sábado, 26 de fevereiro de 2011

O BERLUSCONI DA FLORESTA: "ESSA COISA"

Eles são dois irmãos siameses, embora nascidos com três anos de diferença a quase dez mil quilômetros de distância. Olhando os dois, de perto, um ao lado do outro, podemos afirmar o que disse dona Rhea Silvia vendo seus dois filhos gêmeos Rômulo e Remo mamando na loba, antes da fundação de Roma: Facies Uni, Culus Alteri. O que significa, em bom português, na tradução simultânea feita pelo professor Agenorum: a cara de um é o fiofó do outro.

Um dos siameses nasceu às margens do rio Pó, em Milão (Itália), em 29 de setembro de 1936, é libriano. O outro, do signo de Escorpião, nasceu à beira do Juruá, em Eirunepé (AM), em 16 de novembro de 1939. Um, cujo hobby é o xadrez, não perde jogo do Milan, no Estádio San Siro. O outro, viciado em dominó, quando pode assiste as peladas do seu time – Tufão do Juruá - no Estádio Municipal João Conrado, conhecido como Dissicão. Um adora panetone. O outro não dispensa um xis-caboquinho, com pão francês, queixo coalho e tucumã descascado pelo Cabo Pereira.

Irmãos siameses

As diferenças, no entanto, param aqui. Se um se olhar no espelho, vê a imagem do outro. Os dois se formaram em direito, são advogados, mas jamais exerceram a profissão. O negócio de cada um deles começou com a construção civil. Ambos mamaram na loba, enriquecendo como empreiteiros. Silvio Berlusconi, aos 23 anos, fundou sua construtora, a Cantieri Riuniti Milanese, edificou dois grandes conjuntos residenciais na zona leste de Milão, passou a perna no seu sócio e embolsou o lucro.

Amazonino Mendes criou a construtora Arca e, aos 33 anos, quando seu empregado analfabeto, o pedreiro Antonio Alves do Carmo, tirou a sorte grande na Loteria Esportiva, convenceu-o a se tornar seu sócio, construindo o conjunto Ayapuá, na zona oeste de Manaus. Uma mudança contratual deixou o pedreiro na pindaíba, sem dinheiro sequer para comprar um caixão de terceira classe, adquirido numa “vaquinha” feita pelos amigos, quando morreu de câncer em 25 de março de 2009.

O italiano foi identificado pela revista Forbes como o homem mais rico da Itália, uma fortuna calculada em 9,4 bilhões de euros. Construiu para si, na Costa Esmeralda, Sardenha, uma mansão suntuosa denominada Villa Certosa, onde promove “festas dignas das Mil e Uma Noites”, nas quais as meninas convidadas recebem tratamento de “princesa”, segundo a revista L’Espresso. O palacete tem jardim botânico, lagos cheios de tartarugas, uma gruta natural em forma de baleia e um vulcão artificial que entra em erupção derramando cascatas de luz sobre uma lagoa.

O amazonense foi identificado pela revista Veja, em 1997, como um homem podre de rico, com uma fortuna estimada na época em 200 milhões de reais, quantia superior às riquezas somadas de todos os cabocos de Eirunepé. Dono de um jatinho learjet e de dois iates, ele construiu para si, às margens do igarapé Tarumã, mansão espetacular de quatro andares, torre com elevador panorâmico, salões de jogos e de festas, heliporto, quatro piscinas climatizadas, dois lagos artificiais, cascatas, jardins, quadra de esporte e pista de Cooper.

O gêmeo de Milão é filho político de Betino Craxi, o premiê italiano processado por corrupção na ‘Operação Mãos Limpas’. Depois de ter sido derrotado duas vezes, uma nas eleições regionais em 2005 e outra nas eleições gerais de 2006 por Romano Prodi, Berlusconi foi eleito, em 2008, pela terceira vez, primeiro ministro da Itália, aos 71 anos de idade, pelo PDL (sporco, sporco!).

Seu irmão gêmeo de Eirunepé foi afilhado político do governador Gilberto Mestrinho, cassado em 1964, acusado de corrupção. Depois de ser derrotado duas vezes, uma por Serafim Correa nas eleições para prefeito de Manaus, em 2004, e outra para governador, em 2006, Amazonino assumiu, pela terceira vez, o cargo de prefeito de Manaus, em 2009, aos 70 anos de idade, eleito pelo PTB (vixe, vixe!).

Os dois conseguiram se reeleger prometendo aos eleitores mundos e fundos. Berlusconi acenou com “um milhão de liras ao mês para todos”, enganando os aposentados, que acreditaram nele, além de um milhão de empregos para os italianos sem trabalho.

Amazonino jurou que criaria mil creches, instalaria carretas para distribuição de internet gratuita à população carente da Zona Leste e governaria dentro de um ônibus que ficaria zanzando na periferia de Manaus. Os eleitores “babacones” caíram no conto eleitoral dos dois. É muita coincidência.

La facha brutta

Mas você está equivocado se pensa que as semelhanças entre os irmãos siameses terminam aqui. Berlusconi foi processado por associação mafiosa, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, participação em homicídio, corrupção, abuso de poder e incitação à prostituição de menores. Foi condenado duas vezes: a primeira por financiamento ilegal de partidos e a segunda por suborno de inspetores fiscais. Nos dois casos, recorreu e conseguiu ser absolvido. Em quatro casos, os crimes prescreveram.

Seu irmão gêmeo da floresta foi acusado de ser o principal articulador da compra de votos para a emenda da reeleição de FHC, com pagamento de 200 mil reais em troca do voto de cada deputado federal. Sua candidatura à prefeitura foi criticada pela OAB e pelo Ministério Público, já que ele respondia a processos de crimes da lei de licitações, crimes contra o sistema financeiro e contra a ordem tributária. Foi cassado pela juíza Maria Eunice Nascimento e recorreu ao TRE que concedeu uma liminar para sua posse.

Os dois se declaram injustiçados e caluniados por adversários invejosos. Berlusconi usa sua verborreia contra as instituições do Estado, desrespeitando a magistratura. Amazonino, em campanha eleitoral, afirmou em entrevista à Rádio Nova Olinda: “Compra-se a consciência de políticos, compra-se juiz, desembargador, compra-se tribunais de um modo geral: tribunal de contas, ministério público”. Esse é o respeito que ele tem pelo Judiciário.

Berlusconi, que tem feito declarações contra os imigrantes da Tunísia, da Argélia e dos países árabes, deve comparecer a julgamento por fraude fiscal, nessa segunda-feira, 28 de fevereiro, num processo que estava paralisado. Já o início do julgamento por prostituição de menores e extorsão está previsto para 8 de abril.

Quanto a Amazonino Mendes, o vereador Joaquim Lucena (PSB) protocolou nesta sexta-feira um pedido de impeachment, porque o prefeito de Manaus agrediu uma moradora de área de risco onde morreram uma mulher e duas crianças soterradas por um barranco. Em conversa com o prefeito, ela argumentou não ser uma escolha sua residir ali. “Minha filha, então morra, morra, morra” – disse-lhe Amazonino, com raiva, matando-a três vezes seguidas. Aí, informado de que a moradora era paraense, afirmou: “Então está explicado”. Essa deixou o próprio Berlusconi no chinelo.

Segundo Lucena, o prefeito de Manaus ofendeu não apenas os paraenses – os árabes do Berlusconi da floresta, mas toda a população, agindo de forma incompatível com a dignidade e o decoro do cargo, conforme fica evidenciado em vídeo divulgado no You tube (http://www.youtube.com/watch?v=z3oTFiic5VU).

Silvio Berlusconi e Amazonino Mendes: o mesmo combate. Na Itália, as mulheres saem às ruas para protestar. E em Manaus? O escritor Saramago chamava Berlusconi de “Essa Coisa”. Já que Amazonino compartilha com Berlusconi a elegância, a fineza no trato, a sensibilidade e a mesma “facha brutta”, podemos emprestar a imagem de Saramago e dizer que Amazonino é “Essa Coisa” da floresta?
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José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (Uerj), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti

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sábado, 12 de fevereiro de 2011

CONFISSÃO NA ERA DIGITAL



Todos nós, agora, podemos ser perdoados, inclusive os senadores do PMDB (vixe, vixe). Estão absolvidos José Sarney - com um maranhão de pecados mortais, e Eduardo Braga - com um solimões de peso superfaturado na consciência. Até o prefeito de Manaus Amazonino Mendes (PTB vixe-vixe), que se confessou pela última vez em 1947, vai ser absolvido da pororoca de pecados cabeludos cometidos de lá pra cá, sem necessidade de encarar no confessionário o mau hálito do vigário de Eirunepé. Basta clicar na tecla enter.

Esse clique mágico, depois de um ato de contrição digital, é suficiente para que qualquer pecado, venial ou mortal, municipal ou federal, seja perdoado, mesmo os da presidente Dilma e do ex-governador José Serra, que na campanha eleitoral demonstraram fervorosa devoção a Nossa Senhora Aparecida e uma fé inabalável nos dogmas da igreja. Basta, para tanto, comprar por dois dólares o novo aplicativo da Apple para iPhone, iPad e iPod Touch.

Já pedi a Maria Luiza da Matta – minha assessora para assuntos digitais - que me oriente no uso do aplicativo Confession. Aproveitei para confessar três pecados cabeludos que estavam engasgados – aqui oh! – e atormentavam minha consciência. O primeiro deles: nunca terminei a leitura sequer do primeiro tomo de O Capital. O segundo: não li Derrida, Lacan e Deleuze. O terceiro: citei-os aqui e ali, dando a entender que conheço suas respectivas obras. Felizmente a descolada Malu descobriu um atalho para diminuir o tamanho da penitência. Que o velho Marx me perdoe!

Perdão digital

O velho Marx e o aplicativo da Apple que substitui a cabine do confessionário! Como foi possível inventar o perdão digital? Tudo começou em maio de 2010, no Dia Mundial da Comunicação, quando o Papa Bento XVI deu uma de moderninho e recomendou aos fiéis o uso das novas tecnologias, em sua mensagem “O sacerdote e a pastoral no mundo digital: os novos media ao serviço da Palavra”.

A Apple, empresa multinacional que atua no ramo da informática, entendeu a mensagem como um sinal verde e investiu na fabricação de um novo aplicativo - o "Confession: a Roman Catholic App" - que torna obsoleto o confessionário. A geringonça, aprovada oficialmente por um bispo nos Estados Unidos, foi criada com a consultoria de dois padres especialistas no tema e com a legitimidade de quem já produziu o macintosh.

O aplicativo começa com um exame de consciência personalizado para cada usuário e traz uma lista de possíveis pecados. Seu uso no Brasil é problemático, porque o programador não suspeitou que pudessem existir faltas tão cabeludas e inusitadas – das quais até o diabo duvida - como as cometidas por Sarney, Eduardo Braga e Amazonino. Por isso, tais faltas não constam explicitamente na lista, obrigando os pecadores a entrarem na janela com a denominação genérica de “pecados que bradam aos céus e pedem a Deus vingança”.

O aplicativo apresenta todos os passos do processo: exame de consciência, arrependimento, firme propósito de emenda, confissão, absolvição e até a penitência. O pecador internauta também pode contar os seus pecados, digitando-os um a um, usando uma senha protetora para evitar a quebra do segredo inviolável da confissão. Esse é o problema.

Na última quarta-feira, os jornais noticiaram que o aplicativojá está à venda na loja virtual da Apple. A notícia causou um rebucetê no mundo religioso e, no dia seguinte, um porta-voz do Vaticano, o padre Frederico Lombardi, divulgou comunicado esclarecendo que o programa de smartphone não foi criado para substituir confissões presenciais, mas para ajudar católicos no exame de consciência, que o sacramento continua exigindo a presença do padre e que o segredo da confissão é inviolável.

Idêntica reação teve o Vaticano no século XVI, com as inovações criadas no Brasil pelos jesuítas na confissão dos índios e, no século XX, nos Estados Unidos, com a missa drive-in, celebrada pela primeira vez, em 1953, na praia Daytona, na Flórida. Foi um escândalo. Mas depois as coisas se acomodaram. Hoje milhares de fiéis assistem missa dominical, instalados dentro de seus carros, sintonizando o rádio do veículo para ouvir o padre. Na hora da comunhão, os celebrantes levam a hóstia consagrada de carro em carro. A confissão no iPhone certamente também vai ser liberada. O problema é o segredo inviolável do sacramento.

Wikileaks manauara

Malu, minha assessora, adverte que qualquer hacker vagabundo ou ciberpirata pode invadir um computador, se apropriar da senha e revelar os podres do pecador-internauta, como fez meu primo Caio com sua própria mãe, a tia Ernestina, usando para isso o telefone. Ele imitava a forma de falar do vigário da Paróquia de Aparecida, um redentorista americano - o padre Tomé - que parecia até o Mangabeira Unger falando português. Um dia, o ‘canalha’ telefonou pra sua mãe:

- Óh, dona Arnastina, aqui é padre Thóme, da Piroca de Aprrrecida.

A imitação foi tão perfeita, mas tão perfeita, que a titia sentiu até o bafo de alho que o Thomé tinha no confessionário. Ela caiu como um patinho. Contou ao telefone seus pecados, que felizmente não bradavam aos céus. Titia se livrou, porque anos depois Thomé largou a batina pra se casar, levando com ele para a vida laica todos os pecados do bairro e deixando os paroquianos em pânico. Felizmente, sua esposa, dona Edna, era mulher virtuosa e nunca revelou os podres de ninguém, o que seria um verdadeiro wikileaks manauara.

Violar o segredo da confissão já criou a maior celeuma no século XVI, quando os primeiros jesuítas, que desconheciam a língua dos índios, começaram a usar um intérprete nas confissões realizadas em aldeias do Rio de Janeiro e da Bahia. Os intérpretes eram, em geral, “meninos da terra”, ou seja, filhos de índias com portugueses, que dominavam as línguas tanto do pai quanto da mãe.

- Tive grande consolação – diz o padre Fernão Cardim – em confessar muitos índios e índias por intérprete: são candidíssimos e vivem com muito menos pecados que os portugueses. Dava-lhes uma penitência leve, porque não são capazes de mais, e depois da absolvição lhes dizia, na língua ‘xe rair tupã toco de hirumano’, que quer dizer ‘Vai com Deus, meu filho’.

O padre Serafim Leite, em sua obra magistral – História da Companhia de Jesus no Brasil (essa eu juro que li de cabo a rabo, quero ver a Aurelinha mortinha no inferno se estou mentindo) – comenta que usar um intermediário para contar os pecados criava o perigo das inconfidências e até do escândalo. Por isso, o bispo D. Pedro Sardinha proibiu o uso de intérpretes no confessionário, “mui perigoso, pernicioso e prejudicial à majestade deste santo sacramento”.

Os jesuítas recorreram ao Vaticano, que lhes deu razão e derrubou a proibição do bispo Sardinha, que seria depois jantado pelos índios. A prática dos jesuítas foi legalizada e sancionada pela igreja, sendo legitimada pelo Direito Canônico, no Canon 903, tanto para a confissão de mulheres na igreja, como para a confissão dos homens na portaria dos Colégios – que eram os dois lugares onde o intérprete atuava.
Do ponto de vista do direito canônico, a penitência é a reconciliação com Cristo, a oportunidade que o católico tem de reconhecer as suas faltas e de se arrepender de seus pecados. Mas no Brasil colonial, quando se tratava de índios, nem sempre a penitência era leve como generalizou o padre Cardim.

Às vezes – narra o padre João Daniel, outro jesuíta que viveu na Amazônia – a porrada comia solta e a penitência podia ser dada ANTES mesmo do pecado ser cometido. Foi o caso de um índio no Pará, que transgrediu o primeiro mandamento da Igreja: “ouvir a missa inteira aos domingos e festas de guarda”. Na hora da missa, ele foi pescar, quando voltou foi açoitado publicamente. Pediu, então, ao confessor: “padre, já que estou ferido, pode me açoitar mais, por conta do próximo pecado, porque domingo que vem vou pescar outra vez. Assim, já fico perdoado antecipadamente”.

Para quem era castigado dessa forma, que importância tinha violar o segredo da confissão? Afinal, eram apenas pecados de índios e não sigilo bancário dos Sarney da época.
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José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (Uerj), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti

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domingo, 6 de fevereiro de 2011

LÁ SE FOI NOSSO JARDIM

Lá se foi nosso Jardim, levando pra outra galáxia um pouco da poesia e do sonho que nos acalentou. Poeta e jornalista, 84 anos, Reynaldo Jardim decolou na madrugada da terça-feira do Hospital do Coração, em Brasília. No dia anterior, pediu à sua mulher Elaina Daher:

- “Não quero choro nem vela, só samba”.

No velório, no Teatro Nacional, parentes e amigos se despediram, tristes, mas cantando. Houve só “choro de flauta, violão e cavaquinho”. Se dependesse do Reynaldo, a mulata da fita amarela, do samba de Noel Rosa, sapatearia sobre seu caixão, desmoralizando a morte. É a cara dele.

A notícia circulou nos principais jornais do país. O Globo, com chamadinha discreta, remeteu o leitor para o Obituário. A Folha de S. Paulo, estranhamente, deu no Caderno Poder, além da homenagem de Jânio de Freitas em sua coluna. O Estadão, sisudo e pedante, informou que “Silveira escreveu livros de poesia”, que “Silveira criou o Caderno B do Jornal do Brasil”. O “jornalismo investigativo” descobriu que o poeta carregava, além de flores, um sobrenome que nunca usou.

Esperamos as colunas dos amigos de Reynaldo, Zuenir Ventura e Ruy Castro, no sábado, mas eles abordaram outros temas. Zuenir escreveu sobre seu cálculo renal, e Ruy Castro sobre a morte da atriz Maria Schneider do filme “O último tango em Paris”.

Os critérios usados pela mídia para hierarquizar a notícia não são os mesmos que cada um usa quando faz seu próprio jornal, íntimo e pessoal. Quem conviveu com Reynaldo Jardim, mesmo por pouco tempo, abriu dentro do peito uma foto dele sorridente com manchete em oito colunas, anunciando sua partida em letras garrafais. Ela nos afetou mais que o “sacrifício” do Sarney, a vitória do Flamengo, o apagão no Nordeste, a morte de Maria Schneider ou a crise do Egito. E não apenas por razões afetivas, mas pelo lugar dele na poesia, no jornalismo e na cultura brasileira.

Rey, o jornalista

Jardim, o multimídia, tocou vários instrumentos: jornal, revista, rádio e TV. Liderou a reforma gráfica do Jornal do Brasil e ali criou o Caderno B e o Suplemento Dominical que se tornou um ninho de poetas e escritores e um modelo para outros jornais. Bolou o sistema “música e informação” da Rádio JB, atuou em outras rádios e marcou toda a radiofonia brasileira, como destaca Jânio de Freitas. Dirigiu o telejornalismo da TV Globo, recém-inaugurada, obtendo o primeiro lugar na audiência ao colocar câmeras no telhado e no terraço da emissora para transmitir as cenas da enchente de 1966.

Ele dirigiu Senhor e Panorama, foi redator das revistas O Cruzeiro, Manchete e Bundas e fez romaria por todo Brasil, do Oiapoque ao Chuí, revolucionando a roupagem de velhos jornalões. Reformou três jornais no Paraná, dois em Brasília, o Diário da Manhã, de Goiás, O Liberal no Pará e tantos outros.

Por onde passava, deixava as redações contaminadas com sua alegria e seu jeito de tratar a notícia. Foi assim n'A Crítica, de Manaus, onde tomou banho de igarapé, pescou, namorou, modernizou a linguagem e a diagramação, fez poesia e amigos, arejou pessoas e deixou saudades. Umberto Calderaro, responsável por sua contratação, nunca esqueceu a revolução em seu jornal, conforme me confidenciou várias vezes, depois que soube das aventuras que compartilhei - que privilégio! - com Reynaldo Jardim.

A primeira delas foi no jornal-escola O Sol, um diário do Rio de Janeiro, que começou, em 1967, como suplemento do Jornal dos Sports, um projeto gráfico inovador elaborado por Reynaldo e Ana Arruda Callado. Revoltou-se contra a embalagem da notícia, sempre a mesma fórmula em todos os jornais: lead, sub-lead... Ele nos fez redescobrir o prazer do texto, da ousadia, da inovação.

Lá, n’O SOL, um dia, quando a redação, dividida, discutia acaloradamente sobre a melhor manchete, sem chegar a um acordo, Reynaldo chamou o porteiro que decidiu o que era melhor para o leitor. Essa é uma lição de jornalismo que poucos cursos são capazes de dar. Depois disso, me parece evidente que o porteiro, como leitor, é que deve ser o árbitro.

Quando O SOL entrou em ocaso, dezembro de 1967, Reynaldo, Ana Callado e seus 50 repórteres criaram uma cooperativa jornalística que editou durante alguns meses o semanário Poder Jovem, vendido nas ruas por nós mesmos. Um dia, fui flagrado por meu primo Sebastião Mendonça, na Praça Mauá: - Você é jornalista ou jornaleiro? – me perguntou ele, surpreso. É que, com Reynaldo, os limites dessas coisas ficavam difusos, a gente fazia tudo e qualquer coisa, até televisão, se fosse preciso.

Foi preciso. A TV Continental, com Fernando Barbosa Lima, convidou Reynaldo, em 1968, para o Jornal de Vanguarda e ele levou pra lá a minha juventude e inexperiência. Era a época das grandes passeatas estudantis. Saí para cobrir uma delas. O centro do Rio era uma praça de guerra com a adesão dos offices boys que jogavam pedras na polícia. Do alto de um edifício na Rua México, alguém atirou uma máquina de escrever que caiu sobre o ombro de um policial, obrigando-o a soltar um manifestante preso. Podia ter acertado o jovem, que teve sorte e se escafedeu.

- Deus é estudante – eu disse, depois de relatar o fato. Reynaldo ouviu atentamente. No Jornal de Vanguarda, ele fazia um poema por dia, comentando em versos o acontecimento mais importante. Nessa noite, cada estrofe do poema que ele escreveu terminava com o verso: “Como disse Riba, Deus é estudante”. Reynaldo Jardim, o Pitangui dos jornais, foi uma usina de versos.

O poeta

Quando O Sol estava nas bancas de revista, Reynaldo assistiu a um show da Maria Bethânia, entrou em transe e escreveu de uma só golfada Maria Bethânia, Guerreira, Guerrilha, onde nos contava que “o fogo do sonho / não é fogo de palha / tem o corte seco / da seca navalha / no capim mimoso / o fogo se espalha”. Foram dez livros de poesia, o último Sangradas Escrituras, com todos seus poemas em mais de 800 páginas, foi lançado há um ano. Vale a pena uma pequena amostra.

No poema Pórtico dos Fundos, ele define sua relação com a poesia, com a arte e com a vida: “Afinal de contas / nem gosto tanto assim de poesia. / Gosto mais de música. Só música / sem palavras nem aplausos. / De pintura. Só pintura / Sem teoria ou mensagem / De cinema. Só cinema/ sem mesa redonda / nem voto popular./ E da vida / sem título / sem vínculo /sem legendas”.

“Se eu quiser falar com Deus – canta Reynaldo em Sangradas Escrituras – tenho que abaixar a crista, tenho que seguir à risca o que o Gil nos ensinou. Tenho que aguardar na lista minha vez, minha audiência, uma vaca de paciência, ruminando meus pecados. Quando chegar minha vez, tenho que soltar o grito. Pois daqui ao infinito, Deus não vai me escutar. Ele está ficando surdo, já não enxerga direito. Contragosto e contrafeito com o mundo que criou. Antes de falar com Deus, eu arrumo um pistolão. Pode ser Antônio ou João, qualquer santo de prestígio. Tenho que levar presentes, minha alma, meu delírio, a luz acesa de um círio, que ele está na escuridão”.

Desafiante, quase insolente, o poeta prossegue: “Se eu quiser, mas eu não quero, que esse Deus é prepotente. Ele é onipresente, só não está onde estou. Se quiser falar comigo, não atendo o celular. Não deixo a mesa do bar, que esse chope está demais. Eu só vou falar com Deus, quando ele matar a fome dessa criança sem nome, que não para de chorar. Quando ele descer do céu e vir que cada menino, sem presente, sem destino, precisa de um beijo seu”.

Foi Reynaldo Jardim que me encaminhou para trabalhar em O PAIZ, ressuscitado em 1968 pelas mãos de Joel Silveira, Newton Rodrigues e Félix de Athayde. Foi ele também que no ano seguinte me levou como repórter especial para o CORREIO DA MANHÃ, cujo chefe de redação era Franklin de Oliveira. Depois de oito anos de exílio, só voltei a vê-lo, em 2006, no lançamento do documentário Caminhando contra o vento, de Tetê Moraes e Marta Alencar, que conta a trajetória do jornal O SOL. Foi ai que ele me perguntou:
- O que você acha de fazermos O SOL outra vez?

O entusiasmo de Jardim é contagiante. Topei na hora, mesmo sabendo que era brincadeira. Mas com Jardim, o legal é que tudo é brincadeira, incluindo as coisas mais sérias. Estimulado pelo fogo do seu sonho, que no capim mimoso se espalha, a gente faz qualquer coisa. Serei até jornaleiro, outra vez. Agora, que ele partiu, na contramão lhe digo: Não descansa em paz, meu amigo. O descanso é para os mortais. A tua poesia continua agitando e incendiando o mundo.
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José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (Uerj), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti

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