O torturador que diz não temer a verdade (Parte 1)
por Fernando Soares Campos
Portal Maltanet, 30 de maio de 2020
Trecho:
No dia seguinte, por volta das três da tarde, o telefone chamou. Atendi. Um sujeito meio rouco perguntou por mim.
– É ele – respondi.
– Seu Fernando, aqui é um amigo do falecido suboficial Damasceno. A viúva dele me falou que o senhor gostaria de falar comigo.
– É o sargento Sousa?
– Tenente Sousa.
– Desculpe, eu me lembrava de você ainda como sargento e esqueci que a dona Marilane me falou que havia se reformado como tenente...
– Não tem problema, eu entendo.
– Tenente Sousa – acentuei a patente com um tom firme, muito apreciado pelos militares –, eu servi com você no Submarino Bahia. Cheguei a bordo em 69 e desembarquei em 71. Eu me lembro que você era o sargenteante, o homem que cuidava de muita coisa, mas principalmente do nosso soldo, acrescentava as horas de mergulho na nossa caderneta e, a partir daí, a gente passava a ganhar um pouco mais. Confere?
– Tem boa memória! Mas eu não me lembro de você. A Marilane me deu seu nome completo. Eu lidava com toda a tripulação, mas você sabe, faz muitos anos, e a gente acaba esquecendo, não dá pra lembrar de todos. Qual era seu posto?
– Eu trabalhava nas máquinas, era marinheiro do serviço de máquinas, sou do tempo do cabo Cleber, do Martins, do Edivan...
Súbito, o tenente Sousa me cortou:
– Peralá! não vá me dizer que você é aquele marinheiro que deu calote numa boate na zona de Santos, no dia da final da Copa de 70!
Eu preferia ser lembrado por alguma coisa mais relevante, ou mais honrosa. Em todo caso, fiquei satisfeito por ter sido lembrado por um feito qualquer, mesmo que nada edificante.
– Você também tem boa memória – com isso, confirmei que era o tal que ele acabara de se lembrar.
O tenente Sousa caiu na risada, gargalhadas dobradas. Tomou fôlego e falou:
– Rapaz, eu já contei essa história pros meus netos – continuava rindo, agora mais moderado –. Você estava na boate, os colegas iam chegando, você convidava pra mesa, mandava servir os drinques. Depois foi dançar com uma das garotas e sumiu – os risos novamente passaram a gargalhadas –. Na hora da dolorosa, o pessoal falou pro garçom: “Nós não temos nada com isso! Foi o marinheiro quem pediu as bebidas, aquele que estava com a loirinha. Cadê ele? Cobre lá dele?!” – e tome gargalhadas.
Eu mesmo contei o final da história. Falei que o garçom acabou me localizando a bordo, queixou-se ao oficial de plantão. Este adiantou o pagamento da conta com dinheiro do caixa de bordo e registrou a queixa no Livro de Contravenções Disciplinares, mais conhecido como Livro de Castigo. E foi ele mesmo, o sargento Sousa, quem me encaminhou para a audiência com o comandante. Fui punido com cinco dias de impedimento, que consiste em não poder ir para terra naquele período. Cumpri dois dias em Santos e três no Rio.
– Mas tem também aquele outro caso que acho que foi com você... – continuou o tenente Sousa.
Pelo visto, ele estava disposto a levantar todas as babaquices que cometi enquanto estive a bordo do Bahia. E não foram poucas. Eu nem perguntei “qual?”, pois poderia suscitar lembranças outras. Preferi dissimular com:
– É, acho que teve outro caso interessante.
– Rapaz! Esse outro caso foi muito engraçado. Foi em Recife. Você levou pra bordo aquelas garotas de um bordel da Rio Branco, apresentou uma delas como sua namorada e as outras como cunhadas, primas, amigas – o filho da mãe explodia de rir.
Só não desliguei o telefone porque precisava de informações sobre o paradeiro do sargento Túlio, e aquele seria, sem dúvida, o mais importante contato para chegar a ele. O cara havia exercido as funções de sargenteante, o homem que lidava com toda a tripulação, conhecia cada um de nós. Unidades maiores têm mais de um sargenteante, mas, num submarino, um só dá conta do serviço.
Continuou com as gozações:
– Dali em diante todo mundo tirava sarro contigo: “E aí, marujo, como é que tá a família da noiva?” “Boy, ontem à noite estive lá na casa da tua sogra” – a sogra era a cafetina... gargalhadas enchendo meu saco.
Foi naquele momento que tive a certeza da existência de Deus! Sim, Deus existe, sim! Quem mais poderia me fazer lembrar de uma passagem muito engraçada na Ilha da Martinica?
“Só pode ter sido um anjo que me soprou essa!”
– Sargento...
– Tenente.
– Ah! desculpe, esqueci. Tenente, você também conta pros seus netos aquele caso do sargento que, na Martinica, pegou uma garota no escurinho, em cima de uma ponte, encostou a vítima na balaustrada, transaram, e, quando ela foi embora, ele saiu assoviando, feliz, pelas ruas de Fort-de-France, sem entender nem ligar pra todos que olhavam pra ele e sorriam ou faziam gestos estranhos?
Silêncio. Pensei que a linha tivesse caído, até que o Sousa tossiu, falou alguma coisa para alguém bem próximo dele, pareceu cochichar. Apesar de eu não ter entendido o que falou, me pareceu que não tinha nada a ver com o que conversávamos.
– Desculpe aí, meu caro Fernando... É Fernando, não é?
– Sim.
– Ah! você se lembra daquele caso na Martinica? Pois é, rapaz, nem eu mesmo me lembrava daquilo – interrompeu e novamente falou alguma coisa com alguém e retomou a nossa conversa informando:
– É o meu filho que está com um problema no carro... Mas, sim, a Marilane me passou o seu telefone, mas não soube dizer o que você está querendo falar comigo.
Claro que o tenente Sousa não estava mais interessado em minhas trapalhadas nos portos. Menos ainda em falar do sargento Sousa, que transou com uma garota no escuro, apenas com o zíper aberto, sem nem mesmo arriar um pouco as calças, e somente quando chegava a bordo notou a mancha de sangue na barguilha daquela calça de uniforme branquinho. A garota estava “naqueles dias”. Até Chiquita Bacana deve ter rido dele naquela noite, distraído pelas ruas da capital da colônia francesa.
Não voltaria a curtir com a minha cara.
– Estou tentando encontrar um sargento do nosso tempo no submarino.
– Sargento é mais fácil de lembrar, pois eu também era sargento. Quem você tá procurando?
– É o sargento Túlio. Acho que ele era telegrafista.
Ficou mudo. Mais alguns segundos e o telefone deu sinal de ligação encerrada.
“O filho da mãe desligou!”
Se a ligação tivesse caído por problemas na linha, o sinal teria sido imediato, mas aquele silêncio que precedeu o sinal de encerramento da conexão indicava que ele pensou um pouco antes de desligar. “Assustou-se?”
Por que achei que ele se assustou? Porque o sargento Túlio era um conhecido agente do Cenimar. Todos a bordo sabiam disso. E, se ele se assustou por isso, então, no meu entender, deu bandeira. Talvez o sargento, agora tenente, Sousa tivesse sido seu parceiro, um dos poucos “secretas” (como eram conhecidos os olheiros) do Cenimar que conseguiam esconder a identidade. Sim, porque a maior parte dos alcaguetas plantados a bordo depois do golpe de 64, vigiando cada gesto e palavra do pessoal subalterno, fazia questão de exibir seus estreitos relacionamentos com o oficialato. Só faltavam vestir camisetas com a inscrição: “Agente Somos do Cenimar”.
Talvez ele apenas não quisesse se envolver falando desse tipo de elemento, principalmente naquele momento, quando a questão dos crimes cometidos nos porões da ditadura estavam sendo questionados, e os torturadores ligaram as antenas, ficaram apreensivos. Mas foi aí que tive certeza de que o sargento Túlio estava vivo. E o tenente Sousa sabia de seu paradeiro. Tudo indicava que este tem algum relacionamento com aquele.
Fui à cozinha tomar um pouco d’água. Voltei para a sala, sentei-me à mesa, onde dispunha de papel e esferográfica. Rascunhei os quatro primeiros parágrafos destes relatos. Fiquei por algum tempo pensando na atitude do tenente Sousa. Estava convicto de que ele bateu o telefone na minha cara. Não foi a linha que caiu.
– É ele – respondi.
– Seu Fernando, aqui é um amigo do falecido suboficial Damasceno. A viúva dele me falou que o senhor gostaria de falar comigo.
– É o sargento Sousa?
– Tenente Sousa.
– Desculpe, eu me lembrava de você ainda como sargento e esqueci que a dona Marilane me falou que havia se reformado como tenente...
– Não tem problema, eu entendo.
– Tenente Sousa – acentuei a patente com um tom firme, muito apreciado pelos militares –, eu servi com você no Submarino Bahia. Cheguei a bordo em 69 e desembarquei em 71. Eu me lembro que você era o sargenteante, o homem que cuidava de muita coisa, mas principalmente do nosso soldo, acrescentava as horas de mergulho na nossa caderneta e, a partir daí, a gente passava a ganhar um pouco mais. Confere?
– Tem boa memória! Mas eu não me lembro de você. A Marilane me deu seu nome completo. Eu lidava com toda a tripulação, mas você sabe, faz muitos anos, e a gente acaba esquecendo, não dá pra lembrar de todos. Qual era seu posto?
– Eu trabalhava nas máquinas, era marinheiro do serviço de máquinas, sou do tempo do cabo Cleber, do Martins, do Edivan...
Súbito, o tenente Sousa me cortou:
– Peralá! não vá me dizer que você é aquele marinheiro que deu calote numa boate na zona de Santos, no dia da final da Copa de 70!
Eu preferia ser lembrado por alguma coisa mais relevante, ou mais honrosa. Em todo caso, fiquei satisfeito por ter sido lembrado por um feito qualquer, mesmo que nada edificante.
– Você também tem boa memória – com isso, confirmei que era o tal que ele acabara de se lembrar.
O tenente Sousa caiu na risada, gargalhadas dobradas. Tomou fôlego e falou:
– Rapaz, eu já contei essa história pros meus netos – continuava rindo, agora mais moderado –. Você estava na boate, os colegas iam chegando, você convidava pra mesa, mandava servir os drinques. Depois foi dançar com uma das garotas e sumiu – os risos novamente passaram a gargalhadas –. Na hora da dolorosa, o pessoal falou pro garçom: “Nós não temos nada com isso! Foi o marinheiro quem pediu as bebidas, aquele que estava com a loirinha. Cadê ele? Cobre lá dele?!” – e tome gargalhadas.
Eu mesmo contei o final da história. Falei que o garçom acabou me localizando a bordo, queixou-se ao oficial de plantão. Este adiantou o pagamento da conta com dinheiro do caixa de bordo e registrou a queixa no Livro de Contravenções Disciplinares, mais conhecido como Livro de Castigo. E foi ele mesmo, o sargento Sousa, quem me encaminhou para a audiência com o comandante. Fui punido com cinco dias de impedimento, que consiste em não poder ir para terra naquele período. Cumpri dois dias em Santos e três no Rio.
– Mas tem também aquele outro caso que acho que foi com você... – continuou o tenente Sousa.
Pelo visto, ele estava disposto a levantar todas as babaquices que cometi enquanto estive a bordo do Bahia. E não foram poucas. Eu nem perguntei “qual?”, pois poderia suscitar lembranças outras. Preferi dissimular com:
– É, acho que teve outro caso interessante.
– Rapaz! Esse outro caso foi muito engraçado. Foi em Recife. Você levou pra bordo aquelas garotas de um bordel da Rio Branco, apresentou uma delas como sua namorada e as outras como cunhadas, primas, amigas – o filho da mãe explodia de rir.
Só não desliguei o telefone porque precisava de informações sobre o paradeiro do sargento Túlio, e aquele seria, sem dúvida, o mais importante contato para chegar a ele. O cara havia exercido as funções de sargenteante, o homem que lidava com toda a tripulação, conhecia cada um de nós. Unidades maiores têm mais de um sargenteante, mas, num submarino, um só dá conta do serviço.
Continuou com as gozações:
– Dali em diante todo mundo tirava sarro contigo: “E aí, marujo, como é que tá a família da noiva?” “Boy, ontem à noite estive lá na casa da tua sogra” – a sogra era a cafetina... gargalhadas enchendo meu saco.
Foi naquele momento que tive a certeza da existência de Deus! Sim, Deus existe, sim! Quem mais poderia me fazer lembrar de uma passagem muito engraçada na Ilha da Martinica?
“Só pode ter sido um anjo que me soprou essa!”
– Sargento...
– Tenente.
– Ah! desculpe, esqueci. Tenente, você também conta pros seus netos aquele caso do sargento que, na Martinica, pegou uma garota no escurinho, em cima de uma ponte, encostou a vítima na balaustrada, transaram, e, quando ela foi embora, ele saiu assoviando, feliz, pelas ruas de Fort-de-France, sem entender nem ligar pra todos que olhavam pra ele e sorriam ou faziam gestos estranhos?
Silêncio. Pensei que a linha tivesse caído, até que o Sousa tossiu, falou alguma coisa para alguém bem próximo dele, pareceu cochichar. Apesar de eu não ter entendido o que falou, me pareceu que não tinha nada a ver com o que conversávamos.
– Desculpe aí, meu caro Fernando... É Fernando, não é?
– Sim.
– Ah! você se lembra daquele caso na Martinica? Pois é, rapaz, nem eu mesmo me lembrava daquilo – interrompeu e novamente falou alguma coisa com alguém e retomou a nossa conversa informando:
– É o meu filho que está com um problema no carro... Mas, sim, a Marilane me passou o seu telefone, mas não soube dizer o que você está querendo falar comigo.
Claro que o tenente Sousa não estava mais interessado em minhas trapalhadas nos portos. Menos ainda em falar do sargento Sousa, que transou com uma garota no escuro, apenas com o zíper aberto, sem nem mesmo arriar um pouco as calças, e somente quando chegava a bordo notou a mancha de sangue na barguilha daquela calça de uniforme branquinho. A garota estava “naqueles dias”. Até Chiquita Bacana deve ter rido dele naquela noite, distraído pelas ruas da capital da colônia francesa.
Não voltaria a curtir com a minha cara.
– Estou tentando encontrar um sargento do nosso tempo no submarino.
– Sargento é mais fácil de lembrar, pois eu também era sargento. Quem você tá procurando?
– É o sargento Túlio. Acho que ele era telegrafista.
Ficou mudo. Mais alguns segundos e o telefone deu sinal de ligação encerrada.
“O filho da mãe desligou!”
Se a ligação tivesse caído por problemas na linha, o sinal teria sido imediato, mas aquele silêncio que precedeu o sinal de encerramento da conexão indicava que ele pensou um pouco antes de desligar. “Assustou-se?”
Por que achei que ele se assustou? Porque o sargento Túlio era um conhecido agente do Cenimar. Todos a bordo sabiam disso. E, se ele se assustou por isso, então, no meu entender, deu bandeira. Talvez o sargento, agora tenente, Sousa tivesse sido seu parceiro, um dos poucos “secretas” (como eram conhecidos os olheiros) do Cenimar que conseguiam esconder a identidade. Sim, porque a maior parte dos alcaguetas plantados a bordo depois do golpe de 64, vigiando cada gesto e palavra do pessoal subalterno, fazia questão de exibir seus estreitos relacionamentos com o oficialato. Só faltavam vestir camisetas com a inscrição: “Agente Somos do Cenimar”.
Talvez ele apenas não quisesse se envolver falando desse tipo de elemento, principalmente naquele momento, quando a questão dos crimes cometidos nos porões da ditadura estavam sendo questionados, e os torturadores ligaram as antenas, ficaram apreensivos. Mas foi aí que tive certeza de que o sargento Túlio estava vivo. E o tenente Sousa sabia de seu paradeiro. Tudo indicava que este tem algum relacionamento com aquele.
Fui à cozinha tomar um pouco d’água. Voltei para a sala, sentei-me à mesa, onde dispunha de papel e esferográfica. Rascunhei os quatro primeiros parágrafos destes relatos. Fiquei por algum tempo pensando na atitude do tenente Sousa. Estava convicto de que ele bateu o telefone na minha cara. Não foi a linha que caiu.
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