ele estivesse ali mesmo. Deixo consignado aqui que não sou pessoa dada ao misticismo ou coisas correlatas, que tenho uma vida e um pensamento bem racionais – como explicar a presença de Carlinhos ali? Sei que lhe dizia:
- Vês? Não te dizia sempre que um dia iria te mostrar a grandiosidade da América? Vês? Aonde na Europa encontrarias tanta grandiosidade, tão soberba paisagem?
Era bem assim que falava com ele, na segunda pessoa do singular e levantando velho assunto que debatêramos naqueles anos todos que estudáramos juntos – quando se estuda História a gente sempre acaba se definindo por uma área ou região do Conhecimento naquela Ciência, e eu me definira desde o começo pela América dita Latina, enquanto Carlinhos tinha verdadeiro fascínio pela Europa, e muito havíamos discutido a respeito. Agora, ali naquela situação que eu não acreditaria possível, de novo estávamos a discutir como se Carlinhos ali estivesse, e então me feriu a alma uma certeza: Carlinhos se fora, e de alguma forma eu estava sentindo, sabendo tal coisa. Chorei amargamente ali na garupa do seu Chico, sempre cuidando para ficar bem escondida atrás dele, do capacete dele, para que ele não me visse pelos espelhos retrovisores e se preocupasse.
Na metade daquela tarde chegamos à fronteira com o Peru, em Arica, e enquanto esperávamos a longa verificação de documentos nossos e de todos aqueles veículos, eu conversei com as mulheres da nossa caravana, e também com o PHD Jaka, e lhes contei o que acontecia. Lembro como Terezinha, Cristina e Heloísa me entenderam e choraram comigo. Decerto Carlinhos partira mesmo, não havia outra explicação.
Naquela fronteira também seu Chico apareceu com grande foto emoldurada dos PHDs e os funcionários daquela alfândega numa viagem anterior, e foi uma festa. Aquilo me ajudou a esquecer um pouco o drama que estava vivendo, e acelerou bastante o nosso atendimento naquele movimentado posto de controle. Afinal, tive os documentos liberados e pisei terras peruanas... uau! Que bom! Eu gosto muito do Peru, e aquela já era a terceira vez que ia àquele país que falava tanto ao meu coração! Peguei o primeiro telefone público que havia, a dois passos da linha da fronteira, e liguei para a minha mãe.
-Mãe, chegamos ao Peru! – e ela ficou desejando um monte de boas viagens, e que a gente se divertisse muito, etc. Acabei lhe dizendo: -Mãe, acho que o Carlinhos se foi...
E ela me disse para não pensar naquilo, para aproveitar a viagem – bem assim como as mães são. Depois soube que ela já sabia há muitas horas da partida do Carlinhos.
Voltamos à estrada, e de novo o Carlinhos estava ali, como que pairando no nada ao meu lado, e eu continuei a lhe mostrar a beleza incomensurável desta América. O Deserto do Atacama estava nos seus estertores, e então, em algum momento, Carlinhos já não estava mais ali, e eu passei a prestar a maior atenção à nova paisagem, em como os peruanos estavam em frontal guerra contra o deserto, tentando por todos os modos fazer crescer fiapos verdes na terra ressequida, sonhando, quiçá, transformar aquela secura em futura floresta. Eles não pareciam estar obtendo grandes resultados, e os areais coloridos continuavam, mas às vezes, aqui e ali, alguma coisa havia medrado e crescido, e naquela tarde tive a surpresa de de repente, no meio de um pequeno, pequenino bosque que era do tamanho de uma pequena casa, bosque de pequenas árvores desconhecidas, ver nascido, crescido e agigantado o maior Tannenbaum que já vi na vida. Eu não sei o nome científico do Tannenbaum, mas explico que é um pinheiro que se usa no Natal na região do Vale do Itajaí, árvore trazida de fora pelos antigos imigrantes que formaram a região onde nasci e cresci. O Tannenbaum é bastante comum nos jardins dos descendentes de alemães do Vale do Itajaí (e de outras pessoas também), e às vezes atinge alturas respeitáveis, fica maior que as próprias casas cujo jardim habita e então costuma ser cortado para evitar que caia sobre a casa, mas nunca vira um Tannenbaum tão gigantesco. Quem teria trazido até aquele lugar uma semente de Tannenbaum, um dia, e como ela conseguira germinar, medrar e crescer dentro da secura do deserto? Era uma planta alienígena, planta de climas frios – quem diria que poderia crescer na aridez daquela areia colorida, e ficar tão grande, tão alto, tão robusto, pelo menos com o dobro do tamanho do maior Tannenbaum que eu já tivesse visto na vida? Fica a idéia para o governo peruano: plantar Tannenbauns nas beiradas do deserto do Atacama!
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De tardinha, chegamos à bela e grande cidade de Tacna. Ela está a 560 metros de altitude e a 63 quilômetros ao norte de Arica, onde fica a atual fronteira com o Chile. Apesar das poucas chuvas, ela tem os arredores férteis e um clima agradável. Se descontarmos a História Pré-colonial, ela primeiro pertenceu ao Peru, e depois, em 1880, foi tomada pelo Chile em encarniçado combate, sendo atualmente, de novo território peruano. Há dúvidas sobre uma “fundação” em 1615 – o que é certo é que em 1681 o povo de Arica para ali fugiu, para escapar de flibusteiros, e tocou o lugar para a frente. Sofreu diversos terremotos, sendo que em 1833 o terremoto foi tão grande que ela ficou em ruínas.[1]
Ficamos em confortável e luxuoso hotel próximo à Praça de Armas, que tinha lá no fundo uma magnífica catedral Quinhentista. Por ali já deveria chover, pois além de as casas terem telhados, já havia muita coisa de plantas e flores nas ruas e jardins. Lembro que aquele simpático hotel oferecia, tão logo a gente chegava, como cortesia, um vale para que depois a gente fosse ao bar do mesmo e tomasse um Pisco-Sauer, deliciosa bebida muito comum por aquela região. Meus companheiros foram tratar da parafernália de acomodar bem todas as motos e o carro de apoio, e eu fiz o de sempre: tomei banho e ganhei a rua, atrás da Internet. Na esquina seguinte já encontrei um “locutório”, e foi só abrir o meu correio eletrônico para entrar, como primeira mensagem, uma do meu amigo Viegas Fernandes da Costa, como eu, escritor e historiador, me dando conta que o Carlinhos partira mesmo.
Eu desabei. Chorei ali naquele locutório como não chorava fazia tempo, transpassada de dor, enquanto enviava algumas mensagens ao Brasil perguntando mais detalhes. Chorava tanto que o japonês que era dono do locutório ficou com pena de mim e me trouxe toalhas de papel para que eu secasse as lágrimas que teimavam em continuar.
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[1] ENCICLOPÉDIA UNIVERSAL ILUSTRADA EUROPEO AMERICANA ESPASA. Calpe S.ª Madrid-Barcelona, 1958. V. 58 p. 1469 e seguintes.
*Urda Alice Klueger: Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.
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sábado, 28 de janeiro de 2012
As razões do senador suicida
O senador assinou a carta de despedida, pegou o revólver na gaveta da escrivaninha, engatilhou e apontou a arma contra o próprio peito. Aguardou um instante. Lembrou-se da sua última posse, do discurso na tribuna, das promessas de que trabalharia em defesa do povo, da democracia, do seu Estado, do país... Entretanto, como pano de fundo de suas memórias, apareciam centenas de cadáveres humanos, pessoas mortas devido à falta de assistência médica, inanição ou cirrose hepática provocada pelo consumo de uma péssima aguardente de cana. Eram imagens de um pesadelo que já passará a atormentá-lo mesmo em estado de vigília. À medida que sua conta bancária crescia, a multidão de fantasma aumentava. O senador até já havia observado que a proporcionalidade estava se aproximando da razão de um por mil: a cada um milhão de reais depositados em sua conta, mil novos espectros somavam-se à fantasmagórica multidão que o obsidiava.
O telefone chamou. No sexto toque, resolveu atender:
- Alô!
- Excelência!
- Sim.
- Aqui é o Santiago.
- Santiago?!
- Santiago Arruda.
- Do Planalto Diário?
- Ele mesmo, excelência.
- Em que posso servi-lo?
- Gostaria de marcar uma entrevista com vossa excelência.
- Entrevista?
- Sim, excelência.
- Pra quando?
- Amanhã à tarde está bom para o senhor?
- Impossível.
- Então, na sexta pela manhã.
- Não vai dar.
- Nesse caso, o senhor mesmo pode marcar dia e hora mais adequados à sua agenda.
- Hoje.
- Hoje?!
- Agora.
- Agora?!
- Sim, agora! Já! Onde você está?
- Na redação.
- Então, não leva mais que quinze minutos pra chegar aqui - desligou.
O senador notou que, todo o tempo em que falou ao telefone, mantivera a arma apontando contra o peito. Guardou o revólver na gaveta. Resolveu reler a carta de despedida. Deteve-se num trecho:
"É comum que, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente ponha fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Alguma coisa parecia errada. Releu o período, mas continuou em dúvida. Deixou a folha sobre a mesa, foi até o computador, abriu o documento "carta de despedida" e continuou relendo o primeiro período. Trocou "É comum que" por "É natural que", em seguida por "É normal que". Nada, nenhuma das modificações pareceu alterar o sentido da frase. Experimentou "Via de regra". Achou que assim ficaria melhor. Antes de imprimir, corrigiu o verbo "pôr", agora flexionado no presente do indicativo: "põe". Imprimiu a página e voltou para a mesa de trabalho. Releu mais uma vez:
"Via de regra, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Ainda não estava convencido de que as modificações expressariam com maior clareza o motivo que o levaria a cometer o suicídio.
Bateram na porta.
- Entre!
Era a governanta conduzindo Santiago Arruda. Guardou a carta de despedida na gaveta, cumprimentou o jornalista e lhe indicou uma poltrona. Depois do cafezinho, Santiago iniciou a entrevista.
- Excelência, estamos fazendo uma matéria para o nosso caderno semanal de literatura, gostaríamos de saber o que os senadores leem. No momento, o que o senhor está lendo?
O senador teve uma ideia: aproveitaria a ocasião para esclarecer sua dúvida sobre a frase de abertura da carta de despedida. Mentiu:
- Estou lendo "As razões", um romance de Carlos Miguel...
- Não conheço.
- Nem poderia, trata-se de um autor desconhecido, lá de minha terra, um jovem escritor que me mandou sua primeira obra. Eu contribuí para a publicação.
- Posso ver? Se o senhor quiser, podemos divulgar no caderno literário do Planalto Diário.
- Não está aqui, está no meu gabinete, no Senado. Mas, já que estamos falando do romance "As razões", eu queria consultá-lo sobre uma passagem dessa obra.
- Se eu puder ajudar...
- Bom, é a respeito da carta de um suicida. Um banqueiro resolve suicidar-se e escreve uma carta de despedida.
- É comum os suicidas escreverem cartas de despedida. Mas o que há de errado na carta do banqueiro?
- Não sei se há alguma coisa errada. Mas eu me lembro bem da frase, anote aí.
- Pode ditar.
-"Via de regra, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Santiago anotou e leu a frase em voz alta. Concluiu:
- Aparentemente, não há nada errado. Um paradoxo, alguém se suicidar devido ao fracasso alheio, mas não seria nem tão contraditório se o fracassado fosse alguém de sua família ou mesmo do seu relacionamento afetivo.
- Nem do ponto de vista sintático?
- Deixe-me ver - Santiago releu todo o período. - Não, não estou identificando qualquer erro sintático.
- Tudo bem, esqueça, nem sei por que cismei com isso...
Ao final da entrevista, o senador acompanhou Santiago até a saída e prometeu lhe mandar o livro do seu afilhado escritor.
No carro, Santiago abriu o bloco de anotações e releu a frase:
"Via de regra, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Pensou: "...bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio". Não, não falta nenhuma vírgula. Pelo visto, o rapaz conhece bem os banqueiros.
Deu partida no carro. Nem escutou o tiro que estourou o coração do senador bem-sucedido... em razão do fracasso alheio.
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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
A presidenta Dilma e Paulinho da Viola
Recife (PE) - Um dia desses notei que a história política do Brasil poderia ser contada pela história da sua música popular. E como sempre acontece em qualquer descoberta, essa conclusão geral me chegou pela persistência de alguns casos individuais, que traziam em si um dom universal. Assim foi, por exemplo, em páginas de “Soledad no Recife”, quando a ressurreição dos malditos anos da ditadura se fez sob a canção dos tropicalistas. Assim foi quando escrevi sobre Geraldo Vandré, sobre Chico Buarque, sobre Roberto Carlos... Assim tem sido em textos mais ambiciosos, escritos sob a música íntima que me acompanha ao narrar o mundo submerso da infância. Que nos acompanha a todos quando recuperamos vidas, melhor dizendo.
Escrevo isso agora a partir de uma revelação do livro “A vida quer é coragem”, de Ricardo Batista, conforme artigo de Alberto Villas:
... a uruguaia Maria Cristina Uslendi conta que em outubro de 1971, toda vez que voltava das sessões de tortura encontrava Dilma de braços abertos “me amparando, me ajudando a usar a latrina quando não tinha forças, me dando sopinhas de colher na boca, me cedendo a parte de baixo do beliche e pondo na vitrolinha de pilhas as melhores músicas da MPB”. Cristina conta que Dilma sempre pedia a ela que prestasse muita atenção à letra de “Para um amor no Recife”, uma canção de Paulinho.
O quanto isso é verdadeiro. O quanto a música popular foi remédio, cura e perdição da maioria dos brasileiros que estiveram contra a ditadura. O quanto devemos a esses artistas da canção, numa dívida que eles próprios não alcançam o tamanho, mas que é, ao mesmo tempo, motivo de sufoco e prisão para eles, em razão do papel que ganharam à sua revelia. No entanto, importa mais aqui, para não me distanciar do objeto destas linhas, falar alguma coisa sobre o Paulinho da Viola daqueles anos.
Quando “Foi um rio que passou em minha vida” apareceu no Brasil, éramos estudantes numa sexta-feira à noite, numa serenata em Maria Farinha. Achávamos então que a revolução socialista seria a coisa mais natural do mundo. E por ser assim tão natural, nada demais também que ouvíssemos, não se espantem, 41 vezes, seguidas, contínua e incansavelmente foi um rio, foi um rio, foi um rio em uma vitrolinha de pilha. Naquele ano, e por que não ainda? , todos nós éramos Paulinho, nessa estranha empatia, mistura de identidades que a verdadeira arte produz. Todos nós repetíamos, e repetimos, e repetimos... que “meu coração tem mania de amor, e amor não é fácil de achar”. À maneira de cantar, gritávamos esses versos então.
Depois, morando na Pensão Princesa Isabel, no centro do Recife, Paulinho era “Simplesmente Maria”.
“Na cidade, é a vida cheia de surpresa, é a ida e a vinda, simplesmente, Maria, Maria, teu filho está sorrindo, faz dele a tua ida, teu consolo e teu destino, Maria...”.
Nesse tempo, sempre compreendíamos o “faz dele a tua ida” como um “faz dele a tua ira”. Enquanto subíamos a escada para um quartinho isolado no alto, da televisão da sala vinha a música, tema de uma novela. Ela nos lembrava sempre que estávamos sozinhos e sem mãe, cujo nome também era Maria. À hora dessa música sempre esperávamos algum golpe traiçoeiro da polícia que queria nos matar. Sem Maria que nos velasse.
Então houve Para um amor no Recife. Diziam então que Paulinho fizera essa música para a secretária de Dom Hélder Câmara.
As boas, e as más línguas principalmente, acrescentavam que a dedicada senhora vinha a ser a namorada secreta do arcebispo. Entre o sussurro e a maledicência, entre a repressão da ditadura Médici e a resistência serena erguia-se um poema belo, quase autônomo da melodia:
“A razão por que mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça, por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo passe, para beijar você ”.
Esta é uma canção que só fez melhorar ao longo de todos esses anos. A ditadura não existe mais, o seu motivo imediato não mais existe, mas a composição só vem crescendo, apesar da degradação do Recife, que entra quase incidentalmente no título.
Enfim, amigos, que estranho e magnífico poder tem a obra de arte. Quarenta e um anos depois, Paulinho da Viola, Dilma e os brasileiros voltamos a Para um amor no Recife:
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"Para um amor no Recife", Paulinho da Viola, 1971, Youtube.
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*Urariano Motta é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.
Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
Quem nasceu pra Alckmin nunca chegará a Brizola
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Depois de passar uma temporada de sete anos em Recife, retornei ao Rio de Janeiro em 1991. Aqui chegando me hospedei, com mulher e dois filhos, na casa de uma amiga nossa em Anchieta, num assentamento denominado Parque Esperança. O local já contava com parte da infraestrutura necessária à condição de habitabilidade: rede de eletricidade, fornecimento de água e ruas planejadas, mas ainda não asfaltadas. A maioria das casas ainda estava em construção, porém já habitadas. Na parte mais alta do terreno se localizava a sede da associação de moradores, sob a liderança de um rapaz chamado Paulo de Aquino, que, dias depois, eu soube que se tratava de um jovem líder comunitário experiente em invasão de terrenos para assentamento de sem-teto. O Estado do Rio vivia o segundo governo de Leonel Brizola.
Quando me apresentaram ao Paulo de Aquino, que todos tratavam por Paulinho, inicialmente não pude distinguir nele o perfil de um autêntico líder comunitário. Desconfiei até que se tratava de um aproveitador, um cara que talvez organizasse as invasões de terra a fim de se apropriar de alguns terrenos para vendê-los. Apesar de ele se revelar a mim como um indivíduo desconfiado de tudo e de todos, identifiquei aí um paradoxo: era extrovertido, extremamente falante. Então, incentivado pela minha amiga, Paulinho me convidou para participar dos trabalhos da associação de moradores a que ele presidia.
Arranjaram-me uma sala no prédio da associação, com a tarefa de redigir e editar um jornal comunitário. Eu contava com mesa, duas cadeiras, máquina de escrever, papel e um armário. Também uma jovem estudante da comunidade me auxiliava nos trabalhos. Produzimos o “Fala Povo”, um jornal de oito páginas que uma gráfica-editora da Baixada imprimia em tiragens de mil exemplares. Na segunda edição publicamos as cartas dos leitores, que se manifestaram com as mais variadas sugestões e elogios.
Certo dia, Paulinho entrou na minha sala-redação e me disse que queria falar comigo em particular. Pedi licença à minha auxiliar, ela saiu e ficamos a sós. Ele me confidenciou que estava preparando a invasão de mais um terreno. Informou que havia cadastrado cerca de cem famílias, pessoas que o procuravam na esperança de conseguir um lote para construir uma casa. Falou que não podia revelar a localização do terreno a ser invadido, pois isso poderia atrapalhar os planos, adiantando apenas a informação de que não era muito distante dali. “Tudo bem, mas em que posso ser útil?” Aí ele me deu uma aula de como as coisas aconteciam. Pela sua exposição, entendi que não era uma coisa tão simples como eu imaginava. Exigia organização e trabalho duro, pois ele não se limitava à mera invasão, criando um núcleo favelado com vielas que dificultassem a instalação da infraestrutura Nada disso. O que ele queria era produzir mais um loteamento planejado que atendesse às exigências básicas de habitação.
Àquela altura eu já conhecia razoavelmente bem o Paulo de Aquino, e a ligeira má impressão que tive dele quando o conheci já havia se dissipado. Compreendi que se tratava realmente um líder comunitário por vocação. Havia nele, sim, um interesse pessoal, mas legítimo: queria se eleger vereador ou deputado estadual. Era brizolista de carteirinha, falava de Brizola com empolgação e de Luís Carlos Prestes com veneração. Paulinho transitava com desenvoltura por entre políticos da Câmara de Vereadores e da Assembléia Legislativa. Além disso, tinha bom relacionamento com o pessoal do executivo estadual.
No dia e hora marcada as famílias convocadas para a invasão se reuniram em frente à associação de moradores, receberam instruções de como deveriam se comportar e só aí foram informadas sobre a localização do terreno a ser invadido. Era em Costa Barros, a cerca de três quilômetros dali, próximo a uma estação da linha auxiliar da Central do Brasil. (Dias depois me falaram que se tratava de uma das propriedades inventariada no rol da massa falida da Coroa-Brastel, sobre a qual incidiam muitos milhões em impostos não recolhidos. Mas eu nunca procurei me certificar da veracidade dessa informação.)
Madrugada adentro, o grupo, liderado por Paulinho a seus assessores, partiu para a invasão do terreno. Eu não estava presente, pois havia pernoitado na casa de uma prima minha em Jacarapaguá. Mas a minha mulher participou da empreitada.
No dia seguinte, fui direto ao local da invasão. Cheguei lá por volta das dez horas da manhã. Quando desci do ônibus, avistei aquilo que parecia um acampamento de refugiados de guerra. Muita gente já havia armado barracas, tendas e improvisado barracos de madeira, a fim de garantir seus espaços. Comecei a caminhar por entre a turba, observando tudo detalhadamente. Uma mulher conversava animadamente com outra e, ao me avistar, falou para a companheira: “Ih! Chegou o dono do terreno!” Continuei caminhando até encontrar minha mulher, que estava no centro de um lote demarcado por barbantes amarrados a tocos de madeira fincados no chão. “É aqui que vamos construir nossa casa”, disse ela.
Além do grupo original, já havia centenas de outras pessoas que aderiram ao movimento. Algumas me falaram que iam trabalhar e, ao avistarem a ocupação, desembarcaram do ônibus e se juntaram aos invasores, pois queriam garantir um lote.
Mais tarde encontrei Paulo de Aquino e perguntei: “E agora, como vamos fazer?! Tá uma bagunça dos diabos!” Ele me disse que no primeiro momento era assim mesmo, mas aos poucos tudo seria organizado. Três dias depois ele arranjou, com a Secretaria de Obras do Estado, uma caterpílar, que começou a abrir as ruas. Aqueles lotes demarcados aleatoriamente foram dando lugar a terrenos de 120 m² à margem das pistas abertas. Nesse reordenamento ocorreram algumas disputas, desentendimentos sobre o que é de quem. Mas tudo se resolvia. Em pouco tempo havíamos assentado cerca de 500 famílias. Outras chegaram atrasadas, solicitando um espaço para construírem suas casas. Foram cadastradas para uma possível próxima invasão.
Os ocupantes foram orientados a aguardar o momento em que seria dado sinal verde para que iniciassem as construções em alvenaria. Precisávamos ter a certeza de que não seríamos despejados. Essa garantia veio por parte de assessores do governo Brizola. Eles nos asseguraram que ninguém iria nos importunar. Aí, cada um se virou como podia. Logo, três novas casas de material de construção se instalaram nas imediações do loteamento e, pode crer, prosperaram rapidamente.
Em frente à ocupação foi deixado livre um terreno de uns 3.000 m², a pedido de Paulo de Aquino. Essa área havia sido preservada para a construção de um CIEP. Não demorou muito e apareceram por lá os tratores fazendo a terraplanagem, e as carretas desembarcando os pré-moldados. Em pouco tempo o Brizolão estava pronto. No final do ano recebemos a rede elétrica e em seguida a rede de saneamento básico.
Construí uma casa de dois quartos, sala, cozinha, banheiro, área de serviço, varanda, garagem, jardim e pequeno quintal. Plantei mangueira, coqueiro e um flamboyant, que em 1996, quando saí de lá, já estavam crescidos, dando sombra e frutos. Fui morar em Juiz de Fora, onde iniciei um pequeno empreendimento comercial que acabou não dando certo. Em 98 voltei para o Rio, prestei concurso e me tornei funcionário público estadual. Moro hoje em apartamento alugado aqui no Itanhangá. Quando eu ainda morava em Costa Barros, Paulo de Aquino se candidatou a deputado estadual, mas conquistou apenas a primeira suplência dos candidatos que se elegeram por seu partido. Tenho notícias de que hoje todas as ruas daquele assentamento estão asfaltadas. Soube também que muitos moradores fizeram puxadas e meiáguas para abrigar os filhos que cresceram e se casaram.
Mas, por que estou contando essa história? Porque li um artigo de Luis Nassif, tratando do massacre de Pinheirinho, intitulado “Nem por esperteza, Alckmin demonstrou sensibilidade”.
Vejamos alguns trechos do texto do Nassif:
“Curiosamente, foi Geraldo Alckmin o primeiro político de peso do PSDB a perceber a emergência de novos valores. Ainda na campanha, mostrou as vantagens de programas tipo ‘Minha Casa, Minha Vida’ sobre o modelo autárquico do CDHU. Entendeu a importância da colaboração federativa. Percebeu a relevância de reduzir o estado de guerra com o professorado, praticar o relacionamento civilizado com prefeitura e lideranças de bairro. Até ensaiou algumas ações administrativas colaborativas, juntando várias secretarias de governo e a prefeitura.
“De repente, surge a grande oportunidade: 6.000 pessoas morando em uma área de disputa jurídica. Não são aventureiros, não são invasores forçando a barra para conseguir imóveis para futura negociação. São famílias que se estabeleceram ao longo de anos, criando uma comunidade com velhos, crianças, mulheres, mães e pais de família, que levantaram suas casas em regime de mutirão, firmaram-se nos seus empregos, colocaram suas crianças nas escolas, criaram uma comunidade sem nenhuma ajuda do poder público.
Seria o momento máximo de inaugurar uma nova era. Um governador minimamente competente teria convocado a Secretaria de Assistência Social, o CDHU, a Secretaria da Justiça e da Defesa, a prefeitura de São José dos Campos, grandes empresas instaladas na região para um plano integrado destinado a encontrar uma solução para a comunidade de Pinheirinho.”
Bom, em campanha, para angariar simpatia e faturar votos, Alckmin até elogia os empreendimentos dos governos Lula-Dilma. Se ele decidir mais uma vez tentar chegar à Presidência da República, vai novamente prometer que, eleito, ampliaria os programas sociais dos governos petistas: Bolsa Família, Prouni, Minha Casa Minha Vida, entre outros. Tem cara-de-pau suficiente pra isso.
Mas a verdade é que quem nasceu pra Alckmin nunca chegará a Brizola.
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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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