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Fernando Soares Campos

Religião e política são vias doutrinárias favoráveis a fanatismos, extremismos, sectarismos e paixões desenfreadas em geral. Mas, no nosso país, é do futebol que emergem os mais apaixonados torcedores, os mais excêntricos fanáticos.
Da irreverência do povo carioca, surgem figuras como Robson Pereira dos Santos, um ferroviário aposentado, ex-morador do carioquíssimo bairro de Madureira. Seu Rob, como era conhecido no bairro, dizia que fanatismo é coisa de vascaíno ou corintiano. Costumava afirmar: "Fanatismo tem cura. Basta o cara ser tocado por um surto de razão. Aí é só reconhecer que o Flamengo é o melhor e passar pro lado de cá". Ele se declarava portador de "flamenguismo congênito", e explicava a coisa: "Quando a parteira me aparou, eu tava todo rubro pelo sangue da minha mãe e negro como Deus me fez".
Conhecia tudo sobre o clube de sua predileção. Já havia lido tudo sobre a história do Flamengo. Possuía todos os vídeos com as campanhas bem-sucedidas do seu time. Falava de todos os craques, de qualquer época, revelados pelo Flamengo. Naturalmente homenageava o Zico, seu ídolo maior, de uma maneira especial: na sala de visitas de sua casa, destacava-se um pôster gigante do Galinho de Quintino, impermeabilizado, encaixado em moldura artisticamente lavrada.
Muitas histórias envolvendo Seu Rob e a sua paixão pelo Flamengo fazem parte do folclore não só de Madureira, mas de toda a Zona Norte carioca. Porém, dentre as mais exóticas declarações de amor que fez ao Mengão, nada se compara à última manifestação do seu (desculpe, Seu Rob, onde o senhor estiver) fanatismo pelo clube da Gávea.
Certa feita, Seu Rob anunciou que daria uma festa para apresentar aos amigos o maior de todos os troféus, o troféu definitivo. "Inédito! Fui o primeiro a conquistar esse, vocês vão ver que ninguém tem nada parecido", garantia ele, ao formalizar o convite, porém sem revelar o tipo de objeto conquistado, deixando todo mundo muito curioso.
No dia e hora marcada, os convidados foram chegando e se espalhando pela casa. Muitos vestiam camisa do Flamengo. Apesar de haver entre eles alguns torcedores de outros clubes, ninguém se atreveu a comparecer àquela festa vestindo camisa de possíveis adversários do Mengão (seria uma grande desfeita). O anfitrião estava totalmente caracterizado: trajava uniforme completo, até chuteiras calçava.
Bebidas iam sendo servidas pela patroa e pelas filhas (um dos maiores desgostos de Seu Rob era não ter um filho, um varão, o qual pudesse vir a ser jogador de futebol. Do Flamengo, claro). E, ao som de um cavaquinho e instrumentos improvisados, um grupo animava o ambiente cantando sambas e pagodes. De vez em quando os batuqueiros entoavam o hino do clube amado, a pedido de algum bajulador que se empanturrava e se afogava naquela generosa boca-livre.
Lá para as tantas, quando ninguém já nem se lembrava da razão daquela festa, Seu Rob anunciou que iria apresentar o seu troféu.
"A maior homenagem que alguém já prestou ao time do seu coração" - falou emocionado. "Nunca, em parte alguma, alguém prestigiou seu clube de maneira tão completa, insuperável!" - garantiu.
Dirigiu-se ao seu quarto. Não se demorou, logo saiu de lá empurrando uma espécie de carrinho, tipo maca hospitalar, sobre o qual havia um objeto de grandes proporções, coberto por um lençol branco. Seu Rob estacionou o carrinho no centro da sala e, depois de ter todos os convidados concentrados ao redor daquele volume estranho, anunciou: "Agora vocês vão conhecer a maior demonstração de amor que um torcedor já fez ao time do seu coração, em todos os tempos!" - dizendo isso, retirou o lençol com um puxão, à maneira dos políticos quando descerram placas comemorativas.
O "OOOH!!!" uníssono ecoou por toda a vizinhança, seguido de "incrível!", "fantástico!", "extraordinário!".
Foi assim que Seu Rob apresentou a sua urna funerária.
Era um caixão vermelho e preto, tendo o emblema do Flamengo desenhado na altura do coração do futuro defunto. E, quando o insólito ataúde foi aberto, todos puderam apreciar o cintilante revestimento interno: um acolchoado de seda pura, rubro-negro (como não poderia deixar de ser), guarnecido de franjas e botões dourados. Um luxo!
Todos queriam tocar naquele caixão, expressar sua admiração por aquela obra de arte tão original, parabenizar o seu idealizador pela homenagem realmente inédita, pois ninguém ali tinha conhecimento de que tão elevada honra já tivesse sido prestada a quem quer que seja (ou ao que quer que fosse) em qualquer época ou lugar.
Seu Rob falou de suas exigências para a cerimônia fúnebre. Disse que, no lugar de ladainhas, queria o hino do Flamengo e mostrou as velas vermelhas e pretas que deveriam ser usadas no seu velório.
E a mortalha? Ora! seria, certamente, um completo uniforme rubro-negro; completíssimo, de chuteira e tudo o mais. E, finalmente, uma recomendação especial: na sua lápide deveria ser assentado o seguinte epitáfio: "Uma vez Flamengo, sempre Flamengo".
Até o final da festa, ninguém mais falou noutra coisa, só restaram comentários, elogios e parabéns àquele que todos consideraram o mais fiel torcedor da história dos desportos.
Alguém ainda sugeriu que aquele feito deveria figurar no Livro dos Recordes, o Guinness World Records Book, pois, na sua concepção, tratava-se do "recorde" da fidelidade (como se existisse uma espécie de fidelímetro para medi-la).
Quando se acabaram as bebidas e os tira-gostos, também a festa acabou-se. Enquanto a mulher e as filhas já começavam a dar duro na limpeza e arrumação da casa, Seu Rob, sentado no sofá, observava aquele alegre caixão. Aquela coisa parecia encarar a morte literalmente com esportiva. Era como se ele estivesse dizendo para a caveira implacável que não tinha medo da sua foice macabra, visto que iria enfrentá-la com o hino e as cores do Mengão.
Uma semana depois, numa tarde de domingo, o Flamengo jogava a final do campeonato. Por recomendação médica, Seu Rob não deveria assistir a partidas daquela importância, porquanto isso poderia perturbar as suas coronárias, já muito frágeis, protegidas por algumas pontes de safena.
A mulher e as filhas conseguiam mantê-lo afastado do Maracanã, porém não podiam impedi-lo de acompanhar as transmissões dos jogos pelo rádio. Foi assim que, quando o juiz apitou determinando o encerramento da partida, e o locutor, com o seu explícito entusiasmo parcial, anunciou o campeão daquela temporada, as sofridas coronárias de Seu Rob não suportaram tamanha exultação e se arrebentaram de alegria.
Antes, porém, sua família ainda ouviu o grito do guerreiro, categórico, definitivo: MENGÔÔÔ...
Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA
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2 comentários:
Ah! História de framengueiro que acaba com final feliz. não tem graça.
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Mas, meu caro Anônimo, não entendemos como você pode considerar "final feliz" o estouro das coronárias do Seu Rob. Ah, feliz porque inaugurou o caixão, é isso?
Bom, se é assim, preferimos viver mais uns tempos, mesmo que seja desafortunado, malfadado, infausto...
Abraços
Editor-Assaz-Atroz-Chefe
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