sexta-feira, 22 de junho de 2007

Sioux, tupiniquins e caetés

Bicho-papão, mateus de reisado e meganha eram os mais alucinantes personagens de minha infância. Essas medonhas figuras, folclóricas ou reais, me provocaram delirantes pesadelos. Mas, na pré-adolescência, final dos anos 1950, outros seres abomináveis passaram a ocupar meu terrificante imaginário. Foi quando assisti aos primeiros faroestes cujos enredos enfocavam a campanha do lendário General Custer contra os índios sioux. A partir de então, Cavalo Louco, o chefe sioux, e seus pavorosos selvagens invadiram minhas oníricas aventuras, ameaçando rasgar meu peito e rachar meu crânio com suas apavorantes machadinhas. Felizmente, na hora agá, sempre aparecia a Sétima Cavalaria, tendo à frente um bravo corneteiro executando o toque de avançar, e a tropa me salvava daquelas desalmadas criaturas.

Além dos sioux, também os navajos, comanches e apaches rastejaram pelo quintal de minha casa em madrugadas de lua cheia. Naquelas horas, os regougos de gatos e gatas no cio me provocavam incontroláveis tremores; pois, nos meus devaneios, eu acreditava que fossem os sinais para o ataque. Nem os alemães, japoneses e árabes juntos em uma só produção hollywoodiana dos anos 50 me apavoravam mais que índio norte-americano.

Estranhamente a minha fobia de peles-vermelhas não foi transformada em pavor aos índios brasileiros. Acredito que isso se deve ao fato de que, na minha época de estudante, os livros de História tratavam do descobrimento do Brasil usando como principal ilustração o quadro A Primeira Missa no Brasil (acho que ainda usam muito essa pintura), celebrada pelo Frei Henrique Soares de Coimbra, com o auxílio de tantos outros frades e assistida pelos nobres navegantes.

Os nativos tupiniquins figuram na tela como seres enfeitiçados, dominados pela visão da imensa cruz no altar improvisado para a realização do ofício religioso, portanto eu acreditava que os colonizadores do Velho Oeste americano gastaram bala à toa; pois, a meu ver, com a cruz à frente, não haveria demônio que resistisse.

No caso brasileiro, ninguém poderia temer tão dóceis criaturas como aqueles índios deslumbrados.

Apreciando a reprodução do quadro, eu estava convicto de que, naquele mesmo dia da primeira celebração da santa missa em Terra Brasilis, os autóctones destas bandas já teriam até respondido ao santo sacramento em latim, portanto imaginava que, a cada "Dominus vobiscum" de Dom Henrique Soares de Coimbra, os índios brasileiros já teriam respondido: "Et cum spiritu tuo", e entoando cantos de louvor.

Nas séries escolares mais avançadas, eu soube que, nos tempos das grandes navegações, ali bem pertinho de minha casa, em Alagoas, habitavam outros silvícolas nem tão afáveis quanto os tupiniquins. Eram os caetés, cujos remanescentes mestiçados ainda hoje resistem ao massacre.

Contam que, nos primórdios da colonização brasileira, um navio português naufragou próximo à foz do Rio São Francisco, na costa alagoana, e os sobreviventes foram resgatados pelos índios caetés. Entre os náufragos resgatados estava Dom Pero Fernandes Sardinha, bispo de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, que, ao chegar à praia, abençoou os seus salvadores e agradeceu aos céus por terem enviados aqueles anjos da guarda.

Porém, enquanto Dom Pero Sardinha rendia graças a todos os santos por ter milagrosamente sobrevivido ao sinistro afundamento, os índios cantavam e dançavam dando glórias a Tupã pela farta pesca do dia.

Imagine o bispo chegando à aldeia e se apresentando ao cacique caeté:

— Prazer, Sardinha, Pero Fernandes Sardinha...

Ao que o chefe indígena deve ter respondido:

— Sardinha-guaçu. Jakaru nde!

Dom Pero Fernandes deve ter sacado seu pequeno dicionário português-tupi-guarani e traduzido: "Sardinha grande. Vamos comer você".

Assustado, o eminente religioso certamente saltou de banda. Mas logo se recompôs. Segurou o rosário, apertou-o e balbuciou uma poderosa jaculatória, controlando o pânico.

Deve ter tentado explicar ao grande chefe:

— Mim... — batendo no peito — Mim... entende?! Mim fez votos de castidade. Mim não poder ter relações sexuais.

Ao que o cacique teria respondido:

— Che jejuká nde!

Dessa vez, se Dom Fernandes Sardinha tivesse tido tempo de consultar o dicionário de bolso, teria entendido que o chefe dos caetés lhe disse: "Vou matar você". E foi o que dizem que ele fez, rachando a cabeça do sacerdote com uma violenta bordunada.

Naquela noite os caetés se regalaram com um autêntico banquete sagrado.

Nos dias seguintes, quando os outros náufragos ouviam o cacique dizer "Jakaru nde!", arriavam as calças e se viravam de costas para o manda-chuva da tribo. Mas os guerreiros caetés gostavam mesmo era de filé de nádegas. E tome bordunadas.

Baseado nesses fatos, desconfio que, antes da esquadra cabralina aportar em terras brasileiras, uma expedição portuguesa teria explorado nosso litoral e indicado o local ideal para o evento do descobrimento, pois a nação tupiniquim era realmente a mais pacífica de toda Terra de Santa Cruz e alimentava-se basicamente de mandioca, coco e pescado (sardinha-mirim, de verdade). Enquanto as demais tribos brasileiras apreciavam um genuíno prato português.

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3 comentários:

Anônimo disse...

Amanajé ré! Ainda assim peço que enterrem meu coração na beira do caminho!

Miguel do Rosário disse...

grande fernando, que conto delicioso! sabe, ler literatura na internet é um pouco mais dificil, a gente sempre fica muito seletivo e da uma certa preguiça antes de começar. Mas o seu conto realmente me cativou. grande abraço, miguel

Anônimo disse...

Como alguém está sempre comendo alguém, que fossem os portugueses o prato do dia, não? rsrsrs
Mas você tem razão. Na maioria das vezes, a cruz sempre foi mais forte que as armas.




bjs!