quarta-feira, 21 de abril de 2010

Por que a extradição será rejeitada?

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Carlos A. Lungarzo

Há muitas razões éticas e políticas para que o Presidente negue a extradição, mas também há razões jurídicas poderosíssimas contidas no próprio Tratado. A mais forte dela é que a justiça italiana NÃO PODE, de acordo com seu próprio processo penal, COMUTAR A PRISÃO PERPÉTUA QUANDO A SENTENÇA TRANSITOU EM JULGADO. O pedido de Brasil só poderia ser atendido, se Battisti ainda não tivesse sido julgado. Agora, mesmo que a Itália tivesse a melhor boa vontade, não poderia, porque suas próprias leis o proíbem. Quando soube que seria publicado o acórdão sobre o caso Battisti, me comuniquei com vários amigos. Apesar do clima “kafkiano”, todos nós temos certeza de que o Presidente da República rejeitará a extradição. Qual é a origem desta certeza? Neste artigo, estou elencando várias razões que, segundo acredito, devem ter passado pela mente do Presidente. É claro que ninguém lê os pensamentos alheios, mas este é um caso evidente.

Destes motivos, alguns têm mais importância que outros, porém, um ou dois deles seriam suficientes para decidir contra a extradição. Não digo que o Presidente usará estes argumentos em seu ato executivo. O Tratado Brasil-Itália oferece itens muito óbvios de rejeição e qualquer um deles serviria. Mas há um assunto capital, que explico em detalhe no ponto 9º deste artigo.

1. O Presidente sabe, como todos, que não existe prova nenhuma contra o réu.

Nenhum chefe de estado teria tempo de ler a parte do processo sobre Battisti liberado pela Itália (outra parte desse processo permanece sigilosa), pois consta de quase 1.500 páginas, mas há várias dúzias de pessoas qualificadas que se têm pronunciado sobre isso. O mais enfático foi o Senador Suplicy, um dos políticos mais prestigiosos e de mais ilibada história no Continente, que é respeitado até pelos próprios jornais italianos.

Todos eles coincidem em que não há nenhuma prova e não foi apresentada nenhuma testemunha real.

2. O STF está dividido.

A mídia diz que “O STF votou pela extradição” (sendo muito infrequente que diga “a maioria do STF votou pela extradição”) porque faz questão de mostrar seu desprezo contra a parte esclarecida do Tribunal. Mas quem votou a extradição é uma maioria, muito apertada: 5 contra 4.

Todo chefe de estado tem a obrigação de prestigiar os melhores membros dos outros poderes. Os juízes que votaram contra a extradição são conhecidos por sua conduta profissional séria e discreta, por suas decisões geralmente acertadas, e até por ter assumido o corajoso dever de denunciar a criação de uma ditadura do judiciário. Eles merecem o respeito do Presidente, que deve honrar seu parecer. Só para lembrar: um dos juízes que votou contra a extradição, Eros Grau, possui uma história de luta e doação, tendo sido vítima da barbárie militar durante a ditadura.

3. Uma decisão errada pode acabar com nossa ainda precária democracia.

Encorajar um parecer arbitrário e mal intencionado de uma instituição, seja qual for, reforça a capacidade dessa instituição para sentir-se impune e avançar na direção do golpe e da ditadura.

A usurpação da cúpula do STF ao anular um refúgio concedido pelo poder executivo é um ato nunca visto na história de Europa e das Américas, contrário ao bom senso, ao direito internacional, ao conhecimento da situação política que precisa quem concede ou nega refúgio, e à tradição (pelo menos teórica) de que o judiciário deve proteger o cidadão contra a exorbitância do estado. Depois que o caso Battisti esteja concluído, os defensores de Direitos Humanos devem trabalhar para que essa intromissão do judiciário no executivo seja declarada inexistente. Não sei como isso pode ser feito, mas acredito que um caminho seja promover uma ação nas cortes internacionais.

Se a extradição de Battisti fosse aceita, o poder executivo estaria estimulando um grupo de juízes, alguns dos quais são famosos por sua vocação golpista, pela apologia dos torturadores, pela negação do direito à sexualidade, pela intolerância religiosa, pelo envolvimento em numerosos escândalos, por ter sido alvo de uma tentativa de impeachment (a segunda na história do Brasil), e por muitos outros fatos irregulares. Alguns desses fatos foram denunciados, na frente das câmaras de TV, pelo juiz Joaquim Barbosa. Até uma revista atualmente célebre por sua subserviência à Itália tem publicado (numa época anterior a este conflito, é claro) a desaparição de uma menina dentro da fazenda da família de um dos juízes favoráveis a extradição.

Em síntese: o Presidente sabe que decidir contra Battisti é decidir em favor de juízes de uma índole jamais vista no Brasil recente. Enfim, seria abrir as portas à mais absoluta barbárie.

4. Uma decisão errada degradaria a imagem do país.

O Presidente se esforça em mostrar a imagem de um país moderno, tolerante e progressista. Teoricamente, esse é o objetivo do PNDH-3. Se Battisti fosse extraditado, passaria a imagem de um país cartorial e leguleio, que despreza o direito de asilo, que tem um governo temeroso da mídia, e dos politiqueiros corruptos. Aliás, um governo que procura reconhecimento internacional não pode implodir o sistema de relações internacionais.

Lembrem que, em fevereiro de 2009, quando Itália pediu repetidamente à União Européia um documento contra o refúgio de Battisti, os países membros (apesar do neofascismo que domina na maioria deles) deram uma gargalhada ante tamanha bufonada. Finalmente, para acalmar a histeria, autorizaram uma reunião do Parlamento Europeu, que conseguiu um quorum menor de 8%! Aliás, quase todos os que assistiram eram italianos de diversos grupos fascistas ou social-democratas. O Presidente tem muita clareza de que não podemos ser cúmplices de um governo que seus próprios cúmplices europeus desprezam.

5. O Presidente cuida da dignidade de seu povo.

A Itália humilhou o Brasil de todas as maneiras possíveis. Todos conhecem os famosos atos de provocação e insulto, proferidos pelas maiores autoridades políticas, judiciais e diplomáticas da Itália. O ex-terrorista ministro da defesa italiano chegou a dizer que gostaria de torturar Battisti. Tarso Genro, o melhor ministro que já teve o Brasil em sua história recente, foi qualificado de cretino e pateta, um jargão que nunca foi usado na história das relações internacionais, nem mesmo entre os emissários dos povos bárbaros dos séculos 6º e 7º. A correspondência de Hitler com seus inimigos (por exemplo, Churchill e Stalin) mostra muito mais decoro.

A política se baseia, lamentavelmente, em interesses e não em valores, mas isso também tem limites. Nenhum governo pode humilhar-se ao extremo de obedecer a uma máfia internacional, a um bando de hooligans descontrolados.

6. O Presidente sabe reconhecer o talento.

Não devemos confundir os arranjos políticos guiados pela conveniência, com os sentimentos íntimos que um dirigente pode nutrir. O Presidente valoriza o talento e, num caso como este, tem oportunidade de comparar os que o possuem e os que não.

a) Juristas. Todos os grandes juristas brasileiros, os pesquisadores do direito que são respeitados no mundo de fala hispano-portuguesa, defendem o asilo político para Battisti, e criticam a decisão da cúpula do tribunal (Vide). Também está nessa situação a maioria dos membros da OAB, os consultores jurídicos dos órgãos públicos, os verdadeiros defensores da justiça.

Há alguns “juristas” que estão contra Battisti, mas eles são figurinhas desgastadas: advogados de porta de cadeia que galgaram fama e dinheiro graças à política, a favores dos militares ou a sua mentalidade confessional. Outros se beneficiaram da influência de suas famílias ricas, ou de país juristas que também ganharam prestígio graças aos favores dos fascistas de outra geração.

b) Políticos. Os senadores e deputados que apóiam Cesare são aquelas figuras ilibadas, sobre cuja história não pesa nenhuma suspeita, nenhum ato confuso. Isto também vale para outros países: o mais saudável e prestigioso da política francesa se manifestou em favor de Cesare e encheu as ruas de Paris quando o governo conservador aceitou o pedido italiano de extradição. Aliás, o Presidente não pode esquecer que o partido ao qual pertence, o PT, que o levou ao poder, apoiou de maneira unânime a decisão de Tarso Genro de conceder asilo a Battisti.

Seus inimigos são: aqueles que propõem a censura na Internet, os chefes dos mais volumosos sistemas de corrupção, os que promovem os massacres contra o MST, os que gerenciam o trabalho escravo, os que chegaram até os cargos executivos mais altos para fazer crescer suas empresas. Há até o caso de um parlamentar acusado por um romancista de planejar a esterilização das mulheres nordestinas.

c) Mídia. A grande mídia, salvo a revista Isto É e alguma outra, ataca Battisti com a maior sanha. Essa mídia também fustiga o governo por qualquer afastamento da linha ortodoxa neoliberal, apesar de que esses desvios são pequenos.

d) Intelectuais. Battisti tem sido apoiado por prêmios Nobel como Gabriel Garcia Márquez, por presidentes de ONGs tão prestigiosas como a italiana Antígone e pela francesa Liga dos Direitos do Homem, por escritores mundialmente premiados como Fred Vargas e mais algumas dúzias de romancistas e ensaístas franceses, e por aristas célebres, como a mítica atriz Jeanne Moreau.

e) Instituições Diversas. Organizações progressistas estão todas contra a extradição. Esse é o caso das principais ONGs brasileiras de DH. Por sua vez, estão a favor da mesma as seitas que pregam a intolerância, os mercadores da fé, e os que têm assombrado o mundo com sua violência sexual.

6. O Presidente sabe que os inimigos de Battisti são também os inimigos do Brasil.

Com efeito. Entre os inimigos do Brasil estão os partidos políticos que leiloaram o patrimônio nacional e, pior ainda, gastaram os trocados recebidos no leilão. Estão os que usam a calúnia e a difamação de maneira sistemática, os racistas que se opõem à lei de igualdade racial, os que praticam o genocídio seletivo de favelados. Mesmo dentro da base de apóio do governo, os que se manifestaram pela extradição são os mais corruptos e repulsivos.

7. Aceitar a extradição violaria o Tratado Brasil-Itália que ele é obrigado a obedecer.

Com efeito. O tratado proíbe a extradição de pessoas que corram risco de perseguição, de abuso de seus direitos humanos, de violação de sua integridade física ou mental. Tudo isso aconteceria com Cesare se for devolvido a Itália, como provei num artigo recente.

8. O Presidente cuida, sem dúvida, a coerência de seus atos.

Deve reconhecer-se que o Presidente Lula possui um grande carisma entre os populares, mas ele não teria conseguido o poder sem milhares de militantes que lutassem por sua vitória, embora ele nunca faça referência a isso. E dentro desses militantes, há muitos “Battistis”. Porque Battisti defendeu os mesmos valores pelos quais a esquerda brasileira lutou, com ou sem senso estratégico, com ou sem sucesso, mas com grande coragem, sinceridade e humanismo.

Não teria nenhum sentido apoiar a candidatura de Dilma Rousseff, representante, como outros, desse humanismo, e ao mesmo tempo condenar a morrer numa masmorra italiana a alguém que fez a mesma coisa em seu país, na mesma época. A diferença entre os dois casos é esta:

No Brasil, apesar de que os crimes contra humanidade foram mais cruéis que na Itália, tentou-se re-estabelecer a paz com uma anistia. É verdade que, atualmente, os torturadores e genocidas perceberam que eles próprios não estão fora do risco de serem julgados e querem ser incluídos na Lei de Anistia. Na Itália, torturadores e algozes (cuja truculência foi, é verdade, menor que no Brasil) se ergueram em heróis, e não apenas se recusam a dar uma anistia, mais ainda exacerbam o sentimento de vendeta.

9. UMA RAZÃO PRÁTICA: IMPOSSÍVEL COMUTAR A PRISÃO PERPÉTUA.

Até onde eu sei, o jurista Dalmo de Abreu Dallari foi o único que indicou o maior obstáculo que o Tratado coloca contra a extradição: a prisão perpétua não poderia ser comutada pelos italianos, mesmo se eles quisessem. Sabemos que existe má vontade do governo, que Mastella prometeu que faria cumprir a pena até a morte, etc. Mas algumas pessoas podem dizer que isso não basta, que são puras intenções. Bom, há algo mais forte que intenções: o sistema jurídico italiano NÃO PERMITE QUE UMA CONDENAÇÃO TRANSITADA EM JULGADO SEJA REVISTA. Não é um problema ético, social, psicológico... nada disso. É um problema jurídico superobjetivo.

O relator “pediu” que a prisão perpétua não seja aplicada, pois ela é proibida no Brasil. Não sabemos se o relator ignorava a tal ponto a legislação italiana. Mas, seja como for, esse pedido NÃO pode ser cumprido. Suponhamos que o Tribunal de Cassação Italiano tiver a maior boa vontade, e decidisse comutar a pena de Battisti. Para fazer isso, deveria violar a lei: a pena de ergástolo não pode ser revista quando passou por todas as instâncias do julgamento. Alguém pode pedir a um tribunal que viole a Lei?

Ora, é possível que, em décadas futuras, um novo presidente anistie a Cesare: isso ninguém sabe. Ou que ele seja assassinado na prisão (o mais provável). Mas tudo isso é divagação. O único verdadeiro é que não há ferramentas jurídicas que permitam mudar a sentença; o pedido do relator para que Battisti não deva cumprir o ergástulo é uma formalidade que não pode ser atendida, mesmo se Itália tivesse uma ótima boa vontade.

A AGU está procurando argumentos sólidos, segundo diz a imprensa, que não possam ser contestados no futuro. O Tratado oferece pelo menos 4. Mas o maior argumento, em minha modesta opinião de curioso não especialista, é a IMPOSSIBILIDADE DE COMUTAR O ERGÁSTULO.

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Carlos Alberto Lungarzo foi professor titular da UNICAMP até aposentadoria e milita em Anistia Internacional (AI) desde há muitos anos. Fez parte de AI do México, da Argentina e do Brasil, até que esta seção foi desativada. Atualmente é membro da seção dos Estados Unidos (AIUSA). Sua nova matrícula na Organização é de número 2152711.

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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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