sábado, 27 de março de 2010

DUAS PIZZAS PARA SEIS FOMES - Tragédia em dor maior

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Fernando Soares Campos

O menino achou um celular. Esfregou o aparelho no calção removendo as incrustações mais densas. Apareceram alguns nomes e números desbotados e uma pequena rachadura num cantinho. Ficou feliz, acenou com o seu troféu para a mãe. Ela também encontrara alguma coisa de certa importância que guardara no bolso do vestido. Os trastes de menor valor foram jogados no saco surrado. Mais adiante, a menina parecia ter menos sorte. Entre seus achados contabilizava apenas algumas latinhas de alumínio e alguns pedaços de arame retorcido. “Se pelo menos fosse cobre!”

Os caminhões da limpeza urbana chegavam a todo momento carregados de esperança. Em marcha a ré, aproximavam-se do barranco e despejavam a matéria-prima daquela indústria dos catadores. Os operários do lixão reviravam tudo, e em tudo sempre havia algumas coisas que poderiam significar um dia menos magro.

No lixão de Gramacho, na Baixada Fluminense, ao meio-dia, quando a temperatura aproxima-se dos quarenta graus, um mau cheiro nauseante impregna a atmosfera. Urubus e seres humanos disputam a sobrevivência. Nada é exatamente o que parece ser nas telas de tevê. Ao vivo, a realidade é outra.

Leonardo, o menino do celular, já viveu doze escaldantes verões. Sua irmã, Verônica, a menina que gostaria de achar cobre em vez de arame, já passou dez sofridas primaveras. Eles têm ainda três irmãos menores. Tuca, sete anos, fica em casa tomando conta dos outros dois. A mãe, Cimara... quer dizer, Mara do Lixão, como todos a conhecem, não teve apenas os cinco rebentos que lhe fazem companhia no barraco misto de madeira e alvenaria. Foram sete. Dois deles morreram antes de passar pelas quatro primeiras estações. Uma mãe, cinco pais e sete partos. Dois dos seus maridos morreram, ambos assassinados: um, por causa de dívida com o tráfico de drogas, o outro, numa briga com um vizinho — doze facadas. Dos outros três, sabe-se apenas do que está na cadeia. Flagrado pela vigilância, roubando comida de um mercadinho do bairro, pegou seis anos. Supostamente, Leonardo é filho do primeiro marido, e Verônica, do segundo.

Naquele dia os três conseguiram transformar a coleta conjunta em pouco mais de cinco reais. Há dias em que obtêm melhores rendimentos, entretanto também ocorrem resultados ainda mais minguados. Estão acostumados àqueles parcos apurados. Sabem até quais os melhores dias no lixão. Baseados no tipo de material despejado, reconhecem a origem da coleta: lixo “de primeira”, “de bacana”, “coisa fina”, “filé”, é como definem os bons despejos. Não gostam de perder tempo com “favelão”, “lixo do lixo”, como designam as descargas oriundas de áreas pobres.

No barraco onde moram, quase tudo foi encontrado no lixo, inclusive a maior parte das roupas que vestem. Calçados, bijuterias, bolsas, talheres, pratos, canecas, quadros, enfeites, jarros, brinquedos, panelas, frigideiras, cinzeiros, bibelôs, tudo veio do lixão. Vez ou outra, dinheiro vivo, quase sempre moedas de pequeno valor. Mas também, não muito raro, acham cédulas, geralmente de um real. Leonardo já ouviu um catador antigo dizer que um companheiro encontrara um pacote com muitos dólares. Aprendeu que se trata de dinheiro estrangeiro, de valor impressionante. Pelo visto, um dinheiro bastante cobiçado. Mesmo assim, Leonardo prefere encontrar uma grande quantia do bom e conhecido real, notas graúdas, umas cem notas de cem — para ele, esse é o referencial de uma verdadeira fortuna. Acredita ser o bastante para comprar uma casa fora da favela. Sonha em tirar sua mãe e irmãos daquele ambiente.

O barraco é um único cômodo de uns trinta metros quadrados. Ali todos se acomodam para comer, conversar e dormir. Nos fundos há um pequeno espaço improvisado para o banho sobre uma tábua escorregadia. Tem um vaso sanitário encardido no qual um tubo de material plástico acoplado serve de escoadouro até a vala que passa no meio da favela.

Todos pareciam satisfeitos após tomarem o sopão de legumes que a mãe preparara. Verônica penteava Babi, a sua boneca de um só braço. Leonardo, sentado a um canto, observava o celular. Tuca e os dois menores pareciam interessados no aparelho, enquanto o menino apertava as suas teclas, encostava-o no ouvido, aguardava, mexia, aplicava-lhe leves pancadas e novamente tentava escutar.

— Tá ouvindo o quê, Leo? — perguntou Tuca, a menininha de fala arrastada.

Leonardo fingiu que falava com alguém:

— Sim, pode mandar.
— Mandar o quê, Leo? — quis saber sua irmã.
— Das grande, duas das grande — completou ele e logo fingiu que desligou o aparelho.

Os dois mais novos apenas observavam. Tuca não acreditou que o irmão houvesse falado com alguém.

— Esse celular tá quebrado — disse ela.
— Quebrado?! Quebrado, é?! Quebrado, nada! Tá falando sim, tá falando. Pedi duas pizza. Das grande.
— Então deixa eu falar.
— Eu também quero falar — disse Caco, de quatro anos, com sua fala embolada devido à chupeta que não tirava da boca.
— Falar com quem? Vocês não conhecem ninguém!
— Eu conheço sim, conheço muita gente — protestou Tuca.
— Mas não sabe o número de nenhum telefone — afirmou Leonardo.

A menina ficou pensativa. Verônica entrou na discussão:

— Tuca não sabe, mas eu sei.
— De quem? Tu sabe o número do telefone de quem? — quis saber Leonardo.
— Do pai do Caco.

Caco ficou eufórico:

— Eu quero falar com meu pai!
— Ah! que mentira! O pai do Caco até já morreu — afirmou Leonardo.
— Mas, quando ele tava vivo, a mãe telefonava de vez em quando pro trabalho dele, e eu me lembro do número do telefone.

Caco insistia:

— Quero falar com meu pai!
— Tá vendo o que você fez?! Agora o moleque tá pensando que o pai tá vivo.
— Deixa pra lá, Caquinho — disse Verônica. — Esse celular num presta mesmo.
— Meu celular tá na moral. Melhor que tua boneca aleijada.

Dizendo isso, Leonardo foi para a cama que dividia com os dois irmãos menores. As meninas dormiam na outra com a mãe.

Cimara retornou do barraco da vizinha com quem costumava trocar idéias quase todas as noites. Botou os filhos para dormir e também se acomodou na cama com as duas meninas.

Umas frestas no telhado do barraco permitiam a penetração de luz externa, mantendo uma certa claridade, mesmo com a lâmpada apagada.

Cimara, a julgar pelo barulho do seu ronco, dormia um sono profundo quando Tuca sussurrou no ouvido de Verônica:

— Vamo telefoná?
— O quê?! Vai dormir, vai! Tá de bobeira, é?! Se a mãe acordar num vai gostar — advertiu Verônica.
— Ah! mais eu queria...
— Num tem mais nem menos, cala essa boca e vai dormir, vai!

Já passava da meia-noite, todos dormiam... Todos, não, pois Tuca se mantinha acordada. E não era por causa dos tiros de fuzil que de vez em quando espocava na área próxima, porque isso era praticamente rotineiro, e a maioria dos moradores da favela já estava acostumada a eles. Sabe até distingui-los do pipocar dos fogos que anunciam a chegada da polícia.

Tuca não desgrudava os olhos do aparelho celular que Leonardo segurava enquanto dormia. Ela ergueu a cabeça, olhou em volta e certificou-se de que sua mãe e seus irmãos ressonavam. Esgueirando-se, a menina saiu da cama e se aproximou do outro leito. Cuidadosamente apanhou o celular do irmão e levou-o ao ouvido. Certamente não escutou nada. Olhou para o aparelho, mexeu em algumas teclas e novamente tentou ouvir alguma coisa. Afastou-se dali, foi até o banheiro. Sentou-se no vaso encardido. Deu uns tapinhas naquela pequena sucata. Mexeu nas teclas, experimentou a escuta, esperou um instante e falou baixinho:

— Mande duas das grande. Duas das grande — sorriu.

Cimara acordou-se e, ainda sonolenta, passou a mão, como de costume, para verificar se as filhas estavam na cama. Sentiu a falta de uma. Virou-se e não viu a mais nova. Chamou-a:

— Tuca!

A menina no banheiro ouviu o chamado da mãe. Respondeu:

— Tô aqui, mãe.
— Que é que você tem? Tá passando mal?

Tuca, rapidamente, apareceu ao lado de Cimara. O celular estava escondido sob o vestido, preso pelo elástico da calcinha.

— Não, mãe, só fui no banheiro.
— E por que não me chamou? Tá com dor de barriga?
— Não, foi só vontade de fazer xixi.
— Então vai dormir.

Pela manhã, um domingo ensolarado, enquanto as crianças ainda dormiam, Cimara já estava na rua garimpando a alimentação da prole. Aos domingos e feriados, revirava a lixeira de um restaurante na Rodovia Rio-Petrópólis, onde costumava encontrar restos de frutas e legumes, além de pedaços de frango assado, geralmente acompanhados de farofa e batata frita, a preferência dos filhos. No entanto aquele não parecia ser um bom fim de semana. Até as duas da tarde, não pintou um latão farto. Cimara voltou para o barraco com alguns poucos pedaços de pão e uma sacola com uma mistura de macarrão e arroz engordurada por um molho de panela. Almoçaram.

Leonardo não se desgrudava do celular. A todo momento, fingia que atendia alguma chamada:

— Alô, sou eu... o Leo... — fazia pausas e poses —, o filho da Cimara...
— Nem tocou! Eu sei que tá quebrado — disse Verônica.
— Tá tocando baixinho, você não ouviu porque é surda.
— Eu também não ouvi não — confirmou Tuca.
— Eu vi, eu vi... — falou Caco. — Agora, Leo, deixa eu falar com meu pai, deixa, deixa...
— Tá bom, Caquinho, eu vou deixar tu falar com teu pai.

Leonardo apertou algumas teclas e encostou o aparelho no ouvido do irmão menor.

— Pronto, pode falar.

O pequenino ficou radiante, esboçou um sorriso. Com os olhos brilhando, parecia esperar ouvir a voz de alguém. Leonardo insistiu:

— Fala, moleque! — dizendo isso, encostou o celular no próprio ouvido e falou: — O Caco vai falar, seu Renato.

Novamente aproximou o celular do ouvido do irmão.

Caco gritou:

— Pai, manda duas das grande, duas bem grande... Bem grande!
— Pronto, já falou.

Leonardo recolheu a pequena sucata de telefone.

— Tudo mentira — afirmou Verônica.
— Mentira! Tu diz isso porque num tem um desse.




Quando Cimara chegou em casa, já passava das oito da noite. Saíra em busca do jantar. E desta vez tivera melhor sorte. Trazia uma sacola com alguma coisa de forma arredondada. Jogou-a sobre a tosca mesa de tábuas de caixote. As crianças olharam curiosas para a sacola.

— Mãe, eu falei com meu pai, eu falei com meu pai... — gritava Caco eufórico.
— Que história é essa, menino?! — perguntou Cimara.
— Foi o Leo que enganou ele, mãe — informou Verônica. — Botou ele pra falar no celular quebrado que ele achou no lixão. Só pra enganar o menino.
— Que é isso aí, mãe? — perguntou Tuca apontando para a mesa.

Cimara pegou a sacola, abriu-a e mostrou para os filhos.

— Pizza. Encontrei num latão lá no shopping.

Leonardo apressou-se em pegar a sacola da mão da mãe e conferir o seu conteúdo. De olhos arregalados, falou:

— Caraca! duas... das grande! Como eu pedi!

Todos se animaram.

— O celular do Leo num tá quebrado nada! — garantiu Tuca. — Duas pizza grande, como a gente pediu.
— Eu que pedi — corrigiu Leonardo.
— Eu também pedi — lembrou Caco.
— Tá todo mundo de bobeira. Essas pizza foi a mãe que achou — afirmou Verônica.

Cimara cortou a primeira pizza em quatro grandes pedaços. Leonardo, Verônica, Tuca e Caco receberam essa primeira divisão. Mimo, o mais novo, ainda não sabia falar; porém, vendo o banquete dos irmãos, esticou os braços com as mãos estendidas e gemeu exigindo sua parte. Cimara cortou um pedaço da segunda pizza e deu para o filho caçula, que o levou à boca vorazmente. Também pegou um para si.

— Se tivesse guaraná, era melhor — lembrou Tuca.
— Eu prefiro coca — disse Verônica.
— Eu também — concordou Caco.

Leonardo, com o celular colado ao ouvido, falou:

— Uma coca e um guaraná, dos grande, de dois litro.

Verônica duvidou:

— Se vinhé, eu dou minha cara a tapa!

Cimara repreendeu a filha:

— Que isso, menina?! Isso é lá coisa que se fale?!
— Eu só tava querendo dizer que é mentira do Leo, que esse celular tá quebrado.

Leonardo, ainda ao telefone:

— Amanhã nóis vamo dá uma festa, pode mandar uns vinte litro...

Tuca e Caco vibraram.

Sentada na cama, Cimara observava os filhos satisfeitos, comendo pizza e sonhando com refrigerantes. Ela, ainda mastigando, sentiu um certo azedume. Olhou para o seu pedaço e cheirou-o. Pela sua expressão, devia ter sentido um mau cheiro de comida estragada. “Tem nada não. A gente já comeu muita coisa assim, e nunca passou de umas dor de barriga”, pensou.

Às dez da manhã daquela segunda-feira, Odete, a vizinha, estranhou: o barraco da amiga estava em silêncio; não se ouvia o costumeiro barulho que Tuca e os irmãos menores faziam enquanto Mara e os dois mais velhos estavam no lixão. Até aí Odete apenas estranhou. Mas, ao meio-dia, não se conteve e bateu nas tábuas do barraco chamando pelas crianças. Silêncio. Em pouco tempo, outras pessoas da vizinhança insistiam, agora chamando por todos, pois Alípio, um velho catador, já havia retornado do lixão e garantia que Mara e seus filhos não tinham ido trabalhar naquele dia.

Quando os vizinhos, depois de forçarem a porta, entraram no barraco, não entenderam bem o que estava acontecendo. Aproximaram-se cautelosamente de Mara e seus filhos, que, estranhamente, pareciam dormir.

Odete foi a primeira a tentar acordar a amiga. Inicialmente chamando-a pelo nome e sacudindo o seu braço. Mesmo assim ela não dava sinais de despertar. Percebendo a gravidade do que estava ocorrendo, os demais amigos se aproximaram das crianças e chamaram por elas. Em vão. Não demorou muito para entenderem que todos ali dormiam um sono profundo, distante, sem retorno.

Angústia, um tremor nas mãos, um balbuciar desconexo, um grito, um gesto de inconformismo, troca de olhares perplexos, muitas perguntas, nenhuma resposta, uma lamentação blasfemante, olhos turvando-se de lágrimas, um choro revelando profundo pesar, e um providencial desmaio para fugir daquele pesadelo real. Todos estavam tomados de assombro diante do cenário. Ninguém conseguia entender o que havia acontecido. Afinal, Mara do Lixão, mesmo na miserável condição de vida que levava, sempre se apegara à esperança de ver seus filhos bem criados. Todos sabiam o quanto ela amava sua prole e do que seria capaz de fazer para defendê-la.

Desmaiada, Odete não percebeu que Jorginho, seu filho caçula, já no quinto ano de peraltice, havia se apoderado do bom pedaço de pizza mista que deixaram sobre a tosca mesa de tábuas de caixote. Correndo pelos becos da favela, o moleque devorava a iguaria italiana, borrifada de raticida.


Conto de Fernando Soares Campos, publicado no livro "A cidade e as formas de viver". Organizadores: Junia de Vilhena, Ricardo Vieiralves de Castro, Maria Helena Zamora. Museu da República, 2005.

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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PressAA

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Um comentário:

Anônimo disse...

Fernando, você me matou a pau. Eu pensei que era um conto como qualquer outro - e esbarrei nesse celular e nessas pizzas. Uma porrada.
Urda.