Foi doce morrer no Panema
Fernando Soares Campos
Santana de Ipanema. É assim, com
preposição simples, que meus amigos cariocas se referem à minha cidade natal
quando repetem para outras pessoas algumas histórias que costumo contar. Vez ou
outra os corrijo: “É Santana do Ipanema”. Mas não tem jeito, continuam
pronunciando “de Ipanema”.
Eu sempre quis entender o motivo de eles
pronunciarem sem a contração prepositiva, até que concluí que, para os cariocas,
se “Nossa Senhora”, a mãe de Jesus, é “de Copacabana”, então, a avó “Santana”
só poderia ser “de Ipanema”. E os meus amigos concordam com essa minha estranha
dedução.
Acontece que minha cidade natal
localiza-se à margem do rio Ipanema, um curso d’água temporário, como tantos outros
nos sertões nordestinos, e tem Senhora Santana como padroeira, daí o seu nome,
que não tem qualquer relação com a Ipanema dos cariocas.
Sempre contei acontecimentos insólitos
ocorridos em minha terra, casos que testemunhei, vivenciei ou tomei conhecimento
através dos escritos de meus conterrâneos: crônicas, contos e até romances de
escritores santanenses e de cidades circunvizinhas no Médio Sertão alagoano.
Porém, desta vez, vou contar um caso que, de tão surreal, transcende a nossa própria
capacidade de imaginar e criar concebendo intencionalmente situações e
elementos verossímeis; um caso que só poderia acontecer em sonho como esse que
tive, com eventos de características psicodélicas.
Meu sonho começou no sopé do Maciço da
Tijuca, num trecho do Itanhangá, Cidade do Rio de Janeiro. Eu caminhava ouvindo
o canto dos pássaros, apreciando a vegetação florestal e os voos espiralados de
aves marinhas.
Sempre que faço essas caminhadas em
vigília, me lembro da Caatinga, das áreas onde, na infância, eu me embrenhava durante
invernos chuvosos; porém, ali no sonho, aconteceu uma súbita mudança de cenário,
como só ocorre em sonho: passei da margem da floresta para a margem do rio
Ipanema, o Velho Panema, como o chamamos, que nasce em Pernambuco e deságua-se
no São Francisco em Alagoas. O momento também se transformou de intensa
claridade do dia para a penumbra do entardecer. Entretanto esses fenômenos oníricos
não me surpreendem, pois estou acostumado com a dinâmica das alterações de elementos
visuais, estímulos auditivos e movimentos que observo quando a minha consciência,
mesmo levemente ensonada, se projeta para o universo extrafísico.
Continuei caminhando atento aos detalhes
do novo ambiente e, com a audição afinada, escutando o coaxar dos sapos e o cricrilar
dos grilos em harmonia com o murmurinho emanado das águas correntes por entre
as pedras. Eu já estava me acostumando com aquela sinfonia quando um novo som
elevou-se acima da sonoridade da natureza. Uma voz destoada me fazia lembrar
uma antiga canção. Corri a vista ao redor tentando identificar a fonte musical,
logo avistei a silhueta de um homem em pé sobre um lajeiro. Ele cantava
repetidamente uma paródia do refrão de uma cantiga de Dorival Caymmi:
Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema
Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema
Ficou por algum tempo repetindo como
numa gravação defeituosa, até que parou de cantar e continuou olhando o rio.
Cauteloso, subi no lajeiro pela parte
menos íngreme e me aproximei dele. Era negro, alto, magro e aparentava idade em
torno de trinta anos. Ele me viu, mas parecia ignorar a minha presença. Perguntei:
― Por que você canta parodiando uma
música do Caymmi?
Ele me fitou com a fisionomia carregada.
Tive a impressão de que estava avaliando se eu mereceria resposta, ou não. Voltou
a apreciar o rio e falou pausadamente:
― Eu era doido por esse rio... Quer
dizer, ainda sou... Mesmo com toda a imundície que despejam nele hoje em dia,
eu não ia deixar de me banhar nessas águas... Como era bom nadar, dar sapatada,
mergulhar, pegar traíra nas locas...
Emudeceu e continuou olhando as
corredeiras, que refletiam a pouca luminosidade crepuscular. Insisti:
― Mas você não me respondeu
objetivamente. Quero saber o porquê da paródia. Por que você arremeda a música
e letra de Caymmi dizendo que foi doce morrer no Panema?
Em vez de responder, ele me olhou
arregalado e recomeçou o lamentoso canto, agora com a voz empostada, cavernosa:
Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema
Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema
Desisti e resolvi continuar caminhando.
Quando eu já estava a alguns metros de distância, ele me chamou:
― Peraí!
Parei e me voltei.
― Você quer mesmo saber por que eu acho
que foi doce morrer no Panema?
― Sim, foi o que eu lhe perguntei!
― Apois eu lhe digo que só quem morreu
afogado no Panema sabe por causa de que eu digo isso.
― Entendo, mas isso não responde à minha
pergunta.
― Eu sei que essa num era a resposta que
você queria, e num dá pra responder sua pergunta com meia dúzia de palavra.
― Então, fale, estou lhe ouvindo.
― Tem tempo pra escutar a história
completa? Num é pouca coisa não!
― Acho que tenho...
― Apois escute. Ainda me lembro como se
fosse hoje. Eu vi muita gente olhando a cheia lá na Ponte do Padre, uma das
maior cheia daquela época, tinha chovido muito nas cabeceiras naqueles dias. O
riacho da Camoxinga também tava botando água, tinha até uns minino saltando da
ponte. Foi aí que eu resolvi atravessar o Poço do Juá, só pra me amostrar, só pras
pessoas vê que eu nadava que nem um peixe e que não tinha medo daquele mundaréu
d’água.
― Já existia a ponte ligando o centro da
cidade ao Cachimbo Eterno?
― Não, tinha não... Se essa ponte já
tivesse sido feita, eu ia fazer como Carrinho, o índio catimbozeiro. Eu ia
saltar bem no meio da correnteza entre as pedras. Mergulhava e só subia depois
do Poço dos Home.
― Você viu Carrinho fazer isso?!
― Sim! Muitas vez! Cabra macho, aquele! Desde
que eu morri que não saio da beira do Panema. Já faz um bocado de ano que ando
vagando por aí. Vejo tudo que acontece. Conheço cada pedra, cada pé de pau e
cada casa que foi feita na beira do Panema. Sei de todas que ele levou. Vi a
construção da ponte nova... que já tá mais velha do que certos avô que perderam
neto afogado no Panema...
Apesar do esforço que eu fazia para
dissimular a minha inquietação, creio que ele notou que eu já estava ficando
tenso, sobrecarregado por difusos sentimentos, lembranças e dúvidas. Na
tentativa de encurtar os relatos, perguntei:
― O que aconteceu de tão maravilhoso
quando da sua morte, ao ponto de você considerar que foi doce morrer no Panema?
― Acho que é melhor eu parar por aqui.
Se eu lhe contar tudo, você num vai entender nada.
― Posso não entender, mas não vou
descrer da sua história, como muita gente não acreditaria se eu contasse que
falei com uma alma do outro mundo.
― Do outro mundo?! Que outro mundo?! Num
existe outro mundo. O mundo é um só.
Dizendo isso, sentou-se no lajeiro,
apoiou os cotovelos nas pernas e o rosto nas mãos, continuou apreciando o rio.
Eu o acompanhei me sentando ao lado.
― Concordo, o mundo é um só, mas existem
lugares e elementos distintos, diferentes, e até podemos dizer que alguns são,
de certa maneira, opostos entre si. A água, por exemplo, não se mistura com o
óleo.
― Eu já tinha reparado isso... Tem umas
coisa que jogam no Panema, mas ele num aceita, num afunda, fica tudo boiando
nos poço, até que vem uma enchente e arrasta aquela porcariada toda...
― Mas você é de outra época, certo?
― Não. Sou dessa também. Tou vivo que
nem qualquer vivente. A diferença é que eu nunca joguei porcaria pros peixe do
Panema. A única coisa que dei pra eles comer foi as carne que eu carregava.
― Você surrupiava ou comprava carne para
alimentar os peixes?!
Pela primeira vez ele pareceu bem
humorado, respondeu entressorrindo:
― Eu num disse que você num ia entender
o que eu tinha pra contar? Tou falando das carne do meu corpo, que os peixe se
fartaro de comer.
― Ah, sim! Entendi... E como foi isso?
Algum cardume atacou você? Você não resistiu? Mas aqui não dá piranha nem outra
espécie tão agressiva...
― É melhor eu contar do começo. Você
disse que tem tempo pra ouvir.
― Talvez tenha, mas não se preocupe com
isso, continue.
― Quando eu já tava no meio do Poço do
Juá, ainda ouvi o povo gritando: Volta! Volta! Mas aí num dava mais, eu num
tinha mais força pra nadar contra a correnteza... E o pior aconteceu... caí
numa panela. Fique rodando que nem pião, no fundo, até que fui cuspido e desci
boiando que nem tora de mulungu... Num tava vendo mais nada, só sei que num
demorou muito e... Tum!
Silenciou.
― Tum?!
― Isso mesmo. Tum! Bati com a cabeça
numa pedra e me apaguei.
― Desmaiou?
― Nem sei direito se desmaiei ou se morri
na hora com a cabeça rachada que nem boi na matança.
― Por que você não sabe?
― Por causa de que, depois disso, só me
lembro que acordei meio zonzo.
― Acordou?!
― Sim, e, pelo que senti, acho que deve
ter passado uns dois dias, pois as água tavam mais mansa.
― Então, você se acordou na beira do
rio. Foi isso?
― Errado. Eu me acordei no fundo do Poço
dos Home, logo depois daquele estreito das pedra ― apontou para o local.
― Embolou!
― Embolou?! Embolou o quê?!
― Essa sua história acabou de dar um nó
cego na minha cabeça!
Novamente entressorriu.
― Apois eu vou terminar de contar. Aí
você desata esse nó, ou arrocha de vez.
― Faça isso, por favor!
― Quando eu me acordei, também pensei
que tava deitado na beira do rio, mas num entendia por que aqueles peixe todo passavam
na minha frente, daqui pra lá e de lá pra cá ― gesticulou traçando um vaivém
com a mão. ― Foi aí que arreparei que tava no fundo d’água, mas podia respirar
como se tivesse fora. Pensei que tinha virado peixe! ― sorriu aberto.
Aos poucos se tornou novamente sisudo,
abstraído.
― Respirando no fundo d’água... É...
realmente é difícil de acreditar...
― Tá me chamando de mentiroso?
― Não! Nem pensar! Não foi minha
intenção! Mas não posso entender o que você acaba de contar, se há pouco falou
que os peixes comeram suas carnes, seu corpo. Um cardume lhe atacou?
― Vamos fazer uma coisa ― abriu os
braços e inflou o tórax. ― Dê um murro aqui ― bateu no peito.
― Um murro?!
― Você ouviu o que eu disse, vamo lá, dê
um murro aqui ― mais batidas no peito.
― Por que preciso bater em seu peito?
― Você só sabe perguntar?! Vamo lá,
bata!
Cerrei o punho, estendi o braço tomando
distância e girei rápido em direção ao seu tórax...
Vupt!
Foi como se eu tivesse esmurrado o ar: o
braço atravessou seu corpo sem tocar em nada, até me desequilibrei devido ao
impulso, tombando ligeiramente sobre ele, que agora gargalhava.
― Viu? Eu não virei peixe, mas os peixes
passavam por dentro de mim como seu braço passou. Eles iam e vinham, subiam e
desciam, parecia uma festa, que eu logo descobri o motivo. No meu lado tinha um
corpo... Na verdade, era o que restava de um corpo. Olhando pro rosto, num dava
pra saber se era de homem ou de mulher, tava todo roído, esburacado, sem nariz,
sem olho e sem bochecha, e as piabas disputavam o que ainda tinha de queixo. O
resto era quase um esqueleto de calção...
― De calção?!
― Isso mesmo, de calção, o calção que eu
tava vestido quando entrei n’água.
― Então... era... você!
― Não! Era meu corpo. Eu tou aqui,
vivinho da silva.
Respirei fundo para me recompor do
estarrecimento.
― Bem, se as coisas aconteceram dessa
forma, isso contradiz a paródia que você estava cantando. Não posso conceber
que uma cena dessas retrate um fato aprazível, um momento de doçura.
― Se você deixar eu terminar a história,
talvez entenda.
― Sou todo ouvidos.
― E o meu corpo num tinha mais nem
orelha ― gargalhou mais uma vez.
― Muito engraçado, vou guardar pra rir
mais tarde.
― Eu já tinha me levantado quando vi uma
tarrafa descendo devagarinho, passando na minha frente, se fechando bem em cima
do defunto... Os peixe que iam saindo de dentro do esqueleto num tinha mais pra
onde correr, foram laçado, tudo agitado querendo se livrar da rede, que num
demorou muito começou a subir carregadinha. E eu resolvi acompanhar a tarrafa,
fui caminhando atrás dela, bem devagar... Quando vi, já tava fora d’água, bem na
beira do poço. Lá embaixo eu pensava que era de noite, aí ouvi o relógio da matriz
bater dez hora. Olhei prum lado, olhei pro outro e quem eu vejo em cima de uma
pedra descarregando a tarrafa?
― Quem?
― Uma pessoa que eu gostava muito, muito
meu amigo, gente muito boa. Pescamos muito nesse Panema... Num sei se você
conheceu. Bom, nem sei se você é daqui de Santana...
― Sou, não moro mais aqui, mas aqui nasci
e me criei tomando banho no Panema. Se você me disser quem era essa pessoa, pode
ser que eu a tenha conhecido.
― Era o nego Cassiano. Conheceu?
― Acho que não tem santanense com mais
de sessenta anos que não tenha conhecido Cassiano.
― Sendo assim, você que tem cara de mais
de setenta deve ter conhecido.
― Sim, conheci o Cassiano, mas não tenho
mais de setenta. As aparências enganam, ainda falta mais de um lustro pra eu
chegar lá.
― Apois veja, eu cheguei perto dele e falei,
mas ele não respondeu. Eu continuei falando, mas parecia que ele nem tava me
vendo. Eu até fique meio chateado, sem saber o que tava acontecendo. Cassiano
num parava de jogar a tarrafa, ela voltava sempre carregada. Quando o relógio
da igreja bateu doze pancada, o balaio dele já tava cheio. Ele cobriu os peixe
com a tarrafa, botou o balaio na cabeça e saiu caminhando. Eu fui caminhando
atrás. Chegando no Poço do Juá, ele entrou numa canoa. Também entrei.
Atravessemo o rio. Ele botou o balaio na cabeça e subiu pelo beco que dá em
frente a casa de seu Antônio Bulhões. Dali ele foi até a praça do comércio. Aqui
e ali ele parava e vendia uns dois ou três pescado, até que chegou no bar de Zé
Galego. Lembra onde era?
― Era ali no casarão onde hoje é a Praça
Senador Enéas Araujo. Se ainda existisse, seria bem em frente ao Bar da Pitú.
― Quando ele entrou no bar de Zé Galego,
só tinha sobrado uns lambari e duas traíra. Tinha uma que pesava uns três
quilo, com mentira e tudo. Zé Galego comprou a sobra. Cassiano botou o dinheiro
no bolso, pediu pra guardar o balaio lá no bar e foi lá pras bandas da Rua do
Barulho, onde tinha umas casa de jogo. Ele era viciado em jogo de baralho. Tudo
que ganhava ia pra mesa de jogo. Eu fiquei ali mesmo no bar. Tinha gente
jogando sinuca e outros apiruando, me sentei num canto e acabei cochilando...
― Alma também dorme?!
― Dorme e sonha como você ou qualquer
outro vivente.
― Pra mim, foi novidade, eu pensava que
as almas passavam o tempo todo acordadas...
― Me acordei já de noite, o bar tava
cheio, muita gente jogando sinuca e outros bebendo e comendo lambari frito. Era
uma zoada medonha. Zé Galego e o empregado servindo todo mundo, tirando o tempo
da sinuca e se livrando dos cachaceiro. Daí a pouco apareceu uma mulher na
porta da cozinha gritando: “Seu Zé! Seu Zé! Chega aqui!”. Todo mundo se calou,
e ela num parava de gritar. Zé Galego se avexou e foi acudi a mulher, teve
gente que largou o taco e foi junto. E eu fui atrás, queria ver que disgrama
tinha acontecido na cozinha. Quando cheguei lá, tava o maior alvoroço: “O que é
isso, seu Zé?! Como é que isso foi parar aí?!”, a mulher gritava apontando pra
traíra que ela tava tratando. As pessoas começaram a cochichar, teve até quem
se benzeu. Eu passei no meio deles e fiquei bem junto da mulher. O bucho da
traíra tava aberto, escancarado, e você num vai acreditar se eu lhe disser o
que tinha lá dentro...
― Já falei que acredito em tudo que você
me contar, posso até não entender, mas acredito.
― Apois a mulher apavorada apontou pro
bucho da traíra e gritou: “Isso é um olho de gente, seu Zé!”. As pessoas
começaram a falar mais alto, tinha quem dissesse que sim e quem dissesse que
não. Zé galego pediu pra todo mundo se calar. Aí falou: “Dona Maria, isso
não é olho de gente, isso é olho de peixe”. A mulher respondeu: “Olho de
peixe?! Mas, seu Zé, eu trato peixe desde minina, eu conheço olho de peixe e
olho de gente. Nunca vi peixe do Panema com um olho desse tamanho!”.
― E você? O que você achou? Era olho de
peixe ou olho de gente?
― Você num vai me dizer que ainda não
entendeu que olho era aquele, vai?
― Não, não vou, até porque não quero nem
pensar mais nisso. É muito macabro!
― Mas, você querendo ou não, eu vou
terminar a história.
― Então, termine logo. O que foi mais
que aconteceu?
― Zé Galego já tava convencendo todo
mundo de que aquilo era olho de peixe, que aquela traíra tinha arrancado o olho
de um macho maior do que ela, se defendendo dum istrupo.
Mesmo horrorizado com aqueles sinistros
relatos, não segurei o riso.
―
Sabe quem chegou na hora?
― Não, mas, se você disser, eu vou
saber.
― Cassiano. Ele já tinha perdido tudo no
jogo e tava bebo que nem um gambá. Parou na porta da cozinha e perguntou: “O que
é que tá acontecendo aqui?”. Zé Galego pediu pra pessoas se afastar, apontou
pra traíra em cima da banca e disse: “Num é nada demais não. Foi dona Maria que
se espantou com isso aí”. O nego avistou a traíra do bucho rasgado e foi se
achegando pra mais perto, com o zói arregalado e cara de quem viu assombração.
Quando a cara do nego tava quase colada no bucho da trairona, ele falou: “Ne-zin-ho”.
― Ne-zi-nho?!
― Isso mesmo. Ne-zin-ho, assim,
assuletrando.
― E o que foi as outras pessoas
disseram?
―
Num disseram nada. Ficou todo mundo calado.
― E você, o que achou disso tudo?
― O que eu achei?
― Sim, o que você achou do gesto de
Cassiano?
Ele se levantou e olhou ao redor. A
noite já avançava, a pouca claridade com que ainda podíamos contar vinha do
clarão da iluminação pública da cidade e da luz das estrelas. Devagar, ele começou
a descer do lajeiro. Quando tocou a areia, parou e falou sem olhar pra trás:
― Desde aquele dia que eu sei que
Cassiano foi o melhor amigo que eu tive quando era vivente na carne.
― Por que você diz “desde aquele dia”?
Ele virou-se pra mim e respondeu:
―
Por causa de que naquele dia eu entendi que amigo que é amigo reconhece o outro
até mesmo vendo só o olho dele no bucho dum peixe.
Dizendo isso, ele me deu as costas, caminhou
em direção ao Ipanema e, devagar, foi entrando n’água, descendo para o fundo do
rio, sumindo aos poucos, até desaparecer totalmente.
Eu me levantei, apreciei o cintilar das
estrelas e novamente minha audição se aguçou para o coaxar dos sapos, o cricrilar
dos grilos e o murmurinho das
águas correntes por entre as pedras. A orquestração da natureza era concreta,
real, mas a minha imaginação completava a sinfonia com a paródia de uma antiga
canção de Caymmi...
Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema
Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema
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Ilustração: Pintura de Fábio Campos com alterações de AIPC
Ilustração: Pintura de Fábio Campos com alterações de AIPC
– Atrocious International Piracy of
Cartoons
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PressAA
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