Fernando Soares Campos (*)
Quando eu era criança, lá em Santana do Ipanema (AL), aguardava a chegada do carnaval com maior expectativa que a do meu próprio aniversário, que me lembro ter sido comemorado uma única vez. Tudo funcionava basicamente sob inspiração do que ocorria no Recife: o frevo, as troças, as fantasias, os amores de carnaval, as marchinhas com letras maliciosas ou românticas, como no caso das marchas-rancho. Só não me lembro de inserirem nos festejos momescos as manifestações culturais desenvolvidas nas comunidades rurais, como acontece no Recife, apesar de que o Recife era para nós o espelho de todas as atividades sociais. O Recife era de fato a Capital do Nordeste. Sonhávamos com o Sul Maravilha, que representava o eldorado, mas amávamos mesmo era o Recife de Capiba, o Pernambuco de Arraes (a síntese do nordestino que almejávamos ser).
Mas não estou falando isso movido por profundo saudosismo. Não. Saudades, sim, mas de forma natural, saudável, apenas com o propósito de refletir sobre o passado e estabelecer uma analogia com a alienação que ocorre nos dias atuais.
Vejamos um caso que pode ser tomado como referência da alienação a que me refiro.
Até o início dos anos 1960, o carnaval em minha cidade natal ocorria em três etapas distintas: na parte da manhã os blocos saiam às ruas; no final da tarde, acontecia o corso, desfile de carros lotados de foliões, que espalhavam confete e serpentina e cantavam as novas músicas carnavalescas, as especialmente compostas para aquele ano, e as antigas (as bandas geralmente abriam os desfiles com “Vassourinhas”, o eterno hino do carnaval pernambucano); e à noite, varando a madrugada, acontecia o baile de carnaval no mais importante clube da cidade.
Muitos foliões de hoje são fruto de amores de carnaval. E uma marchinha da época confirma:
Domingo brincarei com você, meu bem,
Segunda-feira brincarei com você, também.
Terça-feira, nem é bom falar,
Brincarei com você até o Sol raiar.
Não sou daqueles que diz que vai, mas não vai,
Na quarta-feira falarei com seu papai!
E no carnaval do ano que vem
Brincarei com você e o neném também!
Na terça-feira de carnaval, lá em minha cidade natal, saía o único bloco com cordão de isolamento, que não tinha nada a ver com os cordões que hoje limitam a participação de foliões que compraram bilhete de entrada, os chamados abadás. Era o bloco das quengas. Quengas de verdade! Raparigas, as mulheres do “baixo meretrício” (as do “alto” frequentavam os bailes do clube).
Meu padrinho, um farmacêutico raparigueiro, que também foi delegado de polícia, organizava o bloco e nele desfilava, na comissão de frente, abrindo alas para as mulheres que nos iniciavam na vida sexual e nos serviam o ano todo.
Naquela época, o cordão de isolamento do bloco das quengas tinha razão de existir, pois as prostitutas, apesar de exercerem relevante papel na nossa sociedade interiorana, eram muito mais discriminadas que nos dias atuais. O meu padrinho à frente do bloco expressava a autoridade moral de quem estaria dizendo: “Elas também merecem ser feliz”, ou “Muitas dessas que fecham as janelas quando passamos morrem de inveja!” (Algumas janelas se fechavam à passagem do bloco das quengas.)
Mas o que tudo isso tem a ver com a alienação nossa de hoje?
É que acabei de ver, em um site lá de minha terra, as manifestações pré-carnavalescas, e observei que agora existem por lá os blocos que comercializam o famigerado kit abadá, para os que querem brincar dentro de cordão de isolamento, “protegidos” por seguranças.
As fotos revelam uma tristeza que nem as marchas-rancho conseguiriam retratar. Posso tentar uma paródia de “Máscara Negra”:
Tanto mico, oh! Quanta alergia, mais de meia dúzia no cordão
Mauricinho tá tocando em homenagem à Patricinha, mas ele é um bundão!
A cidade do Recife é considerada a que mais preserva os valores da cultura popular no Brasil, hoje e sempre. Lembro-me que o mestre Meia Noite, do Daruê Malungo, quando não estava mundo afora apresentando a riqueza da cultura pernambucana e nordestina em geral, dava uma força aos jovens da Bomba do Hemetério. Foi naquele final dos anos 1980 que Meia Noite criou o Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo.
Lembro-me ainda de quando visitávamos a casa do Gilson Santana, o mestre Meia Noite, e ele nos recepcionava com música e dança, com coreografia inspirada em cultura de comunidades africanas, que ele já havia visitado, a convite de povos daquele continente. As moças dançavam para nós, simplesmente maravilhosas, momentos inesquecíveis.
Saudosismo?! Não. Apenas gostaria que tivéssemos mais gente preservando o que há de bom, de justo e de verdadeiro, como fazem os pernambucanos.
Salve! Daruê Malungo, salve!
(*) Editor-Assaz-Atroz-Chefe
Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
.
PressAA
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Quando eu era criança, lá em Santana do Ipanema (AL), aguardava a chegada do carnaval com maior expectativa que a do meu próprio aniversário, que me lembro ter sido comemorado uma única vez. Tudo funcionava basicamente sob inspiração do que ocorria no Recife: o frevo, as troças, as fantasias, os amores de carnaval, as marchinhas com letras maliciosas ou românticas, como no caso das marchas-rancho. Só não me lembro de inserirem nos festejos momescos as manifestações culturais desenvolvidas nas comunidades rurais, como acontece no Recife, apesar de que o Recife era para nós o espelho de todas as atividades sociais. O Recife era de fato a Capital do Nordeste. Sonhávamos com o Sul Maravilha, que representava o eldorado, mas amávamos mesmo era o Recife de Capiba, o Pernambuco de Arraes (a síntese do nordestino que almejávamos ser).
Mas não estou falando isso movido por profundo saudosismo. Não. Saudades, sim, mas de forma natural, saudável, apenas com o propósito de refletir sobre o passado e estabelecer uma analogia com a alienação que ocorre nos dias atuais.
Vejamos um caso que pode ser tomado como referência da alienação a que me refiro.
Até o início dos anos 1960, o carnaval em minha cidade natal ocorria em três etapas distintas: na parte da manhã os blocos saiam às ruas; no final da tarde, acontecia o corso, desfile de carros lotados de foliões, que espalhavam confete e serpentina e cantavam as novas músicas carnavalescas, as especialmente compostas para aquele ano, e as antigas (as bandas geralmente abriam os desfiles com “Vassourinhas”, o eterno hino do carnaval pernambucano); e à noite, varando a madrugada, acontecia o baile de carnaval no mais importante clube da cidade.
Muitos foliões de hoje são fruto de amores de carnaval. E uma marchinha da época confirma:
Domingo brincarei com você, meu bem,
Segunda-feira brincarei com você, também.
Terça-feira, nem é bom falar,
Brincarei com você até o Sol raiar.
Não sou daqueles que diz que vai, mas não vai,
Na quarta-feira falarei com seu papai!
E no carnaval do ano que vem
Brincarei com você e o neném também!
Na terça-feira de carnaval, lá em minha cidade natal, saía o único bloco com cordão de isolamento, que não tinha nada a ver com os cordões que hoje limitam a participação de foliões que compraram bilhete de entrada, os chamados abadás. Era o bloco das quengas. Quengas de verdade! Raparigas, as mulheres do “baixo meretrício” (as do “alto” frequentavam os bailes do clube).
Meu padrinho, um farmacêutico raparigueiro, que também foi delegado de polícia, organizava o bloco e nele desfilava, na comissão de frente, abrindo alas para as mulheres que nos iniciavam na vida sexual e nos serviam o ano todo.
Naquela época, o cordão de isolamento do bloco das quengas tinha razão de existir, pois as prostitutas, apesar de exercerem relevante papel na nossa sociedade interiorana, eram muito mais discriminadas que nos dias atuais. O meu padrinho à frente do bloco expressava a autoridade moral de quem estaria dizendo: “Elas também merecem ser feliz”, ou “Muitas dessas que fecham as janelas quando passamos morrem de inveja!” (Algumas janelas se fechavam à passagem do bloco das quengas.)
Mas o que tudo isso tem a ver com a alienação nossa de hoje?
É que acabei de ver, em um site lá de minha terra, as manifestações pré-carnavalescas, e observei que agora existem por lá os blocos que comercializam o famigerado kit abadá, para os que querem brincar dentro de cordão de isolamento, “protegidos” por seguranças.
As fotos revelam uma tristeza que nem as marchas-rancho conseguiriam retratar. Posso tentar uma paródia de “Máscara Negra”:
Tanto mico, oh! Quanta alergia, mais de meia dúzia no cordão
Mauricinho tá tocando em homenagem à Patricinha, mas ele é um bundão!
A cidade do Recife é considerada a que mais preserva os valores da cultura popular no Brasil, hoje e sempre. Lembro-me que o mestre Meia Noite, do Daruê Malungo, quando não estava mundo afora apresentando a riqueza da cultura pernambucana e nordestina em geral, dava uma força aos jovens da Bomba do Hemetério. Foi naquele final dos anos 1980 que Meia Noite criou o Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo.
Lembro-me ainda de quando visitávamos a casa do Gilson Santana, o mestre Meia Noite, e ele nos recepcionava com música e dança, com coreografia inspirada em cultura de comunidades africanas, que ele já havia visitado, a convite de povos daquele continente. As moças dançavam para nós, simplesmente maravilhosas, momentos inesquecíveis.
Saudosismo?! Não. Apenas gostaria que tivéssemos mais gente preservando o que há de bom, de justo e de verdadeiro, como fazem os pernambucanos.
Salve! Daruê Malungo, salve!
(*) Editor-Assaz-Atroz-Chefe
Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA
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