.
A lanterna mágica
Urda Alice Klueger(*)
Era uma noite fria de 2004, um pouco antes de chegar o frio
brabo, no planalto catarinense, lugar onde até neve cai, e era uma noite de
grandes acontecimentos, onde 500 famílias ocupavam e tomavam posse da terra do
maior latifúndio deste meu estado, que um dia fora uma fazenda dedicada ao
reflorestamento, mas que agora, em tempos de neoliberalismo, não passava de
terra arrasada. O lugar ficara tão abandonado depois que seus indefinidos
proprietários internacionais o esqueceram, que a pequena cidade de São Cristóvão
do Sul praticamente falira: as pessoas tinham ido embora, a escola tinha
fechado, A IGREJA TINHA FECHADO, e era a primeira vez na minha vida que eu
ouvia que uma igreja fechara, daí o meu espanto! Daí, também, a grande
receptividade no escuro da madrugada , com as autoridades regionais de braços
abertos, esperando aquela ocupação que vinha trazer gente para salvar aquele
lugar do mundo que até o Capital esquecera – e eu tinha o privilégio de estar
lá, apoiando aquela gente, e penso que nem em toda a vida irei lembrar do tanto
que há para contar sobre aquela noite!
Pelas três, quatro da madrugada, deu-se a grande ocupação –
era inverno, amanhecia tarde, faltava muito, ainda, para o dia chegar, e aquela
gente que tinha como rumo único a solidariedade e o sonho de uma terra para
plantar, acostumada que era a viver sem coisas como luz elétrica tratava de se
organizar, e por todos os lados surgiam lanternas que começaram a iluminar o
imenso campo devastado. Como os demais, eu vagava por ali, esperando a chegada
do dia e vendo os vultos escuros. As lanternas que estavam com as pessoas
tinham os mais diversos modelos e formatos: iam desde as mais sofisticadas,
aquelas que se usam em luxuosas barracas de grandes famílias, no verão dos
campings, alimentadas não-sei-a-que, até... bem, até aquela como nunca vira na
minha vida, a não ser parecidas, existentes em desenhos ilustrativos de
histórias infantis que se passavam antigamente em países cheios de neve. É
melhor explicar logo: alguém pegara uma lata dessas de conserva de pepinos ou
de pêssegos, cortara um quadradinho na parede da lata, fizera uma alça de
arame, e lá dentro da lata acendera uma vela. Era um homem que a segurava – as
paredes de lata impediam que a vela fosse apagada pelo vento, e aquele pequeno quadrado
era uma janelinha de luz que liberava sua luminosidade quase que em forma de
cone, ampliando-a – e o dono da lanterna sabia manejá-la muito bem,
direcionando a luz para onde bem lhe aprouvesse.
Fazia um frio danado e a manhã tardava a chegar. Zanzando por
ali tudo, acabei me aproximando do homem da rusticíssima lanterna, curiosa com
o funcionamento dela. Na pouca luminosidade daquela madrugada, o homem me
mostrou a praticidade dela, falou do baixo custo para mantê-la, essas coisas
que costumam ser faladas por quem está acostumado a viver com quase nada.
A mulher do homem se juntara a nós, e eram ambos seres muito
maltratados pela vida, envelhecidos – imaginei que tivessem já seus quarenta
anos.
- Quer ver nossas crianças? – o homem perguntou, direcionando
sua luz precária para um colchãozinho infantil que descansava na grama,
escondido sob um cobertor de lã. Com muito cuidado, ele e a mulher levantaram
parte da lã... e sob ela dormiam SEIS criancinhas, uma escadinha que ia de zero
a sete anos.
- Perdemos uma... – o homem se emocionava, iluminando seus
tesouros com aquela lanterna mágica que me atraíra.
- Que aconteceu?
- Ficou doente. A gente não tinha como tratar. Morreu – e
tanto ele quanto a mulher ficaram ali, inclinados e tristes, chorando um no
ombro do outro. Tinham seis anjinhos ali dormindo naquele colchãozinho, mas
sentiam falta daquele outro que partira – já não eram completos; uma parte
deles lhes fora tirada pela pobreza, ficara no meio do caminho, quebrara-se a
sua cadeia da vida. Estavam tão tristes assim chorando naquela iluminação
precária, que procurei desconversar.
- Vocês são de onde?
- Vim do interior de São Paulo, dona. A mulher eu roubei no
Paraná, faz sete anos! Ela tinha 14 anos! – a alegria lhes voltara com aquelas
lembranças quase que de capa-e- espada, provavelmente a única grande aventura
das suas vidas. Agora riam seus risos desdentados e feios de quem só conhecera
a dura pobreza extrema, e então fiz a conta, considerando a criança mais velha:
- Mas então tu tens 21 anos...
Sim, aquela mulher maltratada, envelhecida prematuramente, só
tinha 21 anos, um marido decerto um pouquinho mais velho, e o colar incompleto
de seis crianças que eram as suas pérolas. E juntos, os dois tinham aquele
colchãozinho infantil, um cobertor, aquela lanterna – e um sentimento enorme
que os unia.
Fiquei ali, parva, pensando como poderiam sobreviver aquelas
oito criaturas se não tivessem se amparando uns aos outros dentro daquele
movimento que clamava pela justiça do fim das capitanias hereditárias.
Nunca me esqueci daquela família com sua lanterna mágica, seu
amor tão grande até por aquele anjinho que voara embora, aquele anjinho que
fazia falta no colchãozinho onde dormiam outros seis.
Penso que se passaram uns três ou quatro anos até encontrar
aquele homem de novo. Era de dia, mas o reconheci. Desta vez, como eu, ele
estava de apoiador para um povo inteiro em risco de vida por conta de um
fazendeiro pestilencialmente mau. Rimos um para o outro, e perguntei por sua
mulher, pelas crianças. Todos estavam bem, e agora TINHAM A SUA TERRA! Ele me
disse o nome do assentamento onde moravam, e eu sabia que aquele era um lugar
bom, onde as pessoas estavam conseguindo viver felizes.
- Dona, lá dá de tudo! Tem feijão, tem milho, tem melancia...
e as vacas, dona, eu estou criando vacas! É a coisa mais linda! Já tem leite
para vender, e nunca mais que as crianças ficaram sem leite!
Foi a maior alegria encontrar de novo aquele homem que
possuía uma lanterna mágica, agora seguro e bem alimentado! Decerto sua mulher
rejuvenescera também, no novo regime de leite, manteiga e tantas melancias,
“olha dona, precisava ver cada melancia!”.
De vez em quando eu fico lembrando do homem que tinha aquela
lanterna única. E então penso também no punhado de bobões que acredita na
imprensa que se curva diante do Capital e se posiciona ao lado dela, falando as
maiores barbaridades contra quem procura seu direito à terra, sem ter nenhum
conhecimento sobre o que seja verdade ou não. Daí eu sei que sempre vou poder
contar com aquele homem e a sua família. Há uma lanterna mágica a nos unir para
sempre.
(*)Urda Alice Klueger é escritora. Começou seus estudos na sua cidade natal, na Escola São José. Cursou o ginásio e o científico no Colégio Pedro II, também em Blumenau. Mais tarde, iniciou o curso de Economia (UNIPLAC), que não chegou a completar, na cidade de Lages. Finalmente, licenciou-se e especializou-se em História, pela FURB, em Blumenau.
Obras
- Verde Vale, romance-histórico, 1979 (em 10º Edição)
- As Brumas Dançam sobre o Espelho do Rio, romance-histórico, 1981
- No Tempo das Tangerinas, romance-histórico, 1983 (em 7º Edição)
- Vem, Vamos Remar, relato, 1986 (em 4º Edição)
- Te Levanta e Voa, romance, 1989
- Cruzeiros do Sul, romance-histórico, 1991
- Recordações de Amar em Cuba II, relato, 1995
- A Vitória de Vitória, romance infantil, 1998 (em 2º Edição)
- Entre Condores e Lhamas, relato, 1999
- Crônicas de Natal e Histórias da Minha Avó, memórias, 2001 (em 3º Edição)
- No Tempo da Bolacha Maria, crônica memorialista, 2002
- Amada América, crônicas de viagem, 2003
- O povo das Conchas, paradidático sobre sua pesquisa pré-histórica (Sambaquianos), 2004
- Histórias D´Além Mar, crônicas de viagem, 2004
- Sambaqui, 2008
- Meu Cachorro Atahualpa, 2010
- Nossa Família Aumentou, 2014
.................................................................................
Urda Alice Klueger colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
PressAA
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário