As razões do senador suicida
por Fernando Soares Campos
O telefone chamou. No sexto toque, resolveu atender:
- Alô!
- Excelência!
- Sim.
- Aqui é o Santiago.
- Santiago?!
- Santiago Arruda.
- Do Planalto Diário?
- Ele mesmo, excelência.
- Em que posso servi-lo?
- Gostaria de marcar uma entrevista com vossa excelência.
- Entrevista?
- Sim, excelência.
- Pra quando?
- Amanhã à tarde está bom para o senhor?
- Impossível.
- Então, na sexta pela manhã.
- Não vai dar.
- Nesse caso, o senhor mesmo pode marcar dia e hora mais adequados à sua agenda.
- Hoje.
- Hoje?!
- Agora.
- Agora?!
- Sim, agora! Já! Onde você está?
- Na redação.
- Então, não leva mais que quinze minutos pra chegar aqui - desligou.
O senador notou que, todo o tempo em que falou ao telefone, mantivera a arma apontada contra o peito. Guardou o revólver na gaveta. Resolveu reler a carta de despedida. Deteve-se no primeiro parágrafo:
"É comum que, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente ponha fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Alguma coisa parecia errada. Releu o período, mas continuou em dúvida. Deixou a folha sobre a mesa, foi até o computador, abriu o documento "Carta de Despedida" e continuou relendo o primeiro parágrafo. Trocou "É comum que" por "É natural que", em seguida por "É normal que". Nada, nenhuma das modificações pareceu alterar o sentido da frase. Experimentou "Via de regra". Achou que assim ficaria melhor. Antes de imprimir, corrigiu o verbo "pôr", agora flexionado no presente do indicativo: "põe". Imprimiu a página e voltou para a mesa de trabalho. Releu mais uma vez:
"Via de regra, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Ainda não estava convencido de que as modificações expressariam com maior clareza o motivo que o levaria a cometer o suicídio.
Bateram à porta.
- Entre!
Era a governanta conduzindo Santiago Arruda. Guardou a carta de despedida na gaveta, cumprimentou o jornalista e lhe indicou uma poltrona. Depois do cafezinho, Santiago iniciou a entrevista.
- Excelência, estamos fazendo uma matéria para o nosso caderno semanal de literatura, gostaríamos de saber o que os senadores leem. No momento, o que o senhor está lendo?
O senador teve uma ideia: aproveitaria a ocasião para esclarecer sua dúvida sobre a frase de abertura da carta de despedida. Mentiu:
- Estou lendo "As razões", um romance de Carlos Miguel...
- Não conheço.
- Nem poderia, trata-se de um autor desconhecido, lá de minha terra, um jovem escritor que me mandou sua primeira obra. Eu contribuí para a sua publicação.
- Posso ver? Se o senhor quiser, podemos divulgar no caderno literário do Planalto Diário.
- Não está aqui, está no meu gabinete, no Senado. Mas, já que estamos falando do romance "As razões", eu queria consultá-lo sobre uma passagem dessa obra.
- Se eu puder ajudar...
- Bom, é a respeito da carta de um suicida. Um banqueiro resolve suicidar-se e escreve uma carta de despedida.
- É comum os suicidas escreverem cartas de despedida. Mas o que há de duvidoso na carta do banqueiro?
- Estou em dúvida, não sei se há alguma coisa propriamente errada. Mas eu me lembro bem da frase, anote aí.
- Pode ditar.
- "Via de regra, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Santiago anotou e leu a frase em voz alta. Concluiu:
- Aparentemente, não há nada errado. Um paradoxo, alguém se suicidar devido ao fracasso alheio, mas não seria nem tão contraditório se o fracassado fosse alguém de sua família ou mesmo do seu relacionamento afetivo.
- Nem do ponto de vista sintático?
- Deixe-me ver - Santiago releu todo o período. - Não, não estou identificando qualquer erro sintático.
- Tudo bem, esqueça, nem sei por que cismei com isso...
Ao final da entrevista, o senador acompanhou Santiago até a saída e prometeu lhe mandar o livro do seu afilhado escritor.
No carro, Santiago abriu o bloco de anotações e releu a frase:
"Via de regra, devido aos seus fracassados empreendimentos, muita gente põe fim à própria vida; no meu caso, porém, decidi encerrar a minha bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio".
Pensou: "...bem-sucedida existência em razão do fracasso alheio". Não, não falta nenhuma vírgula. Pelo visto, o rapaz conhece bem os banqueiros.
Deu partida no carro. Nem escutou o tiro que estourou o coração do senador bem-sucedido, em razão do fracasso alheio.
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