terça-feira, 24 de novembro de 2009

Às vezes as vozes vagueiam...

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AS VOZES DOS ANOS 60/70

Raul Longo

Por vezes escuto Beatles, mas as vozes que queria ter esquecido lá nos anos 60/70 são as que mais me assombram e metem medo.

Vejam trechos de alguns diálogos que ainda me corrompem a tranqüilidade do sono, lembrando as comunicações que conseguíamos com amigos da Argentina, do Uruguai ou do Chile:

hondurenho: buen dia, te envie un par de emails de la red FIAN.

brasileira: hola, como vai?

hondurenho: la cosa se esta poniendo mas dificil. Represion anoche, se especula sobre un muerto, sujeto a confirmacion, pero si reprimieron un sector popular de Tegucigalpa.

outro:

brasileira: Cuidado HERMANO muito cuidado

hondurenho: exacto, el temor es que hagan una emulacion de esos dias del golpe fascista en Chile, en los dias que viene y nosotros estamos tan indefensos como los chilenos de entonces

e mais outro:

hondurenho: ahora voy a viajar a Nacaome, donde anoche hubo represion y un secuestrado de la resistencia. Regreso a las 2:00 pm hora local, entonces escribire

brasileira: não vou colocar seu nome na informação, ok?

hondurenho: si, lo se. Ok, lo hago ahora mismo.

Hoje as comunicações são muito mais fáceis, mas vozes continuam as mesmas, repetindo o lamento das mães que na Plaza de Mayo reivindicavam seus filhos e netos desaparecidos, seqüestrados. As mesmas crianças que choravam por seus pais levados na calada da noite. Os mesmos gritos das masmorras e delegacias, os mesmos estampidos dos executores dos Esquadrões da Morte. O mesmo baque cavo de um corpo tombado.

Era um jovem: talvez meu amigo. Uma jovem: talvez minha namorada. Era ninguém. Era eu. Éramos todos nós.

E as vozes me perseguindo no silêncio do continente. O silêncio da mídia que rodava, rodava, rodava, mas nunca avisava da minha morte, do seqüestro do filho que não tive, do amigo que nunca mais vi, da namorada que nunca mais pode me amar.

Novamente busco na TV, nas páginas dos jornais, e o mesmo barulho, o mesmo ruído de engodo da mídia, encobrindo o grito e a dor dos hondurenhos.

A dor dos hondurenhos de hoje, dos guatemaltecos de amanhã, dos nicaragüenses, venezuelanos, paraguaios, brasileiros, chilenos e depois... Depois, quem sabe quem mais? Certamente: todos nós.

Enquanto nos anos 80 as ditaduras se estabeleceram sobre os destroços de democracias arrasadas, essas vozes foram se silenciando em minha enorme solidão. E me senti irremediavelmente derrotado. Não mais acreditei em um continente possível para os que tivessem alguma boa vontade com a multidão de humanos.

Enquanto governos corruptos nos espoliaram ao longo dos anos 90, vi crescer a miséria e a degradação dos filhos que não tive: marginalização, drogas, amontoamento, promiscuidade, degradação.

Vivi a fome enquanto se entregava as poucas bananas que restaram de nossas repúblicas, para o repasto dos meninos gordos do hemisfério norte. Mas então as vozes calaram definitivamente e pensei ter ficado surdo.

Havia a vantagem de não mais acordar com os vozes do passado, é verdade. Mas também me era impossível sonhar com o futuro.

Então veio o novo século, e daqui e dali, de várias partes do continente, começo a ouvir um novo canto falando em soberania e determinação dos povos, em inclusão e justiça, resgate dos excluídos. Vou me encantando, imaginando rever o saudoso cinturão cósmico da Violeta Parra a cingir o continente.

Quando começo a dançar por este novo canto, nessa nova voz, a me embriagar no perfume dessas novas flores e no sumo desses novos vinhos, imaginando a possibilidade de novos amigos e namoradas, a pensar em possíveis filhos; de Honduras os fantasmas voltam a murmurar assombrando minhas noites.

Pensei exorcizá-los encarando de frente minhas lembranças de guerra. Até iniciei um série de resumos da história de nossas repúblicas. Os escreveria de uma a uma, desde Guatemala. Cada golpe, cada genocídio: pela United Fruit, pela ITT, pela Chiquita Brands, por todos os criminosos do capitalismo norte-americano e seus embaixadores, agentes da CIA, senhores do medo e da morte. Aliciadores do crime organizado internacional.

Um dia ouvi o presidente da OEA chamando de "mequetrefe" ao golpista de Honduras. Miguel Insulza afirmou que não seria diplomático indicá-lo pela palavra que sufocava sua garganta, como não seria diplomático esmurrar a mesa, mas "hasta cuando este mequetrefe nos dará tapas en la cara?"

Então, pensei comigo que não deveria continuar resgatando a memória do que melhor se esquecido para não soterrar este pretendido mundo novo sob os escombros da indignidade e do assassínio. Achei não haver porque fazer medo aos mais jovens, pois se amadurecera o mundo, a América Latina. Insulza me fez acreditar na determinação dos novos líderes de um novo mundo. Mais viável e humano.

Quis acreditar em instituições mais valorosas, uma humanidade mais civilizada, uma OEA capaz de conter os fascistas do continente, os interesses dos manipuladores de anacrônicos títeres e tiranetes de "mierda", como diria Insulza se não coibido pela diplomacia.

Mas insistem as vozes dos anos 60/70. Exatamente as mesmas vozes que me assombram a memória e calam a boa vontade dos novos líderes.

Hasta cuando? Até quando seremos tão fracos? Tão impotentes?


Raul Longo
www.sambaqui.com.br/pousodapoesia
Ponta do Sambaqui, 2886
Floripa-SC

Raul Longo, jornalista, escritor e pousadeiro, colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz

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