quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A “contenção” do século 21, contra o socialismo do século 21

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Traduzido por Caia Fittipaldi

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Greg Grandin - The Nation

Em setembro, o presidente do Equador, Rafael Correa, cumpriu promessa eleitoral e recusou-se a renovar o empréstimo sem custos para os EUA, vigente há dez anos, para uso de uma base aérea localizada na cidade de Manta, na costa do Pacífico – que por uma década foi o principal posto avançado do Pentágono na América do Sul. A evicção foi sério esforço para atender à conclamação da nova Constituição do Equador, de promover “o desarmamento universal” e opor-se à “imposição” de bases militares “[impostas] por alguns países em territórios de outros”. Foi também uma das mais importantes vitórias do movimento de desmilitarização universal, fracamente organizado em torno da International Network for the Abolition of Foreign Military Bases [Rede Internacional para a Abolição de Bases Militares Estrangeiras], desde que protestos de rua forçaram a Marinha dos EUA a retirar-se de Vieques, Porto Rico, em 2003. Correa não deixou passar a oportunidade de fazer piada: “Renovaremos o empréstimo”, disse ele, “se os EUA nos emprestarem terreno para instalar uma base militar em Miami.” Engraçado.

Washington, então, respondeu com um show de força: nos tiram uma, tomamos sete! No final de outubro, os EUA e a Colômbia assinaram acordo pelo qual o Pentágono foi autorizado a usar sete bases militares, além de número ilimitado de “instalações e locações” até agora não especificados. Aquelas bases somam-se à já considerável presença militar de Washington na Colômbia, na América Central e Caribe.

Respondendo às críticas da América do Sul ao negócio com a Colômbia, a Casa Branca insiste em que se trata de mera formalização da cooperação militar que já existia entre os dois países, nos termos do “Plano Colômbia [1]” e que não implica aumento da capacidade militar ofensiva do Comando Sul dos EUA (Southcom).

O Pentágono diz outra coisa – e em 2009 incluiu no seu orçamento pedido para novos fundos para ampliar uma de suas bases, para capacitar-se “para o pleno espectro de operações em toda a América do Sul”, com vistas a “conter”, dentre outras ameaças “governos anti-EUA” e “expandir a capacidade de guerra expedicionária”. Esse linguajar obsceno, copiado do documento do orçamento, parece sugerir ameaças, para justificar maiores gastos militares em tempos de pobreza para tantos nos EUA. Pois a decisão do governo Obama, de seguir avante com o projeto daquelas bases, acelera, de fato, uma perigosa tendência na política dos EUA para o hemisfério.
Nos últimos anos, Washington tem sofrido rápida erosão de sua influência na América do Sul, resultado, sobretudo, do maior prestígio do Brasil, do movimento à esquerda em todo o continente, da crescente influência da China e de a Venezuela estar usando a renda de seu petróleo para promover uma diplomacia multipolar. Amplos movimentos sociais desafiam os esforços de empresas sediadas nos EUA e no Canadá para expandir indústrias de extração, seja de minério, de biocombustíveis, de petróleo, de madeira.

Ano passado, no Peru, massivos protestos de indígenas levaram o Congresso a rejeitar a abertura de vastas áreas da Amazônia a madeireiras, mineradoras e empresas de petróleo estrangeiras, e por todo o continente ativismo similar continua a classificar a América Latina na vanguarda do movimento global antimilitarista e anticorporações.

Esses desafios à autoridade dos EUA levaram o Conselho de Relações Exteriores a declarar “obsoleta” a Doutrina Monroe. Mas aquela doutrina, que por quase 200 anos foi usada para justificar a intervenção militar da Patagônia ao Rio Grande, não expirou, assim, quase “naturalmente”; de fato, ela perdeu potência, uma vez que os patéticos aliados do governo Obama na região continuam a gerar apenas uma mesma mistura venenosa de militarismo e ortodoxia do “livre” mercado, num corredor que vai do México à Colômbia.

A âncora dessa neo-Doutrina Monroe é o Plano Colômbia. Já chegando ao 11º aniversário de um acordo previsto para durar cinco anos, o multibilionário pacote de ajuda militar de Washington, não conseguiu, até agora, controlar sequer o fluxo de drogas ilegais para os EUA. Muito mais coca andina foi convertida em cocaína em 2008 que em 1998, e o preço da droga no varejo é hoje consideravelmente inferior, ajustado pela inflação, do que há dez anos.

Mas o Plano Colômbia, de fato, não trata de drogas; é a edição latino-americana da “Contraguerrilha Global” [ing. Global Counterinsurgency, GCOIN], termo que os estrategistas usam hoje, na tentativa de desvincular-se das conotações religiosas e ideológicas do vocabulário de George W. Bush com sua “guerra global ao terror”, e de focar-se em programa mais modesto, dirigido só para “Estados sem lei” ou “espaços sem governo”, no jargão da “Contraguerrilha Global”.


Iniciado em 2006, quando a ocupação do Iraque começou a desandar, o Plano Colômbia tornou-se a menina-dos-olhos dos teóricos da contraguerrilha, celebrado como bem-sucedida aplicação de “tendência clara e consistentemente construída” por teóricos da envergadura de um David Petraeus, general. Aquelas lições foram incorporadas na grade curricular de vários colégios militares nos EUA e citadas pelo Comando Conjunto do Estado-Maior como modelo para o Afeganistão. Os militares colombianos, com apoio de Washington, minaram as Forças Armadas Revolucionárias (FARC), o mais antigo e forte grupo guerrilheiro da América Latina, mas, segundo o Conselho de Relações Exteriores, garantiu a presença do Estado “em inúmeras regiões previamente controladas por grupos ilegais armados, restabelecendo o poder de governos democraticamente eleitos, construindo e reconstruindo a infra-estrutura pública e impondo o jugo democrático da lei”. O Plano Colômbia, em outros termos, teria oferecido não apenas um mapa do caminho até o sucesso, mas como o próprio sucesso. “É como se a Colômbia fosse o que o Iraque deveria ser”, escreveu Robert Kaplan, no Atlantic, “nos melhores sonhos dos EUA.”

Tradicionalmente, em muitas guerras antiguerrilhas, o estágio “limpo” sempre implica negação verossímil de qualquer relacionamento com esquadrões da morte –, como o comprovam a Operação Fênix no Vietnã, ou Mano Blanca em El Salvador. O governo Bush estava em andamento, quando o Plano Colômbia foi dado por pronto e entrou em operação; e, segundo Scott Wilson do Washington Post, serviu para acobertar as atividades de paramilitares de direita, frouxamente organizados como Forças de Autodefesa Unidas, em espanhol, AUC. “O argumento naquele momento, sempre exposto em encontros privados”, escreve Wilson, “foi que os paramilitares – responsáveis pela maioria dos assassinatos políticos na Colômbia – ofereceram a força que o exército colombiano ainda não construíra.” Logo depois, veio a etapa de “ocupação” – quando houve massivo movimento de apropriação de terras, pelos grupos paramilitares e seus financiadores. Fraude e violência – “ou você vende a terra, ou compraremos da viúva”, como conta a história daqueles dias –, combinadas com o envenenamento de pastagens e plantações, converteram em refugiados milhares de camponeses. Os paramilitares, com seus aliados narcotraficantes, controlam hoje cerca de 10 milhões de acres, praticamente metade da terra mais fértil do país.

Depois de algumas áreas do país terem sido pacificadas, começou a etapa de “construir” o Estado. Tecnicamente, os EUA definem a AUC colombiana como organização terrorista, um dos pés do tripé do narcoterrorismo (com as FARC e os narcos) que se supõe que o Comando Sul dos EUA exista para combater. Mas o Plano Colômbia não implica apenas reforço para os assaltos dos paramilitares – apesar de muito recalcitrante, além de caríssimo; ele também cria uma via pela qual a guerra perpétua fica definida como “política pública”; os paramilitares, portanto, acabam por ser definidos como o próprio Estado.

Sob a cortina de fumaça de uma anistia negociada com a intermediação do governo, condenada por grupos de direitos humanos nacionais e internacionais, para institucionalizar a impunidade, os paramilitares colombianos assumiram o controle administrativo de centenas de municípios, estabelecendo o que o cientista social colombiano León Valencia chama de “verdadeiras ditaduras municipais”, consolidando as invasões de terras e aprofundando os laços com os narcotraficantes, com as elites agrárias e seus representantes políticos. O aparelho de inteligência da Colômbia, que não para de crescer, está infiltrado pelos interesses dessa mistura de esquadrões da morte e narcotraficantes, como também o aparelho judiciário e o Congresso: mais de 40 deputados do partido governante na Colômbia estão sob investigação, acusados de manter laços políticos e comerciais estreitos com a AUC.

O Plano Colômbia, em outras palavras, financiou o movimento exatamente oposto ao que está em andamento nos vizinhos Equador, Bolívia e Venezuela, nos quais movimentos progressistas trabalham aplicadamente para “refundar” suas respectivas sociedade sob parâmetros sociais mais democráticos e inclusivos. Em vez de uma “democracia participativa” que a esquerda latino-americana está oferecendo, o presidente Álvaro Uribe da Colômbia só oferece “segurança democrática” – uma espécie de engodo social local, pelo qual, aos que se submetam a uma nova ordem, prometem-se segurança em bairros povoados de yuppies americanizados e estradas “seguras”; e à sociedade civil que se oponha a esse “projeto” só se oferecem intimidações e assassinatos.

A Colômbia continua a ser o pior Estado repressor da América Latina. Mais de 500 sindicalistas foram executados, desde que Uribe assumiu a presidência. Recentemente, 195 professores foram assassinados, sem que ninguém jamais tenha sido preso pelos crimes. E os militares são acusados de mais de 2.000 assassinatos de civis – cujos cadáveres são vestidos em uniformes de campanha, para comprovar “progressos” na luta contra as FARC.

Parece também que muitos militantes da direita não são talhados para a vida que a “Paz Uribista” oferece. Para o centro de pesquisas Nuevo Arco Iris, que trabalha em Bogotá, têm eclodido inúmeras “miniguerras civis” entre grupos que, todos, consideram-se “herdeiros” da AUC, e disputam o controle do espólio local, em vários locais. Com tudo isso, há quem ainda elogie o Plano Colômbia.

No vôo que o trazia de volta para casa de uma recente reunião em Bogotá da “Contraguerrilha Global”, um ex-comandante do Comando Sul do Exército dos EUA, escreveu, em seu blog, que “a Colômbia é país que nenhum turista deve deixar de conhecer, vitorioso depois de uma longa guerra contra guerrilheiros perigosos, a apenas duas horas de vôo de Miami. Temos muito a aprender com o sucesso do governo Uribe.”


Analisada à luz da escalada da guerra no Afeganistão, o apoio do governo Obama ao negócio das bases colombianas parece confirmar o mesmo tipo de avaliação frouxa e tendenciosa de “ameaças” contra os EUA, que levou a converter a “guerra longa” contra o radicalismo de islâmicos, em guerra muito mais ampla, cujo fim parece dever ser a implantação de um mundo sem crimes – depois da vitória dos EUA “contra todas as guerrilhas”, quero dizer, depois do “fim” de uma guerra sem fim, como Andrew Bacevich escreveu recentemente.

Pouco depois da queda de Bagdá, Washington tentou envolver toda a América Latina no conflito. Em outubro de 2003, forçou a OEA a incluir corrupção, migração dos sem-documentos, lavagem de dinheiro, desastres naturais e provocados, AIDS, degradação ambiental, pobreza, invasão de programas de computador, além de terrorismo e tráfico de drogas, na relação de “ameaças à segurança”. Em 2004, um estrategista do Colégio Militar do Exército propôs que o Plano Colômbia fosse “exportado” para toda a América Latina – o que Donald Rumsfeld tentou fazer mais adiante, no mesmo ano, em encontro dos ministros de Defesa, no Equador. A ideia foi rejeitada; Chile e Brasil, dentre outros países, recusaram-se a subordinar seus militares – como havia sido feito na Guerra Fria –, ao comando militar dos EUA.

Então, os EUA recuaram para as trincheiras, e puseram-se a lutar a guerra ampla, em campo mais estreito: criaram um corredor de segurança, da Colômbia, pela América Central, até o México. Com uma mistura de tratados e projetos, todos numa mesma caçarola, como a “International Law Enforcement Academy” e a “Merida Initiative”, Obama está dando continuidade às políticas de seus predecessores, gastando milhões para integrar a região, do ponto de vista militar, político, de inteligências e até – considerando leis inspiradas no “Patriot Act” –, também os sistemas judiciários.

O processo pode ser mais facilmente entendido como esforço para aumentar o raio do Plano Colômbia e criar uma infraestrutura supranacional de combate a guerrilhas em todo o continente. Dado que há “fusão” entre os terroristas e criminosos latino-americanos, como se lê em edição recente da revista Pentagon's Joint Force Quarterly, “a luta de contraguerrilhas exigirá fusão também do nosso lado”.


Ao mesmo tempo, esquemas como o Mesoamerican Integration and Development Project estão usando financiamentos do Banco Mundial e do BID para sincronizar as redes de comunicação e de transmissão de energia do México, América Central e Colômbia, misturando tratados de livre comércio entre EUA e países centro-americanos e, vez ou outra, também o ainda não assinado Tratado de Livre Comércio Colombiano, para formar um só grande “acórdão”. Thomas Shannon, principal enviado de Bush à América Latina e embaixador de Obama no Brasil, chamou essas iniciativas de “blindar o NAFTA”.

“Fusão” é boa palavra para essa integração, porque a mistura de economia neoliberal e diplomacia de antiguerrilha é mistura explosiva.

Um dos efeitos do Plano Colômbia foi ter diversificado a violência e a corrupção endêmicas e “acasalá-las” com o tráfico de cocaína, com os cartéis da AL e mexicano, com facções militares assumindo o comando da exportação da droga para os EUA. Esse ciclo de violência é reforçado pelo rápido avanço das operações industriais de mineração, hidrelétricas, usinas de biocombustível e exploração de petróleo – que sempre criam revoltas e tumulto social onde se implantam, porque envenenam terra e água e porque, por abrirem os mercados nacionais para a agroindústria dos EUA, destroem economias locais e geram miséria. O deslocamento, a criação de miseráveis locais cria, assim, todas as ameaças que a “grande guerra” deveria combater; ou provoca revolta social, que acaba por ser manipulada pelos “vingadores” aos quais a “grande guerra” dá poderes.

Por toda a América Latina, uma nova geração de ativistas continua a fazer avançar o movimento por uma democracia global, que sofreu grave abalo depois nos EUA como resultado do 11/9. Mas da mesma geração têm saído importantes lideranças norte-americanas para organizações que lutam, também nos EUA, pela preservação do meio ambiente, defesa dos povos originais, direitos humanos e religiosos, que trabalham para preservar uma agenda compreensiva e sustentável de justiça social.

Mas no corredor Mexico-Colômbia, esses ativistas enfrentam o que bem se pode chamar um bio-paramilitarismo, um renascimento da velha aliança entre anticomunismo e agronegócio, ambos com seus respectivos esquadrões da morte, energizadas pelo atual prestígio das indústrias agro-extrativistas.

Na Colômbia, comunidades afro-colombianas e nativas combatem os paramilitares que roubam terras para cultivar cana-de-acúcar para produzir etanol, e têm sido expulsas de suas terras por mercenários e soldados [ver, sobre isso, Teo Ballvé, “The Dark Side of Plan Colômbia” (“O Lado Escuro do Plano Colômbia), 15/6/2009]. Do Panamá ao México, pequenos agricultores e camponeses têm sido alvo dos mesmos tipos de ataques. Na província de Cabañas, em San Salvador, por exemplo, esquadrões da morte executaram quatro líderes comunitários – três, no mês de dezembro – que se opunham aos planos da mineradora Pacific Rim Mining Company, sediada em Vancouver, Canadá, de explorar uma mina de ouro existente naquela região.

E em Honduras, organizações de direitos humanos relatam que fazendeiros locais recrutaram 40 mercenários membros da AUC Colombiana, para trabalharem como seguranças privados, imediatamente depois do golpe que sequestrou o presidente Manuel Zelaya.

Esse golpe foi provocado, em parte, pela aliança que Zelaya havia feito com sacerdotes do movimento “Teologia da Libertação” e ambientalistas, que protestavam contra o desflorestamento causado por mineradoras e plantadores de cana-de-açúcar.

Apenas um mês antes do golpe, Zelaya – em resposta a um inquérito do qual resultaram várias acusações contra a empresa Goldcorp (também com base em Vancouver) por ter contaminado o Vale Siria, em Honduras – assinou lei que tornava indispensável a aprovação das comunidades, para a concessão de autorização para funcionamento de novas empresas de mineração em Honduras; além disso, também ordenou o fechamento de minas que utilizassem cianeto e mercúrio. Com o sequestro de Zelaya, todas essas leis foram anuladas.

Zelaya também tentou quebrar o acordo vigente na região, pelo qual o petróleo extraído em Honduras era vendido aos EUA em troca apenas de gasolina e diesel, com preços impostos pelo monopólio. Associou Honduras à Petrocaribe – espécie de Opep da região, que garante petróleo venezuelano barato a seus oito países-membros – e assinou um contrato competitivo com a empresa Conoco Phillips.

Tudo isso acendeu contra Zelaya e seu governo a ira das empresas Exxon e Chevron, que dominam o mercado centro-americano de combustível. Depois das controversas eleições presidenciais de 29/11, Honduras saiu completamente do radar da imprensa comercial-corporativa – e a repressão cresceu sem qualquer controle. Desde que o Departamento de Estado dos EUA reconheceu a validade daquela “eleição”, cerca de dez importantes líderes oposicionistas foram executados – outros cinco, no mínimo, foram assassinados nos cinco meses anteriores.

Nada disso teria necessariamente de ser assim. A América Latina não representa qualquer grave risco militar. Nenhum dos países latino-americanos está trabalhando para construir bombas atômicas, nem jamais impediu o acesso de qualquer nação a fontes vitais de recursos. A Venezuela continua a fornecer petróleo aos EUA. Obama é popular na América Latina, e a maioria dos governos, inclusive os de esquerda, acolheriam com bons olhos uma diplomacia desmilitarizada, que não falasse tanto de “terror” e “terroristas” e desse prioridade à redução da pobreza e da desigualdade – exatamente o tipo de “novo multilateralismo” de que Obama falou na campanha eleitoral.

Contudo, apesar de a América Latina não representar real ameaça, não há qualquer incentivo para que os latino-americanos superem as forças que, elas sim, opõem-se à modernização das relações hemisféricas. “Obama” – disse importante diplomata argentino, com ares de desilusão – “resolveu que a América Latina não vale qualquer empenho. Obama entregou a América Latina à direita.”


A Casa Branca poderia ter trabalhado com a OEA para restaurar a democracia em Honduras. Em vez disso, depois de meses de sinais pouco claros, Obama capitulou ante os senadores do Partido Republicano e reconheceu o regime golpista e assassino lá imposto. Washington poderia tentar traçar alguma nova política econômica hemisférica, que equilibrasse melhor os reclamos dos povos latino-americanos por igualdade e desenvolvimento, e os interesses empresariais. Mas os Democratas ainda são o partido de Wall Street, e, pouco depois da posse, Obama esqueceu qualquer promessa de renegociar o NAFTA. Com as bênçãos de Washington, o FMI continua a empurrar países latino-americanos em direção à liberalização de suas economias. Em dezembro, Arturo Valenzuela, secretário-assistente de Estado de Obama para o Hemisfério Ocidental, provocou escândalo na Argentina, ao ‘exigir’ que o país voltasse ao clima de investimentos de 1996 – o que equivale, aproximadamente, a Buenos Aires ‘exigir’ que os EUA “reinflem” a última bolha de Greenspan.

O governo Obama pode reconsiderar o Plano Colômbia e o acordo sobre a base militar do Pentágono. Mas isso exigiria reconsiderar uma “guerra às drogas” que já se estendeu além de todos os prazos razoáveis, que já atravessou décadas, que já custou um trilhão e continua a devorar dólares... Mas Obama tem outras guerras das quais precisa encontrar a porta da saída – ou não, se escolher, como parece já ter escolhido, “aprofundar” cada vez mais aquelas guerras.

Sem querer fazê-lo, ou sem saber como operar para atender às importantes reivindicações dos latino-americanos – normalizar as relações com Cuba, por exemplo, ou fazer avançar a reforma das leis de imigração –, a Casa Branca está adotando postura cada vez mais antagônica.

Hilária Clinton, depois de visita do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad ao Brasil, “alertou” os latino-americanos para que “pensassem duas vezes” sobre “as consequências de aproximar-se do Irã”. A Bolívia denunciou o comentário como ameaça, o Brasil cancelou visita do enviado de Obama, Valenzuela; e até a Argentina, que não é simpática ao Iran, deu sinais de irritação com a atitude de Hilária Clinton. O mesmo diplomata argentino que citei acima, disse-me: “O governo Obama e a secretária Hilária jamais falariam nesse tom a qualquer país europeu.”

Diplomatas norte-americanos do serviço diplomático interno relatam que os funcionários de alto nível do Departamento de Estado estariam furiosos com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva do Brasil que, nos últimos meses, aproximou-se muito de Hugo Chávez e o tem apoiado na oposição ao crescente militarismo de Washington – sobretudo aos movimentos da Casa Branca para legitimar o golpe em Honduras. Tendo ajudado Evo Morales da Bolívia a superar campanha similar de desestabilização, o Brasil, segundo o principal assessor de Lula para política exterior, Marco Aurélio Garcia, preocupa-se agora com a evidência de que a política de Obama para Honduras esteja “introduzindo na América Latina a teoria do “golpe preventivo” ”. Garcia referia-se, claramente, a uma “variante”, que estaria sendo criada pelo governo Obama, para a AL, da teoria da “guerra preventiva”, de Bush.

Em região que não conhece guerra entre Estados há mais de setenta anos, o Brasil preocupa-se com o aumento de tensões entre Colômbia e Venezuela, decorrente da negociação em torno da base colombiana, comandada pelo Pentágono. A mídia comercial norte-americana focou-se na resposta de Chávez, para quem “ventos de guerra” estariam soprando sobre a América Latina. Mas para Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores de Lula, muito maior responsabilidade sobre o aumento das tensões cabe à diplomacia de Obama. “Chávez”, disse Amorim, “já recuou, depois daquela frase. Falar de guerra – palavra que, a rigor, jamais se deveria pronunciar – é uma coisa. Outra coisa, mais real e bem diferente é a questão das bases militares norte-americanas na Colômbia. Se a Rússia ou o Irã estivessem construindo bases militares na Venezuela, todos também estaríamos preocupados.”

Também há sinais de que a Casa Branca espera que, no próximo round eleitoral na América Latina, os eleitores reinstalarão no poder governos mais cordatos. Em recente viagem a Buenos Aires, por exemplo, o enviado de Obama, Valenzuela, reuniu-se com políticos da extrema direita, mas não se reuniu com líderes da oposição moderada – o que motivou críticas do governo de centro-esquerda da presidenta Cristina Kirschner. Em janeiro, um bilionário de direita, Sebastián Piñera, foi eleito presidente do Chile.

Se o Partido dos Trabalhadores de Lula perder as próximas eleições presidenciais no Brasil – possibilidade que as pesquisas ainda não descartam completamente – a esquerda andina estará ainda mais isolada, apanhada entre o corredor “de segurança” Colômbia-México e governos cada vez mais desejosos de servir aos interesses de Washington na América Latina: teremos a “contenção” do século 21, contra o socialismo do século 21.

Fidel Castro, normalmente otimista, especulou recentemente que, antes de que Obama chegue ao fim do primeiro mandato, “haverá seis ou oito governos de direita na América Latina.”

Até que aconteça, os EUA só contam com uma Doutrina Monroe desossada e com frases cada vez mais ameaçadoras, para usar contra uma região que os EUA habituaram-se a ver com se lhes pertencesse.

[1] Para saber mais, ver Le Monde Diplomatique, fev.-2005, em:
http://diplo.uol.com.br/2005-02,a1063

O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
http://www.thenation.com/doc/20100208/grandin/3


Greg Grandin leciona na New York University. É autor de Fordlandia: The Rise and Fall of Henry Ford's Forgotten Jungle City (2009).

Caia Fittipaldi reside em São Paulo, é formada em Linguística, pela USP, e trabalha como tradutora e editora de texto.

Texto recebido por e-mail da rede castorphoto.

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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