quinta-feira, 12 de julho de 2012

SEU LICURGO COSTA

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Urda Alice Klueger*

Nasci quase 50 anos depois dele, o que fez com que não o conhecesse logo, não tivesse com ele as convivências que os outros tiveram. Na verdade, fiquei quase sem saber que ele existia até muito tarde na minha vida, até os tempos em que pesquisava História de Santa Catarina para escrever meu romance-histórico “Cruzeiros do Sul”. Esse romance propunha-se a contar a história da formação do povo catarinense, e eu andava esbarrando num problema sério: não encontrava boas fontes sobre o passado da região dos campos de Lages. Então, um advogado de Blumenau, sabedor do que eu passava, disse-me: “Há que se conhecer Licurgo Costa! Eu lhe empresto um livro dele. Ele não é como os outros, ele começa a contar a História desde quando o rei de Portugal começava a pensar em fazer a lei que daria a origem ao fato aqui no Brasil, e assim por diante. Eu trago um livro dele para ti amanhã.”

Foi assim que conheci o seu Licurgo, primeiro o livro, o primeiro volume de “O continente das Lagens”, emprestado por aquele advogado. O livro era totalmente espetacular, era exatamente o que eu queria para que servisse de base ao meu trabalho. Fiquei muito ansiosa para ter para mim aquele livro, e investiguei como consegui-lo: o livro estava esgotado. Soube ele, porém, que estava eu querendo o livro – e amanheci um dia com o Correio me batendo na porta, trazendo a coleção completa, os quatro volumes de “O continente das Lagens”, presente do seu Licurgo Costa para esta pessoa que era desconhecida na vida dele.
 
Nossa amizade começou daí. No começo, trocávamos cartas; só fui conhecê-lo pessoalmente mais tarde. Cada vez mais ele foi tomando tamanho e forma na minha vida – eu o admirava incondicionalmente. Quando “Cruzeiros do Sul” ficou pronto, pedi-lhe que escrevesse o prefácio – e tenho o orgulho de ele o ter feito, de ele ter escrito aquelas linhas que atestam que era recíproca a nossa admiração.
 
Houve outras coisas mais, já não lembro a ordem. Sei que um dia fui chamada a ocupar um lugar de sócia no Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, e a indicação tinha sido dele.
 
A partir de um certo momento, passamos a nos conhecer pessoalmente: eu ainda era jovem e vaidosa; ele era um senhor elegantíssimo e cheio de charme – a proximidade dos noventa anos não lhe tirava o fascínio de saber-se sedutor e interessantíssimo. Gostávamos de estar juntos – sempre que tal acontecia, ele brincava comigo, dizia que estava me paquerando para uma próxima encarnação. Alguém pode achar que isto parece ser macabro, mas não era: era doce e lindo, e flertávamos mesmo como se em outra encarnação fôssemos nos encontrar.
 
Agora o seu Licurgo se foi. Para mim, ficaram seus livros, o prefácio de um livro, e tantas lembranças e saudades! Sou uma pessoa agnóstica, mas penso que o que ele era, aquela essência, aquela energia, aquele fascínio, não podem ter se acabado. Lembrando agora de antigos livros que lia quando criança, diria que ele viajou para o “país das campinas verdejantes”, onde, algum dia, numa próxima encarnação, acabaremos por ser, mesmo, namorados. Até lá, seu Licurgo! A gente se vê!

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*Urda Alice Klueger: Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
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19 de julho de 1971- "Foi suicídio". Essa foi a notícia que chegou para Iracema Merlino, minha avó, quatro dias depois de três homens armados terem levado seu filho, Luiz Eduardo, de sua casa em Santos para o DOI-Codi, centro de tortura da ditadura militar em São Paulo. O corpo, por pouco não pôde enterrar. Estava no IML da cidade, com marcas de tortura, sem identificação. Foi o genro delegado, Adalberto, meu pai, que o encontrou. O caixão veio lacrado. Na missa de sétimo dia, na Catedral da Sé, os mesmos três homens que foram buscar o filho vieram dar-lhe os pêsames.

1988 ou 1989- Aproveito uma saída de minha avó e vou escondido até seu quarto. Mexo numa pasta azul royal com uma etiqueta escrito "Guido Rocha". Sei que não devo mexer ali. Leio rápido, para não ser vista. Embora saiba que meu tio foi assassinado porque "defendia um Brasil com saúde e educação para todos", eu não sei em quais condições havia morrido. São três ou quatro páginas datilografadas. É uma entrevista de Guido Rocha, companheiro de cela de Luiz Eduardo no DOI-Codi e um dos últimos a vê-lo com vida. Um calor me sobe o rosto, sinto um aperto no estômago e um nó na garganta. As lágrimas caem. Corro ao banheiro e choro longamente.

O horror relatado por Guido marcou meus doze anos. E me acompanhou por muito tempo, em muitas noites mal dormidas.

1991 ou 1992- "Carlos Alberto Brilhante Ustra." É a primeira vez que ouço esse nome, durante uma reunião na Comissão de Direitos Humanos na Assembleia Legislativa de São Paulo. Ex-presos políticos denunciam torturas sofridas nos aparelhos repressivos. Eleonora Menicucci, companheira de militância de Merlino e hoje ministra da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, pede a palavra e relata a tortura que sofrera, lado a lado de Merlino. Ela, na cadeira do dragão. Ele, no pau de arara. O comandante da casa de torturas era Brilhante Ustra. A denúncia não era nova. Eleonora e ex-presos políticos já a haviam feito muitos anos antes. Anoto o nome, olho para minha avó. ela está muito, muito vermelha, impassível. Só quem a conhecia bem entendia que era um sinal de tristeza e nervosismo.

Iracema era uma mulher muito calma, bonita, delicada. E muito forte. Nunca desistiu de lutar para que o Estado reconhecesse que seu filho fora assassinado. Ainda durante a ditadura, em 79, moveu uma ação contra a União, extinta na Justiça Federal por prescrição. A ação foi motivo de preocupação do regime militar, conforme documento de 31 de julho de 1971 que consta no acervo da Abin (Agência Brasileira de Inteligência Nacional), assinado pelo então comandante do Dops, Romeu Tuma, relatando um ato público em homenagem a Merlino. Quando morreu, em 31 de março de 1995, minha avó não tinha desistido de responsabilizar o Estado pelo assassinato de seu filho.

26 de junho 2012...

(Leia completo clicando no título) 

Recebido por e-mail de Vanderley Caixe, grupo Carta O BERRO

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Ilustração - AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons]

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