O
Cavalheiro da Ordem Primeira dos Tucaninos de Belzebu visita Garanhão
Fernando Soares Campos
Meia-noite tenebrosa, Garanhão dormia o sono dos injustiçados,
daqueles a quem ainda não fizeram justiça, pois, quando deveria estar
repousando numa cela de um presídio de segurança máxima, estava ali naquele
confortável aposento do seu luxuoso apartamento em Higienópolis, região dos
jardins paulistanos. Se o ambiente não fosse hermeticamente isolado por
proteção acústica, todo o bairro ouviria seu ronco gutural.
Súbito, uma voz cavernosa ecoou na penumbra do quarto:
― Acooorda, seu mandrião de uma figa!
Mas o demente dormente não deu sinais de despertar, e o roncar
agravou-se em sobrecarregado tom.
O medonho vozeirão repetiu o chamamento:
― Acooorda, infeliz das costas ocas!
Dessa vez, ao sinistro chamado seguiram-se assustadoras
gargalhadas e babélicos xingamentos de espectros obsedantes, a cambada
diabólica liderada pelo exu-caveira Serjão Mottasserra, membro-fundador e
cavalheiro da Ordem Primeira dos Tucaninos de Belzebu.
Debalde, Garanhão permanecia mergulhado em profundo pesadelo.
Alguns mofentos passaram a incomodá-lo com arranhões e beliscões, enquanto
outros esticavam seus braços e pernas.
Agora ele parecia ter despertado, olhos arregalados e boca
escancarada, porém permanecia em estado letárgico. Assistia a tudo horrorizado,
mas não conseguia se mexer.
Serjão Mottasserra aproximou seu rosto do dele e baforou gases
enxofrentos. A golfada calorenta despertou Garanhão, que, brusco, ergueu-se e
berrou:
― Nãããooo! ― imediatamente os mofentos subalternos o
imobilizaram, e ele desandou em desconexa gritaria: ― O que vocês querem?! Não
chegou a minha hora! Eu ainda tenho prazo! Vocês são obrigados a cumprir todas
as cláusulas do pacto! Estou fazendo a minha parte!
― Contenha-se, amaldiçoado! ― gritou Serjão ― Eu não vim lhe
buscar, quero apenas que preste contas sobre as imbecilidades que vem
cometendo.
― Imbe... ci... lidades?! Eu?! Do que você está falando?!
― Soltem esse energúmeno.
Os curimbabas das trevas afrouxaram os golpes. Garanhão
escorregou recuando até recostar-se na cabeceira da cama, trêmulo, balbuciante:
― Ener... gúmeno?! Não estou... entendendo você, Serjão! Quando
era... vivente, insigne membro da minha equipe... (pigarro) ministerial,
articulador e... gerente dos planos de... (tosse) desestatização de empresas...
é... é... deficitárias, não economizava elogios à minha consagrada... (pigarro)
reputação como... um dos mais eminentes intelectuais deste... (tosse) país!
Detentor de honoríficos títulos concedidos pelas mais conceituadas... (pigarro)
universidades do planeta!
O exu-caveira chefe olhou detidamente para Garanhão, deu-lhe as
costas e, desengonçado, caminhou lentamente até se posicionar diante de um
grande espelho ricamente emoldurado. Num impulso quase involuntário, fez gesto
de arrumar os cabelos com a palma da mão. Deteve-se.
― Maldição! Sempre esqueço que minha imagem já não se reflete em
superfícies espelhadas! ― voltando-se para Garanhão, perguntou: ― Como está a
minha aparência?
― Como sempre, Serjão! Como sempre! Vistoso, corado, forte,
elegante...
― Pode parar, seu destrambelhado! Não adianta bajular, quero
mesmo é saber por que você aprontou mais uma bestialidade sem me consultar.
― Serjão, você está me ofendendo gratuitamente, estimado
parceiro... Você agora está desconfiando de mim?!
― Não, não estou desconfiando de você agora...
― Eu sabia, companheiro! Eu sabia! Eu também sempre confiei em
você, eu...
― Fecha essa matraca, seu inconsequente! Eu não estou
desconfiando de você agora... Eu nunca confiei em você! Por isso não me
surpreendi quando soube dessa última asnice que você andou aprontando.
― Asnice?! Asnice?! O que você está chamando de asnice?!
O maligno tucanino-chefe bufou e rosnou.
― Quem lhe autorizou a engendrar e disseminar esse factoide
disparatado contra o governo, visando investigações sobre a compra da refinaria
americana pela Petrobras no ano de dois mil e seis da era do
impronunciável?
― Factoide disparatado?! Ora, meu amigo de fé, meu irmão Serjão!
Esse já pode ser considerado um dos planos mais bem arquitetados, coisa do tipo
nunca antes na história deste país!
― O que você está pretendendo com isso?
― Sei que você é um homem... quer dizer, uma entidade poderosa,
certo?
― E daí?
― Frequenta ambientes em que energias deletérias possam
atraí-lo...
― Isso aí até crianças do catecismo sabem. Mas... onde você quer
chegar?
― Certamente você acompanhou os trabalhos da Operação Lava Jato,
da Polícia Federal.
― Sim, claro, nossos parceiros invocaram nossas influências, no
sentido de atrapalhar as investigações, estamos fazendo o possível. Mas a
presidenta é carola, religiosa do tipo que anda com santinhos, escapulário,
patuá e rosário na bolsa. E toda noite reza pedindo a proteção do
impronunciável.
― Assim não pode! Assim não dá! Ela está burlando a lei! Este é
um país laico! Isso caracteriza crime passível de impeachment!
― Sim, mas, quanto ao factoide, onde você quer chegar com essa
história de bilionário prejuízo dos cofres públicos com compra da refinaria?
Garanhão começou a se sentir mais à vontade, até esboçou um
sorriso dissimulador.
― Se você está acompanhando a Operação Lava jato, sabe que
pegaram o Alberto Youssef e o Paulo Roberto Costa.
― Então, isso aí é motivo suficiente pra você e o seu mafioso
clã encolherem, botarem as barbas de molho. Não vê que o Youssef é peça chave
para reavivar o caso das privatizações, o que hoje toda a população conhece
como privataria dos teus tempos?
― Serjão, você me conhece, sabe que não dou murro em ponta de
faca.
― Não? Não mesmo? E o golpe da barriga que você tomou da sonsa
platinada, hein?
― Isso é outro departamento, armadilhas do tesão.
― Então me explique por que vocês estão estimulando uma CPI para
apurar o caso da compra da refinaria de Pasadena, no Texas.
Garanhão começou a se sentir tão à vontade que se levantou da
cama, foi até uma estante, pegou um frasco de barbitúricos, despejou uma porção
na mão, arremessou-a na bocarra e engoliu tudo.
Continuou:
― A verdade é que Youssef é apenas uma mão suja na lavagem do
dinheiro que conseguimos com a venda das estatais. Ele não tem informações
concretas sobre como adquiríamos a grana. É réu confesso da CPI do Banestado, o
que nunca nos incomodou, pois aquela comissão não se interessou em apurar a
verdadeira origem de toda a dinheirama que ainda hoje descansa em paz nos
paraísos fiscais.
― Se é assim, imagine se essa Operação Lava Jato não foi
deflagrada exatamente para que os petistas tivessem material suficiente para
reeditar a CPI do Banestado, agora com o nome de CPI da Privataria! Você sabe
que Alberto Youssef não é dos maiores empresários de lavagem de dinheiro, mas
tem lá sua cota de alguns bilhões de reais em nosso benefício. Ele e muitos
outros varejistas do ramo foram presos, e através deles se pode chegar a muita
conclusão, pode-se desvendar mistérios nunca antes esclarecidos. E o Paulo
Roberto Costa?! Me lembro desse sujeito. Era um funcionariozinho de carreira,
nada comparável a um Shigeaki Ueki, mas pode ser investigado e chegarem às suas
colaborações com os nossos esquemas nos áureos tempos... Hum! Falam até que
Youssef lhe deu uma Land Rover de presente... Hum! Quando foi feito esse mimo?
Garanhão quase explode em escandalosa gargalhada, mas se conteve
e apenas sorriu à Muttley, o cão de Dick Vigarista.
― Isso não importa, meu caro Serjão das Trevas Brilhantes! O que
conta agora é a suposta influência dele na compra da refinaria americana dos
belgas.
― Mas o Paulo Roberto Costa e o Nestor Cerveró, da Diretoria
Financeira da BR Distribuidora, sempre nos serviram, trabalharam pra nós
durante seus dois mandatos. Acompanharam o sucateamento da Petrobras,
assistiram a desastrosos vazamentos de óleo e ao espetacular afundamento da
P-36. Você acha que uma CPI da Petrobras, hoje, ficaria só nesse caso da
refinaria de Pasadena?
― Claro que não!
― O que fazer, então? Vocês estão pressionando os peemedebistas
a criar comissão de inquérito para apurar o caso. Não estão vendo que isso pode
vir a ser um tiro no pé? Pior: na cabeça! Verdadeiro suicídio!
― Tudo cascata, meu caro espectro protetor! Você sabe muito bem
que Cerveró e Paulo Costa são pupilos dos peemedebistas, não sabe?
― Sim, todo mundo sabe disso...
― O que você chama de todo mundo? Todo mundo, vírgula! O povão,
daqui em diante, vai saber que eles são os mais importantes homens de confiança
dos petistas e do governo. Não importa se foram os peemedebistas ou malufistas
que colocaram eles nos cargos em nome da coalizão governamental, ou da
governabilidade.
― Tá bem, até aí morreu Neves. Mas... e se criarem a tal CPI?
― CPI?! Que CPI?! Você ainda não atinou a razão de toda essa
barulheira?!
― Hum!
― Não vai ter CPI coisa alguma. Assim não pode! Assim não dá!
Basta essa delegaçãozinha de parlamentares que vai aos Estados Unidos
investigar... (risos) a falha no contrato de compra e venda da refinaria. Isso
rende matéria pra campanha eleitoral. Talvez a gente consiga virar o jogo e
eleger nosso candidato!
― Hum! Duvido muito...
― Tá bem, tá bem! Também duvido. Mas a nova onda vai nos injetar
bastante ânimo! Mais do que o escândalo do mensalão!
― Ânimo? Ora, ânimo pra quê, se não vai servir para a retomada
do poder?
― Pode não ajudar a nossa volta pelas urnas, mas acirra a nossa
militância!
Serjão não se segurou, deixou explodir estrondosa gargalhada.
― Militância?! Onde está a nossa militância?!
Garanhão, por um instante, encarou Serjão das Trevas Brilhantes
e falou:
― Nas ruas, ora! Nas ruas! Hoje mesmo estarão realizando a
Marcha da Família com o pai do impronunciável. Isso é meio caminho andado para
uma intervenção à força, contra esse governo corrupto!
Serjão levantou o braço e bufou. Ao sinal, os mofentos
subalternos apressaram-se em se posicionar ao seu lado. Ele correu a vista pelo
ambiente até fixar-se em Garanhão e falou:
― Está bem, vou lhe dar um voto de confiança. Mas, se nada disso
der certo, você não passa deste ano de dois mil e quatorze da era do
impronunciável. Vai ter que nos entregar a alma, conforme o pacto.
O Cavalheiro da Ordem Primeira dos Tucaninos de Balzebu e seus
mofentos subalternos sumiram, deixando Garanhão em meio à fumaceira enxofrenta
que ocupava todos os espaços dos seus aposentos. Ele nem se incomodou com a
atmosfera fétida. Está acostumado... Deitou-se e retomou seu pesadelo
reparador...
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FHC é contra abertura de CPI da Petrobrás
Enquanto lideranças do PSDB no Congresso já se articulam para instalar comissão, ex-presidente argumenta que momento eleitoral pode 'partidarizar' investigação sobre estatal
20 de março de 2014
Luciana Nunes Leal
Rio - O ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso disse nesta quinta-feira, 20, não ser favorável à abertura da CPI da Petrobrás agora, mas avalia que o desdobramento do caso depende do empenho do governo em investigar as denúncias de irregularidades na estatal. Para FHC, a proximidade das eleições presidenciais pode 'partidarizar' a apuração.
No Congresso, entretanto, a liderança do PSDB já participa da articulação que cobra abertura de comissão. "Acho que o momento eleitoral não é o mais propício. Não sou favorável a partidarizar. Mas se o governo não apurar direitinho, abre espaço [para CPI]", declarou o ex-presidente, após ministrar palestra para novos alunos da universidade Estácio.
Durante o evento, o ex-presidente disse que a Petrobrás "deu marcha à ré" durante o governo de seu sucessor, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, quando, segundo ele, houve uma retomada da influência dos partidos na empresa. "Nós transformamos a Petrobrás em uma corporation, uma empresa, não uma repartição pública. Para isso, tem que tirar a influência dos partidos. No governo anterior ao atual, deu marcha à ré e o resultado está aí, com escândalo nos jornais", afirmou ao responder à pergunta de um estudante.
Em entrevista ao Estado após a palestra, Fernando Henrique cobrou do governo investigação sobre a compra da refinaria em Pasadena. "Já se sabia do caso, a novidade é que a própria presidente reconheceu que está errado. Então ela tem que agir em consequência. É estranho (a aprovação pelo Conselho com base em um relatório). Pelo que vi, o valor (atual da refinaria) é muito aquém do que foi pago, é muito escandaloso. Não quero culpar ninguém, não é só ela (Dilma), o conselho é formado por muita gente, gente de peso. Mas quando se erra se paga a consequência", afirmou.
Fernando Henrique fez questão de lembrar que a compra da refinaria aconteceu na gestão anterior à da presidente atual da Petrobrás, Graça Foster. "Com essa presidência a Petrobrás voltou um pouco ao que é necessário, a ter uma visão mais profissional", disse.
O negócio de Pasadena, formalizado em 2006, é investigado pela Polícia Federal, Ministério Público e Tribunal de Contas da União (TCU). Ambos suspeitam que tenha havido superfaturamento e evasão de divisas. A compra custou R$ 1,18 bilhão à estatal e, anos antes, foi adquirida por uma empresa belga por US$ 42,5 milhões.
Conforme revelou o Estado, a presidente Dilma Rousseff justificou em nota oficial que "documentos falhos" a induziram ao erro ao dar aval à aquisição da unidade. Na época, Dilma presidia o Conselho de Administração da Petrobrás. Dirigentes da Petrobrás rebateram a afirmação e sustentam que Dilma tinha acesso a todos os documentos produzidos sobre a compra.
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Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons
Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA
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