sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Deus e o diabo na cabeça de um só

.


A luta para domar o Mal dentro de nós mesmos. Esta, se não é a única, é, provavelmente, a mais importante virtude humana.

Fernando Soares Campos*

A tentativa de separar Deus do Diabo gera crise existencial?

Deus, em qualquer das formas que possamos nele crer, é amor e ódio, é ignescente lava vulcânica e montanhas de eterno gelo glacial. Deus é doce mel e amargo fel, é o Bem, o Mal e as nuances que os confundem. Depende apenas da forma, da imagem e idéia que fazemos do nosso deus pessoal e intransferível.

Não estou afirmando que Deus é uma invenção humana, refiro-me apenas à maneira como cada um de nós o percebe.

Deus é infinitamente múltiplo, portanto, único (“Vós sois deuses”, João, 10:34. “Vós podeis fazer o que eu faço e muito mais” João, 14:12).

Somos deuses porque há em nós um latente potencial para realizarmos maravilhosos feitos. Tantos já foram realizados porque muitos de nós já consegue fazer uso de uma ínfima parte desse potencial.

Mas Deus não é alguém nem é ninguém. Não é um ser pessoal. Por necessidade fundamentada no nosso atrasado estágio de evolução, inerente ao processo de desenvolvimento e aperfeiçoamento do saber e dos princípios éticos, podemos até personificá-lo, se levarmos em conta a hierarquia necessária ao equilíbrio funcional de todas as coisas. (“Ninguém vai ao Pai, senão por Mim”, João, 14,6).

Deus, por uma de suas infinitas definições, é a soma desses potenciais existentes em todas as coisas, sejam minerais, vegetais ou animais; potenciais disponíveis na alma humana e no âmago da matéria em qualquer de suas formas.

Deus é a Lei Universal, da qual conhecemos muito pouco, ou fazemos questão de conhecer apenas os seus intróitos, mesmo assim interpretando-os conforme o interesse de nossas semiconsciências, apenas o suficiente para nos odiarmos fazendo caras e bocas de amor ao próximo.

Conforme preceitos bíblicos, “nem uma folha cai sem que seja a vontade de Deus”. Acredito que o mais correto é dizer que “nada acontece sem a permissão de Deus”. “Vontade” é força que realiza desejos, ou que se empenha para realizá-los. “Permissão”, neste caso, é conquista da liberdade de ação (boa ou má). “Permissão” aqui não significa o aguardo de ordens superiores, mas a conquista das condições favoráveis à ação. Com a permissão para agir, com a disponibilidade dos elementos adequados ao empreendimento da ação, passamos ao exercício do chamado livre-arbítrio, que se manifesta de acordo com o estágio da formação do caráter personalista.

Ninguém precisa ser fatalista para acreditar na quase inevitabilidade de certos acontecimentos. Porém, para se determinar que um futuro acontecimento venha a ser inevitável, há que se observar a complexidade das causas que o desencadearão. Nada acontece sob o impulso de um fator isolado, como único elemento determinante de um fato. Todos os elementos do Universo funcionam com autonomia da própria vontade, intrínseca ao livre-arbítrio, mas dependentes daquilo que lhes possa ser permitido realizar.

A permissão divina não pressupõe conivência de Deus (ou sua incondicional anuência) com o ato praticado. Deus (a Lei Divina) faculta as ações para que os homens testem a si próprios. Dizem, por exemplo, que o poder corrompe, entretanto o homem que assumir qualquer poder sobre o seu semelhante, a cada exercício desse poder dirá para si mesmo se o poder o corrompeu, ou se apenas lhe revelou seu próprio caráter corrupto, latente em sua alma, contra o qual muitas vezes lutamos. Observe que Jesus, ao nos ensinar a orar, não recomendou que pedíssemos a Deus que não fôssemos tentados, mas que não caíssemos em tentação. “Não nos deixeis cair em tentação.”

A ocasião não faz o ladrão, apenas desperta a tendência à ladroagem, e se esta inclinação não for reprimida (pela lei e pela consciência), o ladrão se desvela.

O estuprador não pode alegar que foi tentado e, por isso, não se conteve. Isso não constitui atenuante ao crime de estupro.

“Nunca me corrompi!”, diria o homem que nunca sofreu a tentação planejada por um corruptor externo, alguém que poderia lhe oferecer privilégios em troca da liberalização do vírus da desonestidade nele incubado, como qualquer agente infeccioso que percorre seu corpo em busca de oportunidade para se manifestar.

Pessoas que ainda não tiveram oportunidade de provar para si mesmas que não se renderiam a propostas indecentes e se autoproclamam honestas até no controle de suas mais irreprimíveis emoções, estas são como virgens numa ilha deserta: quando o cio lhes provoca a fúria do desejo sexual, só lhes resta masturbar-se.

A luta para domar o Mal dentro de nós mesmos. Esta, se não é a única, é, provavelmente, a mais importante virtude humana.

Se algum de nós já não sente qualquer impulso para a prática do Mal, conforme os conceitos ditados pela nossa consciência, contrapondo-o ao que possa vir a ser o Bem, então esse alguém já não pertence à categoria humana, sublimou-se, já alcançou esferas muito mais elevadas, extrapolou a perfeição moral relativa à vida na Terra. Se estiver encarnado aqui entre nós, encontra-se na condição de missionário divino.

E como um missionário divino poderia conviver entre nós, almas potencialmente corruptas? Seria agindo como um ser ainda em conflito com a formação do seu caráter, como nos encontramos aqui na Terra? Não. Ele seria apenas compreensivo, entenderia a fraqueza humana e, por isso, toleraria o criminoso sem justificar o crime cometido.

Essa história de que o Bem sempre vence o Mal é balela, feliz apoteose de novela épica. Na eterna guerra entre o Bem e o Mal nunca haverá vitoriosos, pois não há vitoriosos em guerra alguma. O estado belicoso, por si mesmo, já caracteriza perda (derrota) para ambas as partes.

O término de uma batalha, ou da guerra, não pressupõe êxito de qualquer das partes em conflito. Mas a deflagração da guerra evidencia a derrota dos conflitantes.

Certa ocasião meu analista me perguntou: “O ser humano ri porque se sente feliz, ou se sente feliz porque ri?” “Choramos porque ficamos tristes, ou ficamos tristes porque choramos?”

Naquele momento tive o impulso de dizer que rimos porque nos sentimos felizes e choramos porque ficamos tristes. Mas me contive, pois outros pensamentos assomaram à minha alma semipensante: “O homem fica feliz por suas vitórias no campo de batalha, ou pela derrota do seu adversário?” “Triste porque perdeu a batalha, ou porque aquele adversário venceu?”

Aparentemente, tudo isso aí tem o mesmo sentido. Mas as aparências enganam.

Aquele que se autoproclama honesto até no controle de suas mais irreprimíveis emoções diria que sua felicidade se concentra totalmente em suas próprias vitórias, conquistas, feitos, méritos e supostas virtudes pessoais. Jamais admitiria que um prazer mórbido insiste em comemorar o fracasso alheio, ou chorar pela vitória de outrem, seja a glória de um dos seus desafetos, ou, pior, o triunfo de um daqueles a quem ele chama de “amigo” (talvez isso explique a famosa frase atribuída a Tom Jobim: “No Brasil, sucesso é ofensa pessoal”).

A meu ver, a crise existencial nossa de cada dia está relacionada com esta nossa tentativa de separar Deus do Diabo, aplicando conceitos pessoais, semiconscientes, sobre o Bem e o Mal, sem considerarmos que, dentro de nós, um não existiria sem o outro.

Estamos, como afirmou Sartre, “condenados a ser livres”?

Então... somos livres para viver como condenados?


*Editor-Assaz-Atroz-Chefe

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

.

PressAA

.

Nenhum comentário: