Urda Alice
Klueger*
(Para Terezinha Anastácio e Rodolfo
Leite, meus amigos.)
Moro num
bairro bastante complexo, que reúne desde uma ocupação urbana até um bocado de
burgueses que se comportam bem como são os burgueses, passando por uma população
de classe média baixa que anda com o nariz para cima como se burguesa também
fosse e um numeroso resquícios de colonos que se crê a nata do planeta, e por aí
vai. Como veem, é bastante complexo mesmo e não vou me aprofundar, aqui, neste
tema destes tantos feudos deste lugar aonde vivo. Há que aclarar, no entanto,
que dentre muita gente complicada que aqui existe também há um bocado de gente
simpática e de bom coração e que até alguns amigos consegui granjear desde que
aqui estou, gente da melhor qualidade.
Num bairro assim cheio de diferenças, é bem grande a quantidade de
pessoas que se não são, pelo menos tem a cara azeda, e quando saio com o meu
cachorro para um dos nossos passeios diários, fico impressionada com aquele
azedume de tantas caras que se negam ao cumprimento ou à amizade, e minha
preocupação maior é não acabar assim também, com aquela cara de quem acaba de
chupar um limão. Impressionante!
Há um pessoal, no entanto, que tem sido muito simpático comigo. Não falei acima, mas a maior parte das
nossas diversas classes sociais é, na verdade, formada pela classe trabalhadora
– e naqueles mais batalhadores, que pegam no pesado no tear das fábricas ou na
costura das facções, trabalhando sob pressão até a aposentadoria, há toda uma
gama de gente que não se queimou na fogueira das vaidades e que não chupa limão
e amarra o nariz para cima antes de sair de casa, e encanta-me, sobretudo, uma
mulher com quem encontro quase todos os dias lá na rua principal, provavelmente
fiandeira ou tecelã aposentada, que anda pela calçada distribuindo sorrisos e cumprimentos a
todos, gentes e animais, e que nunca deixa de me
dizer:
- Como vai, amiga? Tudo bem
com o cachorrinho? – embora eu sequer saiba o nome dela e ela também não saiba o
meu. Nem tudo é imperfeito, claro.
E há uns homens que eu amaria conhecer mais, escrever suas histórias, ser
amiga deles: os homens velhos. Não falo de velhinhos já caquéticos, mas de
homens da minha idade que nasceram, cresceram, foram para a fábrica e por 35
anos foram usados e abusados pela fábrica, e que, quando, enfim, saíram para a
sonhada aposentadoria, como que esqueceram de que um dia foram moços vaidosos e
namoradores, e andam muito mal vestidos, com pulovers do passado, chinelo de
dedo e calças desbotadas, e que quando me veem com meu cachorro sorriem e são
cordiais, e como que se encolhem um pouco, assim como se lembrassem que num
momento perdido no túnel do tempo um dia já foram namoradores, e olham para mim
assim como quem imagina que um dia eu também fui uma moça que talvez eles
tivessem querido namorar naquela época.
Tenho 60 anos e gosto de andar de vestido cor de rosa, de brinco
combinando, e penso que é por isto que eles se encolhem um pouco: nas suas
casas, as mulheres deles andam vestidas com a mesma humildade que eles, pois
também foram mastigadas pelas fábricas a maior parte de suas vidas e sonharam
muito com a aposentadoria para poderem usar seus vestidos velhos e seus chinelos
de dedo, sem mais compromisso com nenhum cartão ponto nem nenhuma encarregada –
ficaria feio para eles saírem para a rua mais bem arrumados, diferentes delas.
Assim, quando encontram uma mulher velha de vestido cor de rosa, com brinco
combinando, acho que o túnel do tempo lhes traz um outro tempo em que fomos
jovens e talvez eles se lembrem de antigas domingueiras e coisas assim, e pensem
em como a vida voou. Então são muito simpáticos comigo, e me sorriem quando me
cumprimentam, e eu fico toda feliz porque no meu bairro há uma porção de gente
que não toma vinagre ao café da manhã, e recordo como a simpatia e outros
sentimentos bons continuam existindo, apesar das tantas caras
azedas!
Blumenau, 12 de
outubro de 2012.
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*Urda Alice
Klueger Escritora,
historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA
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