Segundo a Comissão Pastoral da Terra/CPT, entre 1992 e 1994, a média anual era de 367 ocorrências, envolvendo 214.653 pessoas. Entre 1995 e 1999, esta média aumentou: verificaram-se 667 conflitos com 508.507 pessoas envolvidas. Não obstante, houve uma redução de 5% da média anual de assassinatos relacionados às lutas por terra no governo de Fernando Henrique Cardoso. Isto não indica necessariamente o abrandamento da repressão mas, possivelmente, uma tendência de mudança nos procedimentos coercitivos.
Manuel Domingos
1. Persiste a concentração da propriedade da terra
O presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou, em janeiro de 2001, que a concentração da propriedade da terra no Brasil teria diminuído e que estaria ocorrendo uma verdadeira revolução democrática, produtiva e pacificadora no campo. Entre 1995 e 2000, seu governo teria assentado 482 mil famílias, ou seja, cerca de 2,4 milhões de pessoas. Neste período, 18 milhões de hectares teriam passado das mãos de latifundiários para a de pequenos proprietários. Ao seu ver, isto significava a concretização da “maior reforma agrária do mundo”.
Tais afirmações foram contrapostas por diversas entidades defensoras da reforma agrária, técnicos especializados e parlamentares. De fato, para chegar a estes números, o governo não apenas contabilizou antigos assentamentos como novos, mas reeditou uma prática conhecida na época da ditadura militar: considerou como assentamentos meros processos de regularização fundiária (reconhecimento formal de direitos sobre a terra).
Mesmo que os dados do presidente fossem corretos, caberia observar que o número de trabalhadores rurais tidos como assentados é inferior ao número de trabalhadores que abandonaram o campo em busca de melhores condições de vida. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, entre 1995 e 1999, cerca de 4,2 milhões de pessoas deixaram a zona rural. Tal evasão está indiscutivelmente relacionada com o fato de 54% dos estabelecimentos agrícolas brasileiros apresentarem renda de longo prazo negativa ou nula.[1]
As estatísticas cadastrais revelam uma persistente concentração da propriedade da terra. De acordo com o Instituto de Colonização e Reforma Agrária/INCRA, entre 1992 e 1998, a área ocupada pelos imóveis maiores de 2.000 hectares foi ampliada em 56 milhões de hectares, o que representa três vezes mais que os 18 milhões de hectares que o governo afirma ter desapropriado durante seis anos. A área ocupada por 10% dos maiores imóveis do país cresceu, no período em referência, de 77,1% para 78,6% da área total. Conforme Hoffmann (1998), o índice de Gini, calculado com base nos dados oficiais, saltou de 0,831 para 0,843 (tabela 1).[2]
Refletindo a gravidade da concentração fundiária no Brasil e o vigor do movimento pela democratização da propriedade da terra, ampliaram-se os conflitos agrários. Segundo a Comissão Pastoral da Terra/CPT, entre 1992 e 1994, a média anual era de 367 ocorrências, envolvendo 214.653 pessoas. Entre 1995 e 1999, esta média aumentou: verificaram-se 667 conflitos com 508.507 pessoas envolvidas. Não obstante, houve uma redução de 5% da média anual de assassinatos relacionados às lutas por terra no governo de Fernando Henrique Cardoso. Isto não indica necessariamente o abrandamento da repressão mas, possivelmente, uma tendência de mudança nos procedimentos coercitivos.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra/MST considera que, no ano de 2000, cresceram os despejos, as prisões ilegais e os processos judiciais forjados. Isto sugere que os grandes proprietários, sem abandonar a violência privada, recorrem mais à intervenção formal do Estado. Em 2000, entre os catorze trabalhadores assassinados, onze eram militantes do MST.
2. O governo frente ao mundo rural
O otimismo do governante brasileiro demonstra um esforço sistemático de propaganda visando melhorar sua imagem desgastada. Acusado de menosprezar a economia rural e, em particular, os trabalhadores sem terra e os pequenos produtores, o presidente adotou novos programas de intervenção no quadro fundiário, seguindo a orientação do Banco Mundial. Estes programas integram o que vem sendo designado como “reforma agrária de mercado”, sendo parte destacada de uma proposta mais ampla: a construção de um “Novo Mundo Rural”.
O objetivo explícito do Banco é a atenuação dos efeitos sociais negativos da abertura unilateral, contínua e ostensiva da agricultura brasileira ao mercado internacional, combinada com medidas internas recessivas. O BIRD reconhece que, na primeira década de liberalização (1986-1996), o contingente de pessoas com renda de até U$ 1/dia na América Latina e Caribe cresceu de 59 milhões para 84 milhões. No campo, o agrupamento humano tido como extremamente pobre passou de 45,8% para 52,5% da população rural total, significando um incremento de 10 milhões de pessoas.[3]
A orientação política do governo brasileiro fez com que o país abandonasse a tradição de exportador agrícola e assumisse a condição de grande importador de alimentos. Apesar do aumento do volume da produção agropecuária, era registrada uma queda do valor bruto da produção de R$ 78,3 bilhões, em 1994, para R$ 72,4 bilhões, em 1999, segundo a Confederação Nacional da Agricultura/CNA. Estes dados podem explicar a razão pela qual a área cultivada foi reduzida em 200 mil hectares, na última década. Os efeitos sociais da política agrícola ficaram evidenciados com a necessidade de distribuição de “cestas básicas” a mais de um milhão de famílias da zona rural.
O “Novo Mundo Rural” é uma expressão utilizada para designar tanto as transformações em curso na realidade agrária brasileira quanto um paradigma a ser perseguido. As mudanças teriam como fundamento a introdução de tecnologia, a emergência de novas atividades no meio rural e o surgimento de novas configurações sociais. O progresso técnico, acarretando ganhos de produtividade na agricultura, haveria ensejado a formação de um “excedente de trabalho”. Assim, as famílias de produtores estariam empregando o tempo disponível em atividades não-agrícolas, com o objetivo de complementar suas rendas.
Tal como nos países desenvolvidos, o campo brasileiro teria se transformado em decorrência de grandes e médias empresas agrícolas eficientes, da multiplicação das áreas de lazer e dos sítios residenciais de moradores urbanos. Na determinação do espaço rural, o trabalho propriamente agrícola estaria perdendo importância relativa. Conforme um defensor da construção do “novo mundo rural”, a reforma agrária já não precisaria mais “exibir um caráter estritamente agrícola”.[4]
Cabe, entretanto, observar que o progresso técnico verificado na agricultura brasileira foi bastante centralizado nos grandes empreendimentos. A absorção de tecnologia, na verdade, aprofundou a dicotomia entre a agricultura moderna e a agricultura tradicional, onde predomina a atividade de subsistência. Em 1995, os estabelecimentos com menos de 20 hectares, representando cerca de 70% do total de estabelecimentos, detinham apenas 18,9% dos tratores utilizados na agricultura brasileira. Este panorama se agrava sobremaneira na região Nordeste, que abriga grande parte do contingente de pobres e apresenta um percentual mais elevado de pessoas ocupadas no trabalho agrícola.
Por outro lado, a diversificação de atividades na zona rural concentra-se em áreas restritas e não tem sido de porte a ensejar sólidas oportunidades de emprego para a grande massa de trabalhadores do campo, onde se verificam índices expressivos de pobreza. Entre 1990 e 1997, a proporção de pobres no meio rural aumentou de 39,2% para 58,3% da população total.[5]
Concluindo que a construção do “Novo Mundo Rural” estava em curso no Brasil, em 1996, o governo formula o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), voltado, em tese, para os produtores tidos como mais eficientes e aptos para sobreviver numa agricultura crescentemente dedicada à competição mercantil.
O PRONAF logo incorporou o PROCERA (Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária). Numa postura muito criticada, o governo considerou como praticantes da “agricultura familiar” tanto os trabalhadores assentados quanto os empresários agrícolas modernos. Os assentados diferenciar-se-iam dos últimos apenas pela maior capitalização e conhecimento técnico. A consolidação dos assentamentos aconteceria com a superação destas diferenças. Em conseqüência, pequenos produtores e agricultores patronais passaram a disputar os mesmos recursos.
A adoção do PRONAF baseou-se na idéia segundo a qual o enfrentamento da tendência universal de redução das margens de lucros da agricultura e a emergência do agrobussines deveriam ocorrer através de uma combinação entre a eficiência produtiva e a produção em escala. No caso da produção de grãos, dada a concorrência internacional, somente as grandes e médias empresas teriam chances de sobreviver.
Quanto aos pequenos produtores, suas perspectivas estariam condicionadas à integração a empresas especializadas no atendimento a mercados consumidores cada vez mais sofisticados. Em outras palavras, o pequeno empreendimento deveria voltar-se para a chamada “agricultura de grife”. Neste domínio, a competitividade dos pequenos produtores dependeria de sua capacidade de absorver tecnologias produtivas e organizacionais.
O PRONAF, voltando-se para o estímulo à produção, ignorou os graves problemas de comercialização, em um contexto de depressão econômica. Com os custos de produção em movimento ascendente e os preços de comercialização em movimento inverso, este programa findou levando numerosas famílias a abandonar o campo. Apesar de duramente contestado, persiste como instrumento privilegiado do governo brasileiro na construção do “novo mundo rural”.
3. A “reforma agrária de mercado”
A ótica que orientou a criação do PRONAF passou a dirigir a intervenção do Estado no quadro fundiário brasileiro. Esta intervenção apresentou como novidade a chamada “reforma agrária de mercado”, ou seja, o estímulo a transações de compra e venda da terra, em detrimento da desapropriação dos latifúndios por interesse social, prevista pela Constituição. Para justificar a “reforma agrária de mercado”, o governo arguiu formalmente a lentidão dos processos de desapropriação, os freqüentes casos de superestimação das indenizações de imóveis desapropriados e os custos elevados dos assentamentos.
Não obstante, estas dificuldades eram motivadas pela falta de determinação política do governo. É evidente que cabe ao Estado inibir as práticas corruptas. Quanto à lentidão dos processos, decorria essencialmente da gestão burocrática dos organismos encarregados, a frente dos quais estavam, quase sempre, pessoas desinteressadas pela democratização do acesso a terra. No que diz respeito aos custos elevados dos assentamentos, o próprio governo revelou que haviam sido substancialmente reduzidos: se em 1995, os cofres públicos despendiam R$ 19.412 por família, em 2000, passaram a gastar apenas R$ 9.094.
Assim, a implementação da “reforma agrária de mercado” deve ser compreendida, em primeiro lugar, como a extensão, para o mundo dos trabalhadores rurais, de concepções neoliberais induzidas pelo BIRD. A intenção do Banco era testar a eficiência de sua proposta em países politicamente instáveis, a exemplo da África do Sul e da Colômbia. O Brasil foi incluído, sob a alegativa de que a intensidade das ocupações massivas de terra e a radicalização dos conflitos colocariam em risco os direitos de propriedade privada e os ajustes estruturais. Esta proposta representou também um esforço de contraposição ao MST que, de diversas formas, nos últimos anos, obrigou o governo a usar os instrumentos legais para desapropiar latifúndios e assentar trabalhadores. Para o Banco Mundial, dado os pífios resultados da “reforma agrária de mercado” colombiana, uma experiência exitosa no Brasil seria vital para a pretendida disseminação do modelo em outros países.[6]
A primeira tentativa orientada por esta agência foi o “Projeto-Piloto de Reforma Agrária e Alívio da Pobreza” no Ceará, conhecido como “Reforma Agrária Solidária”. Popularizado como “Cédula da Terra”, o programa foi estendido, em 1997, para outros estados nordestinos (Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Maranhão).
O “Cédula da Terra” adotou, como princípio, a rejeição do “paternalismo das ações do Estado”: o acesso à terra dar-se-ia através de operações normais de compra e venda, com cláusulas de financiamento que permitissem aos beneficiários condições “sustentáveis” de acumulação e melhoria da qualidade de vida. O governo pretendeu que os beneficiários, apesar de “pobres” e “marginalizados”, fossem “atores do processo” e não simples receptores do favor do Estado. Para a melhor defesa de seus interesses, os beneficiários deveriam ser “auto-selecionados” e organizar-se em associações. Os potenciais beneficiários precisariam mobilizar-se para participar do programa.
Os dois grandes objetivos do “Cédula da Terra” seriam, de acordo com o Ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, a alocação de novas fontes de recursos para a reforma agrária e a eliminação da burocracia inerente a vistorias e processos de desapropriação. Como justificativa para o programa o ministro arrolou, entre outros motivos, a necessidade de suprimir a fisionomia ideológica da reforma agrária, a necessidade de “pacificação” do campo, através da negociação direta entre os pretendentes a terra e os grandes proprietários, e a contenção de gastos públicos.
O “Cédula da Terra”, apresentado como “novo modelo de reforma agrária”, foi implantado com rapidez inusual para os padrões da intervenção do Estado no meio rural brasileiro. Entre 1997 e 2000, dispondo de U$ 150 milhões, dos quais U$ 90 milhões tomados de empréstimo ao Banco Mundial, o programa financiou, experimentalmente, a compra de terras para assentamento de 15 mil famílias.
Esta experiência apresentou problemas semelhantes aos que pretendia evitar: sua execução foi marcada por desvios de finalidade, fraudes na emissão de laudos técnicos, superavalorização de imóveis, desinformação dos beneficiários sobre o projeto e os compromissos assumidos...[7]
Não obstante, antes mesmo da conclusão do programa “Cédula da Terra”, o governo enviou ao Congresso Nacional o projeto de criação do “Banco da Terra” que, com algumas modificações, ampliava e consagrava a experiência. Com a aprovação do “Banco da Terra” pelo parlamento brasileiro, em 1999, o executivo passou a direcionar-lhe recursos orçamentários e solicitar empréstimo ao Banco Mundial.
O “Banco da Terra” foi destinado a financiar a aquisição de propriedades e infra-estrutura básica para trabalhadores sem terra ou com terra insuficiente. Os beneficiários deveriam comprovar ter pelo menos cinco anos de prática em atividades agropecuárias. O limite máximo para os financiamentos ficou estabelecido em R$ 40 mil por família, com prazo para pagamento de vinte anos, carência de três anos e taxas de juros diferenciadas de 6 a 10% ao ano, conforme o valor financiado.
As severas contestações ao “Banco da Terra” por parte das entidades representativas dos interesses dos trabalhadores sem terra e dos pequenos produtores dificultaram o apoio do BIRD. As entidades consideraram que as proposições do “Banco da Terra” voltavam-se para os mais aquinhoados e não levavam em conta a difícil realidade do campo. Em razão das críticas foi criado, em 2000, o projeto “Crédito Fundiário e Combate a Pobreza Rural” (CFCP).
Este novo programa, ampliado agora para boa parte do território brasileiro, preservou as intenções originais do “Cédula da Terra” e manteve as mesmas condições de financiamento. Mas fixou o teto para concessão dos empréstimos em R$ 15.000,00, os juros em 6% ao ano e determinou a alienação fiduciária do imóvel financiado. Estabeleceu ainda os seguintes critérios para a seleção dos beneficiários: a) estar organizado em associação legalmente reconhecida, b) possuir renda familiar inferior a R$ 4.300,00 anuais, c) não ter sido anteriormente beneficiário do programa de reforma agrária, d) não ser funcionário público e f) contribuir com 10% dos custos dos investimentos comunitários.
A determinação do governo na formulação do CFCP, o volume dos recursos previstos (R$ 200 milhões, apenas para 2001), a ampliação da área de abrangência e, sobretudo, os cortes nos recursos destinados à desapropriação de latifúndios e assentamento de trabalhadores, deixam poucas dúvidas sobre a intenção de fazer com que a “reforma agrária de mercado” substitua os instrumentos, hoje disponíveis, para atenuar as pressões sociais provocadas pela elevada concentração da propriedade fundiária no Brasil. Esta proposição representa a alternativa do poder para o acesso à terra mediante a desapropriação por interesse social. Conforme os dados oficiais, entre 1998 e 2000, a área desapropriada caiu de 2,2 milhões de hectares para 474 mil e a capacidade de assentamento de 66 mil famílias para 15 mil (tabela 2).
4. Contestações à “reforma agrária de mercado”
As numerosas e generalizadas críticas à “reforma agrária de mercado” podem ser resumidas do seguinte modo:
- A tendência do mercado é a de ensejar a concentração fundiária, não o contrário. O processo de “modernização” da agricultura brasileira tem preservado e mesmo acentuado a histórica concentração da propriedade. Apesar da conhecida disponibilidade de terras agricultáveis no Brasil, cerca de 4,5 milhões de famílias de agricultores persistem sem acesso a terra;
- As negociações de terras são realizadas em condições desiguais. Ao contrário dos grandes proprietários, os trabalhadores interessados em adquirir terras vivem em extrema pobreza. Para garantir o acesso à terra, os beneficiários estão sempre dispostos a aceitar não apenas preços inflacionados como níveis de endividamento mais elevados. Nestas condições, não pode haver a “livre negociação entre as partes”, prevista pelos que conceberam a “reforma agrária de mercado”;
- O alegado processo de “auto-seleção” pretendido pelos programas de financiamento não ocorreu: nas “comissões de seleção” dos beneficiários, compostas de trabalhadores rurais e líderes comunitários, verificou-se a participação de “políticos”. O encaminhamento de listas de selecionados, por vêzes, foi mediado pela prefeitura. No meio rural, profundamente marcado pela dificuldade de distinção entre o interesse coletivo e o interesse individual, predominam as práticas ditas “clientelistas”. Assim, torna-se problemático evitar a ingerência de terceiros na seleção dos beneficiários de um programa de compra de terra;
- A dinamização do mercado, através de financiamento para aquisição de terras, é uma forma de valorizar o latifúndio improdutivo. A experiência do “Cédula da Terra” revelou inclusive o caso de proprietários que tomaram a iniciativa de organizar associações com candidatos à compra da terra para favorecer a negociação. A democratização da propriedade fundiária passa, obrigatoriamente, pela penalização dos latifúndios que não cumprem função social;
- A “emancipação” dos beneficiários do programa, tão logo adquirem a terra, é um artifício para desobrigar o poder público no que diz respeito a responsabilidade de viabilizar a transformação dos assentados em produtores independentes e economicamente consolidados. Sem assistência técnica e frente a uma política agrícola desfavorável, os beneficiários dificilmente poderão saldar suas dívidas. Como a expectativa de vida no campo é curta, parece improvável que possam deixar a seus filhos a terra como herança;
- Ao atribuir ao mercado a função de democratizar o acesso a propriedade, os governantes pretendem eximir o Estado de atribuições legais: a desapropriação dos latifúndios por interesse social é prevista na Constituição brasileira;
- A implementação da “reforma agrária de mercado” foi acompanhada de uma série de iniciativas, objetivando desestimular o vigoroso movimento de trabalhadores sem terra que exige a desapropriação de latifúndios. Entre estas destacam-se a criação de um departamento na Polícia Federal, especializado em “violações da propriedade rural”, a proibição de vistorias em terras ocupadas por trabalhadores e a interdição de acesso a recursos públicos, no caso de entidades envolvidas nas ocupações de latifúndios improdutivos;
- A “reforma agrária de mercado” representa uma maneira disfarçada de ajuda à grande propriedade: permite ao latifundiário capitalizar-se mediante alienação das piores áreas de sua propriedade, recebendo altas quantias, em dinheiro e à vista. Não constitui mera casualidade a experiência ter iniciado no Nordeste brasileiro.
Em resumo, a proposta de “reforma agrária de mercado” impulsionada no governo de Fernando Henrique Cardoso nega aos trabalhadores sem terra ou com pouca terra o acesso à propriedade fundiária. Se é verdade que a agricultura brasileira experimentou grandes transformações nos últimos anos, não significa que tenha perdido seus traços marcantes: o latifúndio, a grande lavoura voltada para o mercado externo e a monocultura.
Manuel Domingos é professor de Ciência Política do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. É doutor em História pela Universidade de Paris.
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[1] ALVES, Eliseu et alii, O Empobrecimento da agricultura brasileira, in Revista de Política Agrícola, Ministério da Agricultura, n. 03, Brasília, 1999.
[2] HOFFMANN, Rodolfo, A Estrutura fundiária do Brasil de acordo com o cadastro do INCRA: 1967-1998, INCRA/UNICAMP, 1998.
[3] Núcleo Agrário da Bancada do PT na Câmara dos Deputados, Reflexões sobre a agricultura e a reforma agrária no contexto de um projeto democrático, popular e soberano para o Brasil, Brasília, 31.08.2001.
[4] SILVA, José Graziano da, Ainda precisamos de reforma agrária no Brasil?, in Ciência Hoje, vol. 27, n. 170, SBPC, São Paulo, abril de 2001.
[5] LEMOS, José de Jesus Sousa – Mapa da pobreza no Brasil : uma contribuição para construir uma pauta de agenda de desenvolvimento econômico sustentável para o país. Fortaleza, setembro de 1999.
[6] Conferência de Agricultura do Banco Mundial, Reforma agrária assistida pelo mercado, 1995.
[7] UNICAMP/USP/NEAD, Programa Cédula da Terra – Relatório de Avaliação Preliminar, 2000.
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