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"Mas a história da política não é a história das palavras,
mas sim a história dos novos significados
que podem ter as palavras."
Alain Badiou
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Colunista
17/12/2013 Um vocabulário seletivo específico e uma linguagem correspondente se consolidaram em relação aos eventos nomeados pela nova palavra mensalão.
Quando pouco ainda se
falava sobre “história conceitual”, isto é, sobre a semântica histórica de
conceitos e palavras, foi publicado o indispensável Palavras-Chave
(um vocabulário de cultura e sociedade) [1ª edição 1976; tradução brasileira Boitempo,
2007], do ex-professor de Cambridge, Raymond Williams (1921-1988).
Ao analisar as mudanças na
significação de 130 palavras-chave como ciência, democracia, ideologia,
liberal, mídia, popular e revolução, Williams argumentava que as questões de
significação de uma palavra estão inexoravelmente vinculadas aos problemas em
cuja discussão ela esta sendo utilizada. E, mais ainda, que o uso dos diferentes
significados de palavras identifica formas diversas de pensar e ver o mundo.
Para ele, a apropriação de um determinado significado que serve a um argumento
específico exclui aqueles outros significados que são inconvenientes ao
argumento. Trata-se, portanto, de uma questão de poder.
Anos mais tarde, através
do precioso Language and Hegemony in Gramsci do cientista político estadunidense, radicado no
Canadá, Peter Ives (1ª edição 2004), soube-se que o filósofo sardenho
desenvolveu o conceito de hegemonia – a formação e a organização do
consentimento – a partir de seus estudos de linguística. Poucos se lembram de
que, por ocasião da unificação italiana (1861), apenas entre 2,5% e 12% da
população falavam a mesma língua. Daí serem previsíveis as enormes implicações
sociais e políticas da unificação linguística, sobretudo o enorme poder de
ajustamento e conformidade em torno da institucionalização de uma língua única
que se tornaria a língua italiana.
Na verdade, não só as
palavras mudam de significação ao longo do tempo, como palavras novas são
introduzidas no nosso cotidiano e passam a constituir uma nova linguagem, um
novo vocabulário dentro do qual se aprisionam determinadas formas de pensar e
ver o mundo.
Mais recentemente, a
leitura tardia do impressionante LTI – A linguagem do Terceiro Reich(1ª.
edição 1947, tradução brasileira Contraponto, 2009), do filólogo alemão Victor
Klemperer (1881-1960), dissipou qualquer dúvida que ainda restasse sobre a
importância fundamental das palavras, da linguagem, do vocabulário para a
conformação de uma determinada maneira de pensar. Está lá:
“O nazismo se embrenhou na carne e
no sangue das massas por meio de palavras, expressões e frases impostas pela
repetição, milhares de vezes, e aceitas inconscientemente e mecanicamente.
(...) A língua conduz o meu sentimento, dirige a minha mente, de forma tão mais
natural quanto mais eu me entregar a ela inconscientemente. (...) Palavras
podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira
despercebida e parecem ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se
faz notar” (p.55).
Vale a epígrafe do LTI
retirada de Franz Rosenzweig (1886-1929): “A linguagem é mais do que sangue”.
Balanço do ano
As referências a Williams,
Ives (Gramsci) e Klemperer são apresentadas aqui para justificar a escolha que
fiz diante da necessidade de produzir um balanço de 2013 em relação ao setor de
mídia.
O que de mais importante
aconteceu no nosso país de 2005 para cá – vale dizer, ao longo dos últimos oito
anos – e se consolidou em 2013 com as várias semanas de julgamento
televisionado, ao vivo, no Supremo Tribunal Federal?
Estou convencido de que
foi a formação de uma linguagem nova, seletiva e específica, com a participação
determinante da grande mídia, dentro da qual parcela dos brasileiros passaram a
“ver” os réus da Ação Penal nº 470, em particular aqueles ligados ao Partido
dos Trabalhadores.
Ainda em 2006 (cf.
capítulo 1 de Mídia: crise política e poder no Brasil;
Editora Fundação Perseu Abramo) argumentei que uma das consequências mais
visíveis da crise política foi o aparecimento na grande mídia de uma série de
novas palavras/expressões como mensalão,mensaleiros,partidos do mensalão,CPI do
mensalão,valerioduto,CPI chapa-branca,silêncio dos intelectuais,homem da
mala,doleiro do PT,conexão cubana,operação Paraguai,conexão Lisboa,república de
Ribeirão Preto,operação pizza,dança da pizza,dentre outros.
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, Fábio Kerche também chamou atenção para a recuperação pela
grande mídia de dois conceitos clássicos de nossa sociologia política –
coronelismo e populismo –, que passaram a ser utilizados na cobertura da crise
política com nova significação desvinculada de suas raízes e especificidades
históricas (cf. “Simplificações conceituais” in
Folha de S.Paulo, 23/3/2006, p. A-3).
O verdadeiro significado
dessas novas palavras/expressões, dizia à época, só pode ser compreendido
dentro dos contextos concretos em que surgiram e passaram a ser utilizadas. São
tentativas de expressar, de maneira simplificada, questões complexas, ambíguas
e de interpretação múltipla e polêmica (aberta). Elas buscam reduzir (fechar)
um variado leque de significados a apenas um único “significado guarda-chuva”
facilmente assimilável. Uma espécie de rótulo.
Exaustivamente repetidas
na cobertura política tanto da mídia impressa como da eletrônica, essas
palavras/expressões vão perdendo sua ambiguidade original pela associação
continuada a apenas um conjunto de significados. É dessa forma que elas acabam
sendo incorporadas ao vocabulário cotidiano do cidadão comum.
Mas elas passam também a
ser utilizadas, por exemplo, nas pesquisas de “opinião pública”, muitas vezes
realizadas por institutos controlados pela própria grande mídia. Esse movimento
circular viciado produz não só aferições contaminadas da “opinião pública” como
induz o cidadão comum a uma percepção simplificada e muitas vezes equivocada do
que realmente se passa.
Relacionei ainda as
omissões e/ou as saliências na cobertura que a grande mídia oferecia da crise
política – evidentes já àquela época –, protegendo a si mesma em relação à destinação
de recursos publicitários e/ou favorecendo politicamente à oposição
político-partidária ao governo Lula e ao Partido dos Trabalhadores (PT).
Algumas dessas omissões foram objeto de denúncia do jornalista Carlos Dorneles,
então na Rede Globo (13/10/2005) e do ombudsman da Folha de S.Paulo
(23/10/2005).
De 2005 a 2013
Nos últimos oito anos, o
comportamento da grande mídia não se alterou. Ao contrário. A crise política
foi se transformando no “maior escândalo de corrupção da historia do país” e
confirmou-se o padrão de seletividade (omissão e/ou saliência) na cobertura
jornalística, identificado desde 2005.
Até 2005, “mensalão” era
apenas “o imposto que pode ser recolhido pelo contribuinte que tenha mais de
uma fonte pagadora. Se o contribuinte recebe, por exemplo, aposentadoria e
salário e não deseja acumular os impostos que irão resultar num valor muito
alto a pagar na declaração mensal, ele pode antecipar este pagamento por meio
de parcela mensal” (ver aqui).
Nos últimos anos
“mensalão” passou a ser “um esquema de corrupção” e tornou-se “mensalão do PT”,
enquanto situações idênticas e anteriores, raramente mencionadas, foram
identificadas pela geografia e não pelo partido político (“mensalão mineiro”).
Como resultado foi se construindo sistematicamente uma associação generalizada,
seletiva e deliberada entre corrupção e os governos Lula e o PT, ou melhor,
seus filiados e/ou simpatizantes.
“Mensaleiro” passou a
designar qualquer envolvido na Ação Penal nº 470, independentemente de ter sido
ou não comprovada a prática criminosa de pagamento e/ou recebimento de
mensalidades em dinheiro “sujo” com o objetivo de se alterar o resultado nas
votações de projetos de lei no Congresso Nacional.
A generalização seletiva
tornou-se a prática deliberada e rotineira da grande mídia e, aos poucos, as
palavras “petista” – designação de filiado ao Partido dos Trabalhadores – e
“mensaleiro”, se transformaram em palavrões equivalentes a “comunista”,
“subversivo” ou “terrorista” na época da ditadura militar (1964-1985).
“Petista” e “mensaleiro” tornaram-se, implicitamente, inimigos públicos e
sinônimos de corruptos e desonestos.
O escárnio em relação aos
“mensaleiros petistas” atingiu o seu auge com a prisão espetaculosa de alguns
dos réus, por determinação do presidente do STF, no simbólico feriado da
Proclamação da República (15 de novembro), antes do transito em julgado da Ação
Penal nº 470, com ampla cobertura ao vivo das principais emissoras de
televisão. Ofereceu-se assim a oportunidade para que articulistas da grande
mídia passassem a citar seletivamente os nomes dos petistas detidos precedidos
do adjetivo “presidiário”.
Da mesma forma, o que
poderia ser questionado como uma prisão arbitrária (antes do trânsito em
julgado; exposição desnecessária em périplo aéreo por três cidades do país;
regime fechado para condenados em regime aberto; substituição arbitrária do
juiz da vara de execuções penais de Brasília, etc.) foi se transformando em “um
privilégio dos mensaleiros petistas”.
Na cobertura oferecida
pela grande mídia esses “privilégios” foram identificados pelas visitas
incialmente permitidas em dias diferentes daqueles dos demais detidos no
complexo da Papuda; pela solicitação de regime diferenciado em função da saúde
precária de um dos “mensaleiros petistas” e pela remuneração elevada do emprego
oferecido (em seguida descartado) a outro.
Sinais de intolerância
Não é necessário mencionar
aqui as inúmeras e pendentes questões – inclusive jurídicas – envolvendo o
polêmico julgamento da Ação Penal nº 470 e os interesses político-partidários
em jogo relativos a situações idênticas e anteriores que, todavia, ainda não
mereceram a atenção correspondente do Poder Judiciário e, muito menos, da
grande mídia.
O ano de 2013 certamente
poderá ser lembrado como aquele em que ocorreu o julgamento da Ação Penal nº
470 e pelo desmesurado papel que a grande mídia desempenhou em todo o processo.
Um vocabulário seletivo específico e uma linguagem correspondente se
consolidaram em relação aos eventos nomeados pela nova palavra “mensalão”.
Tendo como referência os
ensinamentos de Williams, Ives (Gramsci) e Klemperer, vale a pergunta: até que
ponto este vocabulário e esta linguagem influenciam a maneira pela qual alguns
dos envolvidos passaram a ser “vistos” pela população brasileira (ou parte
dela) e contribuem para criar um clima político não democrático, de
intolerância, de ódio e de recusa intransigente a sequer ouvir qualquer posição
diferente da sua?
Para além da formação
seletiva de um vocabulário e de uma linguagem específicas, bastaria relembrar
as declarações do ministro Celso Melo por ocasião do julgamento dos embargos
infringentes: “Nunca a mídia foi tão ostensiva para subjugar um juiz” (ver aqui).
Vale a pena repetir com
Victor Klemperer:
“Palavras podem ser como minúsculas
doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e parecem ser
inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar”.
(*) Venício A. de Lima é jornalista e
sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB
(aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros
(Cerbras) da UFMG e organizador/autor com Juarez Guimarães de Liberdade de
Expressão: as várias faces de um desafio, Paulus, 2013, entre outros livros.
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Leia também...
LEITURAS DE VEJA
Malandro demais se atrapalha
Por Fernando
Soares Campos em 09/10/2007 na edição 454
A revista Veja (edição
2022, de 22/08/2007) publicou uma "pesquisa" cujo propósito seria
"...verificar a percepção dos brasileiros em relação às diferentes cores
de pele". A revista informa que "...o autor da pesquisa submeteu os
entrevistados a um questionário em que eram apresentadas fotografias de
brancos, negros e pardos. As pessoas tinham de associar atributos positivos e
negativos aos indivíduos retratados".
Eis o resultado:
** Inteligência: Brancos (42%),
Negros (22%) e Pardos (10%)
** Honestidade: Brancos (30%), Negros
(26%) e Pardos (14%)
** Modos educados: Brancos (44%),
Negros (22%) e Pardos (9%)
** Preguiça: Brancos (35%), Pardos
(23%) e Negros (9%)
** Criminalidade: Pardos (29%),
Negros (16%) e Brancos (8%)
** Malandragem: Negros (23%) Pardos
(22%) e Brancos (15%)
Diante disso, pergunto eu aqui, fazendo
pesquisa como o tal sociólogo: se as fotos fossem expostas num estande de tiro,
no lugar dos alvos, qual delas viraria peneira?
Porém, vamos
analisar a tal "pesquisa" que a Veja nos apresentou.
Vejamos a correlação entre esses três itens:
Inteligência: Brancos (42%), Negros
(22%) e Pardos (10%)
Preguiçoso: Brancos (35%), Pardos (23%)
e Negros (9%)
Malandro:
Negros (23%) Pardos (22%) e Brancos (15%)
Só na
chibata!
Agora vamos abrir o Houaiss e os
aurélios em geral. Se considerarmos "malandro" interpretando apenas
através de algumas de suas acepções, como, por exemplo, "que ou aquele que
não trabalha, que emprega recursos engenhosos para sobreviver; vadio" ou "que
ou aquele que leva a vida em diversões, prazeres", ou ainda "que ou
aquele que tem preguiça; mandrião, indolente", então os negros deveriam
estar na frente dos brancos no item preguiça, preguiçosos disparados! Pois
foram considerados "malandros". E malandro aqui é sinônimo de vadio.
No entanto, os negros aparecem como menos preguiçosos, e com uma diferença
gritante: Brancos, 39% preguiçosos x Negros, apenas 9% indolentes.
Se considerarmos outros significados da
palavra "malandro", como aquele que é "sagaz, arguto, dotado de
sagacidade; perspicaz, fino; que não se deixa enganar; esperto", aí,
então, por mais que queiramos dissociar essas qualidades da
"inteligência", não podemos. Inteligente e otário não combinam numa
mesma pessoa. E os negros, neste caso, deveriam estar ganhando no item
"inteligência", pois ganham em "malandro"; portanto,
considerando-se este significado da palavra, seriam muito mais inteligentes que
os brancos.
Acontece que, ao invés de perguntar qual
o mais "laborioso", o sujeito preferiu perguntar qual o mais
"preguiçoso", do contrário ficaria difícil associar os negros ao
"malandro". Sim, claro, se são os menos preguiçosos, teriam ganhado
como os mais trabalhadores, lógico! Então seria como dizer que um diligente
trabalhador poderia ser o "malandro" que agora está escondendo o
jogo. Aí, só vai na chibata! Certamente a pergunta sobre preguiçoso está
relacionada àquelas primeiras conotações de "malandro", as que
concluem em "vadio". Portanto, o "malandro" também está
relacionado ao "vadio", ao "preguiçoso". Se o tal
pesquisador tivesse perguntado qual o mais trabalhador, então ganharia o negro,
pois a tal "pesquisa" indica que são os "menos
preguiçosos".
(Para ler artigo completo, clique no título)
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Assaz Atroz
Sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012
"O comunismo é a ideia da emancipação de toda humanidade"
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O filósofo francês Alain Badiou é um homem que não teme riscos: nunca renunciou a defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela história: o comunismo. Em entrevista à Carta Maior, Badiou fala da “ideia comunista” ou da “hipótese comunista”. Segundo ele, tudo o que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado em um mundo onde tudo passou a ter um valor mercantil. Pensador crítico da modernidade, Badiou define o processo político atual como uma “guerra das democracias contra os pobres”.
O filósofo francês Alain Badiou é um homem que não teme riscos: nunca renunciou a defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela história: o comunismo. Em entrevista à Carta Maior, Badiou fala da “ideia comunista” ou da “hipótese comunista”. Segundo ele, tudo o que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado em um mundo onde tudo passou a ter um valor mercantil. Pensador crítico da modernidade, Badiou define o processo político atual como uma “guerra das democracias contra os pobres”.
Eduardo Febbro - Direto de Paris (Carta Maior)
Paris - Alain Badiou não tem fronteiras. Este filósofo original é o pensador francês mais conhecido fora de seu país e autor de uma obra extensa e sem concessões. Filosofia, matemática, política, literatura e até o amor circulam em seu catálogo de produções e reflexões. Sua obra, de caráter multidisciplinar, traz uma crítica férrea ao que Alain Badiou chama de “materialismo democrático”, ou seja, um sistema humano onde tudo tem um valor mercantil.
Este filósofo insubmisso é também um homem de riscos: nunca renunciou a defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela história: o comunismo. Em sua pena, Badiou fala mais da “ideia comunista” ou da “hipótese comunista” do que do sistema comunista em si. Segundo o filósofo francês, tudo o que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado.
Defensor incondicional de Marx e da ideia de uma internacionalização positiva da revolta, o horizonte de sua filosofia é polifônico: seus componente não são a exposição de um sistema fechado, mas sim um sistema metafísico exigente que inclui as teorias matemáticas modernas – Gödel – e quatro dimensões da existência: o amor, a arte, a política e a ciência. Pensador crítico da modernidade numérica, Badiou definiu os processos políticos atuais como uma “guerra das democracias contra os pobres”.
O filósofo francês é um teórico dos processos de ruptura e não um mero panfletário. Ele convoca com método a repensar o mundo, a redefinir o papel do Estado, traça os limites da “perfeição democrática”, reinterpreta a ideia de República, reatualiza as formas possíveis e não aceitas de oposição e coloca no centro da evolução social a relegitimação das lutas sociais.
Alain Badiou propõe um princípio de ação sem o qual, sugere, nenhuma vida tem sentido: a ideia. Sem ela toda existência é vazia. Com mais de 70 anos, Badiou introduziu em sua reflexão o tema do amor em um livro brilhante e comovedor, no qual o autor de “O ser e o acontecimento” define o amor como uma categoria da verdade e o sentimento amoroso como o pacto mais elevado que os indivíduos podem firmar para viver. Sua lucidez analítica o conduz inclusive a dizer que o amor, porque grátis e total, está ameaçado pelo mundo contemporâneo.
Revoluções árabes, movimento dos indignados, mobilização crescente dos grupos que estão contra a globalização, a luta ou a oposição contra as modalidades do sistema atual se multiplicaram e sofisticaram. Analisando o que ocorreu, o que você diria hoje a todos esses rebeldes do mundo para que sua ação conduza a uma autêntica construção?
Eu diria a eles que, para mim, mais importante que a consigna da anti-globalização, a qual parece sugerir que, por meio de várias medidas, pode-se re-humanizar a situação, incluindo a re-humanização do capitalismo, é a globalização da vontade popular. Globalização quer dizer vigor internacional. Mas essa globalização internacional necessita de uma ideia positiva para uni-la e não só a ideia crítica ou a combinação de desacordos e protestos. Trata-se de um ponto muito importante. Passar da revolta à ideia é passar da negação á afirmação. Somente no plano afirmativo poderemos nos unir de forma duradoura.
Um dos princípios de sua filosofia consiste em dizer que uma vida que não está regida pelo signo da ideia não é uma vida verdadeira. Agora, como defender hoje essa ideia sob a ameaça do hiper-consumo, das falsidades e injustiças da democracia parlamentar e em um mundo onde nossa relação com o outro passa pela relação com o objeto e não com as ideias ou com os indivíduos? No mundo contemporâneo, a ideia é o produto e não a relação humana.
A verdadeira vida é uma vida que aceita estar sob o signo da ideia. Dito de outro modo, uma vida que aceita ser outra coisa do que uma vida animal. Alguns dirão que há valores transcendentes, religiosos, e que é preciso submeter o animal; outros dirão, ao contrário, que devemos nos libertar desses valores transcendentes, que Deus está morto, que viva os apetites selvagens. Mas, entre ambas, há uma solução intermediária, dialética, que consiste em dizer que, na vida, através de encontros e metamorfoses, pode haver um trajeto que nos liga à universalidade. Isso é o que eu chamo “uma vida verdadeira”, ou seja, uma vida que encontrou ao menos algumas verdades.
Chamo "ideia" esse intermediário entre as verdades universais, digamos eternas para provocar um pouco os contemporâneos, e o indivíduo. Que é então uma vida sob o signo da ideia em um mundo como este? Faz falta uma distância com a circulação geral. Mas essa distância não pode ser criada só com a vontade, faz falta algo que nos ocorra, um acontecimento que nos leve a tomar posição frente ao que se passou. Pode ser um amor, um levante político, uma decepção, enfim, muitas coisas. Aí se põe em jogo a vontade para criar um mundo novo que não estará baseado na ordem do mundo tal como é, com sua lei de circulação mercantil, mas sim em um elemento novo de minha experiência.
O mundo moderno se caracteriza pela soberania das opiniões. E a opinião é algo contrário à ideia. A opinião não pretende ser universal, é minha opinião e vale tanto quanto a opinião de qualquer outra pessoa. A opinião se relaciona com a distribuição de objetos e a satisfação pessoal. Há um mercado das opiniões assim como há um mercado das ações financeiras. Há momentos em que uma opinião vale mais do que outra; mais tarde essa opinião quebra como um país. Estamos no regime geral do comércio da comunicação no qual a ideia não existe. Inclusive se suspeita da ideia e se dirá que ela é opressiva, totalitária, que se trata de uma alienação. E por que isso ocorre? Simplesmente porque a ideia é grátis. Ao contrário da opinião, a ideia não entra em nenhum mercado. Se defendemos nossa convicção, o fazemos com a ideia de que é universal. Essa ideia é, então, uma proposta compartilhada, não se pode colocá-la à venda no mercado. Mas como tudo o que é grátis, a ideia está sob suspeita.
Pergunta-se: qual é o valor do que é grátis? Justamente, o valor do grátis é que não tem valor no sentido das trocas. Seu valor é intrínseco. E como não se pode distinguir a ideia do preço do objeto a única existência da ideia está em um tipo de fidelidade existencial e vital para a ideia. A melhor metáfora para isso é encontrada no amor. Se queremos profundamente a alguém, esse amor não tem preço. É preciso aceitar os sofrimentos, as dificuldades, o fato de que sempre há uma tensão entre o que desejamos imediatamente e a resposta do outro. É preciso atravessar tudo isso.
Quando estamos enamorados, trata-se de uma ideia e isso é o que garante a continuidade desse amor. Para se opor ao mundo contemporâneo pode-se atuar na política, mas estar cativado completamente por uma obra de arte ou estar profundamente enamorado é como uma rebelião secreta e pessoal contra o mundo contemporâneo. Esse é o principal problema da vida contemporânea. Estabeleceu-se um regime de existência no qual tudo deve ser transformado em produto, em mercadoria, inclusive os textos, as ideias, os pensamentos. Marx havia antecipado isso muito bem: tudo pode ser medido segundo seu valor monetário.
Você é um dos poucos filósofos que defende o que você mesmo chama “a ideia comunista”. Como é possível defender a ideia comunista quando seu conteúdo histórico foi desastroso.
Penso que o conteúdo histórico das ideias sempre pode ser declarado desastroso. Os democratas nos falam da democracia, mas se olhamos de perto a história das democracias, ela está cheia de desastres. Para tomar o exemplo mais elementar, se tomamos a Primeira Guerra Mundial, ela foi lançada por democratas, democratas alemães, ingleses e franceses. Foi um massacre inimaginável, o qual já se demonstrou esteve ligado a apetites financeiros nas colônias africanas, apetites que não diziam respeito aqueles que seriam massacrados mais tarde. Houve milhões de mortos e de sacrificados em condições espantosas e, aceite-se ou não, isso é parte da história das democracias. Se interrogamos o conjunto das experiências históricas veremos que todo o mundo tem sangue até as orelhas.
No que se refere à palavra “comunista” em si, da mesma maneira que ocorre com a palavra “democracia”, sempre se pode argumentar que ambas tem sangue até as orelhas. Mas, por acaso, é preciso sempre inventar outra palavra? Tomemos, por exemplo, o cristianismo. O cristianismo é São Francisco de Assis, a santidade verdadeira, o advento da ideia de uma verdadeira generosidade para com os pobres, a caridade, etc.,etc. Mas, do outro lado, também é a inquisição, o terror, a tortura e o suplício. Por acaso vamos dizer que é um crime alguém se chamar de cristão? Ninguém diz isso. Eu defendo uma espécie de absolvição dos vocábulos. Eles têm o sentido dado pela sequência histórica da qual falamos.
De fato, o comunismo conheceu duas sequências histórias. A sequência histórica do século XIX, quando a palavra foi inventada e propagada para designar uma esperança histórica humana fundamental, a esperança da igualdade, da emancipação das classes oprimidas, de uma organização social igualitária e coletiva. Depois há outra sequência muito diferente onde se experimentou o comunismo, ou seja, se construiu uma forma de poder particular que buscou coletivizar a indústria e essas coisas, mas que, no final, se tornou uma forma de Estado despótico.
Eu proponho que não se sacrifique a palavra “comunismo” por causa desta segunda sequência, mas sim que ela seja resgatada com base na primeira sequência, possibilitando assim a abertura de uma terceira sequência.
Nesta terceira sequência, a palavra “comunismo” significaria o que sempre significou: a ideia de uma organização social totalmente distinta da que conhecemos e que já sabemos que está dominada por uma oligarquia financeira e econômica absolutamente feroz e indiferente aos interesses gerais da humanidade. Eu proponho então voltar ao comunismo sob a forma da ideia comunista: a ideia comunista é a ideia da emancipação de toda a humanidade, é a ideia do internacionalismo, de uma organização econômica mobilizando diretamente os produtores e não as potências exteriores; é a ideia da igualdade entre os distintos componentes da humanidade, do fim do racismo e da segregação e também é a ideia do fim das fronteiras.
Não esqueçamos que as fronteiras são uma grande característica do mundo contemporâneo. O comunismo é tudo isso. Se alguém inventar uma palavra formidável para designar tudo isso, que não seja a palavra comunismo, eu aceito. Mas a história da política não é a história das palavras, mas sim a história dos novos significados que podem ter as palavras. Em geral se opõe a palavra “democracia” à palavra “comunismo”. Eu digo que uma palavra não é mais inocente do que a outra. Não lutemos pela inocência das palavras. Discutamos sobre o que significam e o que significa aquilo que eu digo.
Agora chegamos a Marx, ou melhor dizendo, aos dois Marx: o Marx marxista e o Marx de antes do marxismo. Qual dos dois você reivindica?
Marx e marxismo têm significados muito distintos. Marx pode significar a tentativa de uma análise científica da história humana com base nos conceitos fundamentais de classe e de luta de classe, e também a ideia de que a base das diferentes formas que a organização da humanidade adquiriu no curso da história é a organização da economia. Nesta parte da obra de Marx há coisas muito interessantes como, por exemplo, a crítica da economia política. Mas também há outro Marx que é um Marx filósofo, que vem depois de Engels e que tenta mostrar que a lei das coisas deve ser buscada nas contradições principais que podem ser percebidas dentro das coisas. É o pensamento dialético, o materialismo dialético. No concreto, há uma base material de todo pensamento e este se desenvolve através de sistemas de contradição, de negação. Este é o segundo Marx. Mas também há um terceiro Marx que é o militante político. É um Marx que, em nome da ideia comunista, indica o que fazer: é o Marx fundador da Primeira Internacional, é o Marx que escreve textos admiráveis sobre a Comuna de Paris ou sobre a luta de classes na França.
Há pelo menos três Marx e o que mais me interessa, reconhecendo o mérito imenso de todos eles, é o Marx que tenta ligar a ideia comunista em sua pureza ideológica e filosófica às circunstâncias concretas. É o Marx que se pergunta pelo caminho para organizar as pessoas politicamente na direção da ideia comunista. Há ideias fundamentais que foram experimentadas e que ainda permanecem e, em cujo centro, encontramos a convicção segundo a qual nada ocorrerá enquanto uma fração significativa dos intelectuais não aceite estar organicamente ligada às grandes massas populares. Esse ponto está totalmente ausente hoje em várias regiões do mundo. Em maio de 68 e nos anos 70, este ponto foi abandonado. Hoje pagamos o preço desse abandono que significou a vitória completa e provisória do capitalismo mais brutal.
A vida concreta de Marx e Engels consistiu em participar nas manifestações na Alemanha e em tentar criar uma Internacional. E o que era a Internacional? A aliança dos intelectuais com os operários. É sempre por aí que se começa. Eu chamo então a que comecemos de novo: por um lado com a ideia comunista e, por outro, com um processo de organização sob esta ideia que, evidentemente, levará em conta o conjunto do balanço histórico, mas que, em certo sentido, terá que começar de novo.
Caído, derrotado no abismo ou simplesmente ferido? Na sua avaliação, em que fase se encontra o capitalismo: em seu ocaso, como acreditam alguns, ou somente vivendo um recesso devido a suas enormes contradições internas?
O capitalismo é um sistema de roubo planetário exacerbado. Pode-se dizer que o capitalismo é uma ordem democrática e pacífica, mas é um regime de depredadores, é um regime de banditismo universal. E digo banditismo de maneira objetiva: chamo bandido a qualquer um que considere que a única lei de sua atividade é seu próprio proveito. Mas um sistema como este que, por um lado, tem a capacidade de se estender e, por outro, de deslocar seu centro de gravidade é um sistema que está longe de estar moribundo.
Não é o caso de acreditar que, pelo fato de estarmos em uma crise sistêmica, nos encontramos à beira do colapso do capitalismo mundializado. Acreditar nisso seria ver as coisas através da pequena janela da Europa. Creio que há dois fenômenos que estão entrelaçados. O primeiro é a derrocada da segunda etapa da experiência comunista, a falência dos Estados socialistas. Essa falência abriu uma enorme brecha para o outro termo da contradição planetária que é o capitalismo mundializado. Mas também abriu novos espaços de tensões materiais. O desenvolvimento capitalista de países do porte da China e da Índica, assim como a recapitalização da ex-União Soviética tem o mesmo papel que o colonialismo no século XIX. Abriu espaços gigantes de manobra, de clientela de novos mercados.
Estamos vivendo agora esse fenômeno: a mundialização do capitalismo que se fez potente e se multiplicou pelo enfraquecimento de seu adversário histórico do período precedente. Esse fenômeno faz com que, pela primeira vez na história da humanidade, se possa falar realmente de um mercado mundial. Esse é um primeiro fenômeno. O segundo é o deslocamento do centro de gravidade. Estou convencido de que as antigas figuras imperiais, a velha Europa, por exemplo, a qual apesar de sua arrogância tem uma quantidade considerável de crimes que ainda aguardam perdão, e os Estados Unidos, apesar do fato de ainda ocupar um lugar muito importante, são na verdade entidades capitalistas progressivamente decadentes e até um pouco crepusculares. Na Ásia, na América Latina, com a dinâmica brasileira, e inclusive em algumas regiões do Oriente Médio, vemos aparecer novas potências. O sistema da expansão capitalista chegou a uma escala mundial, mas o sistema das contradições internas do capitalismo modifica sua geopolítica. As crises sistêmicas do capitalismo – hoje estamos em uma grave crise sistêmica – não têm o mesmo impacto segundo a região. Temos assim um sistema expansivo com dificuldades internas.
Mas esses novos polos se desenvolvem segundo o mesmo modelo.Paris - Alain Badiou não tem fronteiras. Este filósofo original é o pensador francês mais conhecido fora de seu país e autor de uma obra extensa e sem concessões. Filosofia, matemática, política, literatura e até o amor circulam em seu catálogo de produções e reflexões. Sua obra, de caráter multidisciplinar, traz uma crítica férrea ao que Alain Badiou chama de “materialismo democrático”, ou seja, um sistema humano onde tudo tem um valor mercantil.
Este filósofo insubmisso é também um homem de riscos: nunca renunciou a defender um conceito que muitos acreditam ter sido queimado pela história: o comunismo. Em sua pena, Badiou fala mais da “ideia comunista” ou da “hipótese comunista” do que do sistema comunista em si. Segundo o filósofo francês, tudo o que estava na ideia comunista, sua visão igualitária do ser humano e da sociedade, merece ser resgatado.
Defensor incondicional de Marx e da ideia de uma internacionalização positiva da revolta, o horizonte de sua filosofia é polifônico: seus componente não são a exposição de um sistema fechado, mas sim um sistema metafísico exigente que inclui as teorias matemáticas modernas – Gödel – e quatro dimensões da existência: o amor, a arte, a política e a ciência. Pensador crítico da modernidade numérica, Badiou definiu os processos políticos atuais como uma “guerra das democracias contra os pobres”.
O filósofo francês é um teórico dos processos de ruptura e não um mero panfletário. Ele convoca com método a repensar o mundo, a redefinir o papel do Estado, traça os limites da “perfeição democrática”, reinterpreta a ideia de República, reatualiza as formas possíveis e não aceitas de oposição e coloca no centro da evolução social a relegitimação das lutas sociais.
Alain Badiou propõe um princípio de ação sem o qual, sugere, nenhuma vida tem sentido: a ideia. Sem ela toda existência é vazia. Com mais de 70 anos, Badiou introduziu em sua reflexão o tema do amor em um livro brilhante e comovedor, no qual o autor de “O ser e o acontecimento” define o amor como uma categoria da verdade e o sentimento amoroso como o pacto mais elevado que os indivíduos podem firmar para viver. Sua lucidez analítica o conduz inclusive a dizer que o amor, porque grátis e total, está ameaçado pelo mundo contemporâneo.
Revoluções árabes, movimento dos indignados, mobilização crescente dos grupos que estão contra a globalização, a luta ou a oposição contra as modalidades do sistema atual se multiplicaram e sofisticaram. Analisando o que ocorreu, o que você diria hoje a todos esses rebeldes do mundo para que sua ação conduza a uma autêntica construção?
Eu diria a eles que, para mim, mais importante que a consigna da anti-globalização, a qual parece sugerir que, por meio de várias medidas, pode-se re-humanizar a situação, incluindo a re-humanização do capitalismo, é a globalização da vontade popular. Globalização quer dizer vigor internacional. Mas essa globalização internacional necessita de uma ideia positiva para uni-la e não só a ideia crítica ou a combinação de desacordos e protestos. Trata-se de um ponto muito importante. Passar da revolta à ideia é passar da negação á afirmação. Somente no plano afirmativo poderemos nos unir de forma duradoura.
Um dos princípios de sua filosofia consiste em dizer que uma vida que não está regida pelo signo da ideia não é uma vida verdadeira. Agora, como defender hoje essa ideia sob a ameaça do hiper-consumo, das falsidades e injustiças da democracia parlamentar e em um mundo onde nossa relação com o outro passa pela relação com o objeto e não com as ideias ou com os indivíduos? No mundo contemporâneo, a ideia é o produto e não a relação humana.
A verdadeira vida é uma vida que aceita estar sob o signo da ideia. Dito de outro modo, uma vida que aceita ser outra coisa do que uma vida animal. Alguns dirão que há valores transcendentes, religiosos, e que é preciso submeter o animal; outros dirão, ao contrário, que devemos nos libertar desses valores transcendentes, que Deus está morto, que viva os apetites selvagens. Mas, entre ambas, há uma solução intermediária, dialética, que consiste em dizer que, na vida, através de encontros e metamorfoses, pode haver um trajeto que nos liga à universalidade. Isso é o que eu chamo “uma vida verdadeira”, ou seja, uma vida que encontrou ao menos algumas verdades.
Chamo "ideia" esse intermediário entre as verdades universais, digamos eternas para provocar um pouco os contemporâneos, e o indivíduo. Que é então uma vida sob o signo da ideia em um mundo como este? Faz falta uma distância com a circulação geral. Mas essa distância não pode ser criada só com a vontade, faz falta algo que nos ocorra, um acontecimento que nos leve a tomar posição frente ao que se passou. Pode ser um amor, um levante político, uma decepção, enfim, muitas coisas. Aí se põe em jogo a vontade para criar um mundo novo que não estará baseado na ordem do mundo tal como é, com sua lei de circulação mercantil, mas sim em um elemento novo de minha experiência.
O mundo moderno se caracteriza pela soberania das opiniões. E a opinião é algo contrário à ideia. A opinião não pretende ser universal, é minha opinião e vale tanto quanto a opinião de qualquer outra pessoa. A opinião se relaciona com a distribuição de objetos e a satisfação pessoal. Há um mercado das opiniões assim como há um mercado das ações financeiras. Há momentos em que uma opinião vale mais do que outra; mais tarde essa opinião quebra como um país. Estamos no regime geral do comércio da comunicação no qual a ideia não existe. Inclusive se suspeita da ideia e se dirá que ela é opressiva, totalitária, que se trata de uma alienação. E por que isso ocorre? Simplesmente porque a ideia é grátis. Ao contrário da opinião, a ideia não entra em nenhum mercado. Se defendemos nossa convicção, o fazemos com a ideia de que é universal. Essa ideia é, então, uma proposta compartilhada, não se pode colocá-la à venda no mercado. Mas como tudo o que é grátis, a ideia está sob suspeita.
Pergunta-se: qual é o valor do que é grátis? Justamente, o valor do grátis é que não tem valor no sentido das trocas. Seu valor é intrínseco. E como não se pode distinguir a ideia do preço do objeto a única existência da ideia está em um tipo de fidelidade existencial e vital para a ideia. A melhor metáfora para isso é encontrada no amor. Se queremos profundamente a alguém, esse amor não tem preço. É preciso aceitar os sofrimentos, as dificuldades, o fato de que sempre há uma tensão entre o que desejamos imediatamente e a resposta do outro. É preciso atravessar tudo isso.
Quando estamos enamorados, trata-se de uma ideia e isso é o que garante a continuidade desse amor. Para se opor ao mundo contemporâneo pode-se atuar na política, mas estar cativado completamente por uma obra de arte ou estar profundamente enamorado é como uma rebelião secreta e pessoal contra o mundo contemporâneo. Esse é o principal problema da vida contemporânea. Estabeleceu-se um regime de existência no qual tudo deve ser transformado em produto, em mercadoria, inclusive os textos, as ideias, os pensamentos. Marx havia antecipado isso muito bem: tudo pode ser medido segundo seu valor monetário.
Você é um dos poucos filósofos que defende o que você mesmo chama “a ideia comunista”. Como é possível defender a ideia comunista quando seu conteúdo histórico foi desastroso.
Penso que o conteúdo histórico das ideias sempre pode ser declarado desastroso. Os democratas nos falam da democracia, mas se olhamos de perto a história das democracias, ela está cheia de desastres. Para tomar o exemplo mais elementar, se tomamos a Primeira Guerra Mundial, ela foi lançada por democratas, democratas alemães, ingleses e franceses. Foi um massacre inimaginável, o qual já se demonstrou esteve ligado a apetites financeiros nas colônias africanas, apetites que não diziam respeito aqueles que seriam massacrados mais tarde. Houve milhões de mortos e de sacrificados em condições espantosas e, aceite-se ou não, isso é parte da história das democracias. Se interrogamos o conjunto das experiências históricas veremos que todo o mundo tem sangue até as orelhas.
No que se refere à palavra “comunista” em si, da mesma maneira que ocorre com a palavra “democracia”, sempre se pode argumentar que ambas tem sangue até as orelhas. Mas, por acaso, é preciso sempre inventar outra palavra? Tomemos, por exemplo, o cristianismo. O cristianismo é São Francisco de Assis, a santidade verdadeira, o advento da ideia de uma verdadeira generosidade para com os pobres, a caridade, etc.,etc. Mas, do outro lado, também é a inquisição, o terror, a tortura e o suplício. Por acaso vamos dizer que é um crime alguém se chamar de cristão? Ninguém diz isso. Eu defendo uma espécie de absolvição dos vocábulos. Eles têm o sentido dado pela sequência histórica da qual falamos.
De fato, o comunismo conheceu duas sequências histórias. A sequência histórica do século XIX, quando a palavra foi inventada e propagada para designar uma esperança histórica humana fundamental, a esperança da igualdade, da emancipação das classes oprimidas, de uma organização social igualitária e coletiva. Depois há outra sequência muito diferente onde se experimentou o comunismo, ou seja, se construiu uma forma de poder particular que buscou coletivizar a indústria e essas coisas, mas que, no final, se tornou uma forma de Estado despótico.
Eu proponho que não se sacrifique a palavra “comunismo” por causa desta segunda sequência, mas sim que ela seja resgatada com base na primeira sequência, possibilitando assim a abertura de uma terceira sequência.
Nesta terceira sequência, a palavra “comunismo” significaria o que sempre significou: a ideia de uma organização social totalmente distinta da que conhecemos e que já sabemos que está dominada por uma oligarquia financeira e econômica absolutamente feroz e indiferente aos interesses gerais da humanidade. Eu proponho então voltar ao comunismo sob a forma da ideia comunista: a ideia comunista é a ideia da emancipação de toda a humanidade, é a ideia do internacionalismo, de uma organização econômica mobilizando diretamente os produtores e não as potências exteriores; é a ideia da igualdade entre os distintos componentes da humanidade, do fim do racismo e da segregação e também é a ideia do fim das fronteiras.
Não esqueçamos que as fronteiras são uma grande característica do mundo contemporâneo. O comunismo é tudo isso. Se alguém inventar uma palavra formidável para designar tudo isso, que não seja a palavra comunismo, eu aceito. Mas a história da política não é a história das palavras, mas sim a história dos novos significados que podem ter as palavras. Em geral se opõe a palavra “democracia” à palavra “comunismo”. Eu digo que uma palavra não é mais inocente do que a outra. Não lutemos pela inocência das palavras. Discutamos sobre o que significam e o que significa aquilo que eu digo.
Agora chegamos a Marx, ou melhor dizendo, aos dois Marx: o Marx marxista e o Marx de antes do marxismo. Qual dos dois você reivindica?
Marx e marxismo têm significados muito distintos. Marx pode significar a tentativa de uma análise científica da história humana com base nos conceitos fundamentais de classe e de luta de classe, e também a ideia de que a base das diferentes formas que a organização da humanidade adquiriu no curso da história é a organização da economia. Nesta parte da obra de Marx há coisas muito interessantes como, por exemplo, a crítica da economia política. Mas também há outro Marx que é um Marx filósofo, que vem depois de Engels e que tenta mostrar que a lei das coisas deve ser buscada nas contradições principais que podem ser percebidas dentro das coisas. É o pensamento dialético, o materialismo dialético. No concreto, há uma base material de todo pensamento e este se desenvolve através de sistemas de contradição, de negação. Este é o segundo Marx. Mas também há um terceiro Marx que é o militante político. É um Marx que, em nome da ideia comunista, indica o que fazer: é o Marx fundador da Primeira Internacional, é o Marx que escreve textos admiráveis sobre a Comuna de Paris ou sobre a luta de classes na França.
Há pelo menos três Marx e o que mais me interessa, reconhecendo o mérito imenso de todos eles, é o Marx que tenta ligar a ideia comunista em sua pureza ideológica e filosófica às circunstâncias concretas. É o Marx que se pergunta pelo caminho para organizar as pessoas politicamente na direção da ideia comunista. Há ideias fundamentais que foram experimentadas e que ainda permanecem e, em cujo centro, encontramos a convicção segundo a qual nada ocorrerá enquanto uma fração significativa dos intelectuais não aceite estar organicamente ligada às grandes massas populares. Esse ponto está totalmente ausente hoje em várias regiões do mundo. Em maio de 68 e nos anos 70, este ponto foi abandonado. Hoje pagamos o preço desse abandono que significou a vitória completa e provisória do capitalismo mais brutal.
A vida concreta de Marx e Engels consistiu em participar nas manifestações na Alemanha e em tentar criar uma Internacional. E o que era a Internacional? A aliança dos intelectuais com os operários. É sempre por aí que se começa. Eu chamo então a que comecemos de novo: por um lado com a ideia comunista e, por outro, com um processo de organização sob esta ideia que, evidentemente, levará em conta o conjunto do balanço histórico, mas que, em certo sentido, terá que começar de novo.
Caído, derrotado no abismo ou simplesmente ferido? Na sua avaliação, em que fase se encontra o capitalismo: em seu ocaso, como acreditam alguns, ou somente vivendo um recesso devido a suas enormes contradições internas?
O capitalismo é um sistema de roubo planetário exacerbado. Pode-se dizer que o capitalismo é uma ordem democrática e pacífica, mas é um regime de depredadores, é um regime de banditismo universal. E digo banditismo de maneira objetiva: chamo bandido a qualquer um que considere que a única lei de sua atividade é seu próprio proveito. Mas um sistema como este que, por um lado, tem a capacidade de se estender e, por outro, de deslocar seu centro de gravidade é um sistema que está longe de estar moribundo.
Não é o caso de acreditar que, pelo fato de estarmos em uma crise sistêmica, nos encontramos à beira do colapso do capitalismo mundializado. Acreditar nisso seria ver as coisas através da pequena janela da Europa. Creio que há dois fenômenos que estão entrelaçados. O primeiro é a derrocada da segunda etapa da experiência comunista, a falência dos Estados socialistas. Essa falência abriu uma enorme brecha para o outro termo da contradição planetária que é o capitalismo mundializado. Mas também abriu novos espaços de tensões materiais. O desenvolvimento capitalista de países do porte da China e da Índica, assim como a recapitalização da ex-União Soviética tem o mesmo papel que o colonialismo no século XIX. Abriu espaços gigantes de manobra, de clientela de novos mercados.
Estamos vivendo agora esse fenômeno: a mundialização do capitalismo que se fez potente e se multiplicou pelo enfraquecimento de seu adversário histórico do período precedente. Esse fenômeno faz com que, pela primeira vez na história da humanidade, se possa falar realmente de um mercado mundial. Esse é um primeiro fenômeno. O segundo é o deslocamento do centro de gravidade. Estou convencido de que as antigas figuras imperiais, a velha Europa, por exemplo, a qual apesar de sua arrogância tem uma quantidade considerável de crimes que ainda aguardam perdão, e os Estados Unidos, apesar do fato de ainda ocupar um lugar muito importante, são na verdade entidades capitalistas progressivamente decadentes e até um pouco crepusculares. Na Ásia, na América Latina, com a dinâmica brasileira, e inclusive em algumas regiões do Oriente Médio, vemos aparecer novas potências. O sistema da expansão capitalista chegou a uma escala mundial, mas o sistema das contradições internas do capitalismo modifica sua geopolítica. As crises sistêmicas do capitalismo – hoje estamos em uma grave crise sistêmica – não têm o mesmo impacto segundo a região. Temos assim um sistema expansivo com dificuldades internas.
Sim, e não creio que esses novos polos introduzam uma diferenciação qualitativa. É um deslocamento interno ao sistema que dá a ele margem de manobra.
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Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Entrevista extraída do site Carta Maior
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Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Entrevista extraída do site Carta Maior
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(Para re/ler entrevista completa, clique no título)
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COLUNA NO GLOBO
Dilma tomou partido
por Míriam Leitão -
14.12.2013
Quando a presidente da República participa de um evento em que se acusa a cúpula do Judiciário de manipulação, e de ter realizado um julgamento de exceção, está enfraquecendo a democracia brasileira. Foi o que a presidente Dilma fez. O que ela não disse explicitamente, o ex-presidente Lula o fez. O que ela demonstrou no 5º Congresso do PT, por ação ou omissão, é grave.
Dilma sabia o que seria a abertura do 5º Congresso do seu partido. Sabia que lá defenderiam os condenados do mensalão. Ao mesmo tempo, como chefe do Poder Executivo, ela não pode participar de um ato em que a Justiça brasileira está sob ataque. O Supremo Tribunal Federal cumpriu todo o devido processo legal. Dilma consentiu — pelo silêncio e pela presença — com as acusações ao Tribunal. Ela é militante do PT e é a candidata. A situação era delicada, mas ela só poderia participar de um evento sóbrio em que não ocorresse o que ocorreu.
O presidente Lula, como é de seu feitio, fez o que disse que não faria e acusou o julgamento de ter sido resultado da “maior campanha de difamação". Dilma pensa que se protegeu atrás de afirmações indiretas como a de que os petistas têm “couro duro" ou o partido está em “momentos difíceis". Pensava que ficara em cima do muro, mas estava tomando partido.
A chefe do executivo de um governo democrático só pode ir para uma reunião de correligionários em que o Poder Judiciário é atacado se for para defendê-lo.
MÍRIAM LEITÃO ACOVARDADA, COM MEDO MESMO, ENTREVISTA JOAQUIM BARBOSA QUE AMEAÇA BLOGUEIROS
Quando Barbosa disse que _"a Folha (Folha de São Paulo) expôs seu filho numa entrevista de emprego"_, faltou Míriam Leitão perguntar se ele não considerava impróprio seu filho trabalhar na Rede Globo, e ser contratado após o Ministro ter assistido uma partida de futebol no camarote de Luciano Huck.
Quando Barbosa falou em _"falta de honestidade em pessoas com responsabilidade de vir a público e dizer que as coisas não estão funcionando"_ faltou perguntar quem são essas pessoas.
Quando Barbosa afirmou na entrevista que _"houve uma brutal violação da minha privacidade" _ ao se referir a compra de um imóvel "modesto" nos Estados Unidos, ficamos esperando Míriam perguntar o que o Ministro tem a dizer não sobre o valor do imóvel e nem sobre a procedência lícita do dinheiro com que fez a compra, mas sim sobre o fato da transação ter sido realizada por U$ 10 Dólares, sobre ele ter criado uma empresa especificamente para isso, e aparecer como presidente da empresa o que não é permitido a um Membro do Judiciário.
(Para ler postagem completa, clique no título)
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Bomba! Sonegação da Globo já está na Polícia Federal!
Barbosa, quer Genoíno passando Natal na Papuda
Leia a carta da filha de Genoíno, publicada há pouco no blog do Nassif:
Mesmo após parecer da PGR, Barbosa quer Genoíno na cadeia no Natal
seg, 16/12/2013 – 17:04
De Miruna Genoino
“Não, meu pai não tem ainda os 90 dias de domiciliar e parece que o STF não quer de forma alguma entender que ele não tem condições físicas de estar na cadeia. Tenho que começar minha semana sabendo que o JB pediu um parecer (outro parecer, pelo amor de Deus), para o juiz de execução de Brasília e de São Paulo perguntando se eles têm condições de receber meu pai nos presídios destes locais. Alguém por favor pode pedir, rezar, pensar, desejar, que nossa tortura tenha fim? Alguém pode me explicar por que tenho de passar por esse sofrimento? Por que não posso planejar o natal com minha família? Por quê? Por quê? É muita falta de humanidade, o ministério público já pediu que meu pai seja colocado em prisão domiciliar, mas não se conformam e precisam pedir aos juízes que digam se ele não pode mesmo ir para a prisão… Vc acha que eles vão dizer o quê? Todos só o que querem é prender meu pai atrás das grades, mas que todos lembrem que terão de responder POR SUA VIDA!!!!!!!!” (Miruna Genoino)
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Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons
Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA
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