terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Solidão atarefada e autoconhecimento, eis um caminho para a redenção

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Solidão atarefada e autoconhecimento, eis um caminho para a redenção 

Fernando Soares Campos

Muitos são os conceitos sugeridos para designar o sentimento de solidão, entre os quais podemos observar opiniões antagônicas ou simplesmente díspares, porém complementares entre si. Isso acontece entre os que exaltam os momentos de solitude, eventualmente necessários a qualquer ser humano, ou mesmo entre aqueles que os abominam, temem e se esforçam para evitá-los.

Existem os que acreditam que a solidão seja a condição mais autêntica, digna e aprazível de se viver.

Vejamos alguns exemplos:

“Jamais encontrei companheiro que me fosse mais companheiro que a solidão” (Henry Thoreau).
“A solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais” (Arthur Schopenhauer).
“A mais feliz das vidas é uma solidão atarefada” (Voltaire).

Em Thoreau podemos até identificar a fonte de inspiração de Nelson Rodrigues ao dizer que “a pior forma de solidão é a companhia de um paulista”. Do que certamente Vinicius de Morais discordou quando disse que “mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão”. E Erasmo Carlos corrobora tal afirmação com o dito de sua avó: “Antes mal acompanhado do que só”.

Schopenhauer, com essa frase aí, apenas confirma a impressão que muitos dos seus ditos me causaram: tornou-se um velho ranzinza; gênio, sim, mas ranheta. Muita gente acredita que a intolerância é uma característica própria dos gênios, mas creio que, apesar de alguns deles revelarem tal comportamento, isso, pelo contrário, turva a genialidade, impede o gênio de manifestar suas ideias com clareza. Se a intolerância fosse atributo da genialidade, a afabilidade seria a qualidade precípua da idiotia (idiota não é afável, é subserviente). Evidente que ser tolerante não significa anuir a injustiças ou comungar com todos os credos ideológicos. Ser tolerante é suportar as adversidades sem assentir naquilo que se pode considerar injusto, é saber identificar o que é relevante e reconhecer o momento oportuno da ação.

Voltaire me parece mais próximo da razão, pois procurou dar sentido à solidão a que qualquer um de nós pode ser submetido, voluntaria ou involuntariamente. Creio que, se conseguirmos preencher os momentos de solidão com afazeres úteis, nem mesmo poderemos dizer que isso se caracteriza como momentos de solidão. A verdadeira solidão só ocorre quando sentimos que nós mesmos somos nossa pior companhia, angustiados pela falta de resposta aos nossos questionamentos existenciais. Solidão pode ser a falta de companhia, porém, mais que isso, é o vazio de ideias e a inação.

A frase de Voltaire pode ser considerada como prescrição para o combate a um dos males que hoje assola a humanidade: a depressão.

Solidão rima com meditação

Aproveitemos os momentos de isolamento ou simples distanciamento do convívio social para nos concentrar sobre a análise dos nossos próprios sentimentos, ideias e comportamentos. Tentemos conhecer um pouco mais de nós mesmos.

A sentença “conhece-te a ti mesmo” é invariavelmente reconhecida como uma máxima socrática, relativa à filosofia de Sócrates, visto que ele a adotou como norteadora de seu comportamento, mas não podemos atribuir a Sócrates a formulação do conceito veiculado por essa expressão. Até mesmo a íntegra da sua construção gramatical (com os termos em nosso idioma) está conforme o translado de inscrições registradas em períodos anteriores à existência do consagrado filósofo grego. Portanto, não se trata nem mesmo de paráfrase de Sócrates, menos ainda de sua própria conclusão por raciocínio e autorrevelação (insight) nem por revelação mística. Nesse caso específico, o mérito do pensador fica por conta de sua capacidade para reconhecer a legitimidade do enunciado, que prescreve uma condição imprescindível a que possamos identificar no nosso próprio comportamento atitudes moralmente virtuosas ou degenerativas. Só assim podemos corrigir nossa trajetória evolutiva, melhorar nossos relacionamentos interpessoais e nos aproximarmos cada vez mais das verdades que possam nos esclarecer sobre a realidade e propósitos de nossas existências.

Creio que não gostamos de meditar sobre nós mesmos porque tememos descobrir que permanecemos estacionados sobre escombros de desejos, sentimentos e conceitos arcaicos, tudo recauchutado, com cara de novo, mas tão velho quanto os primórdios da chamada civilização. Vivemos de aparências, compramos e vendemos aparências.

Harmonia das funções mentais

Para compreender e aceitar as prescrições de um “conceito”, seja “moral” ou “científico”, utilizamos toda a complexidade das nossas funções mentais, em que se envolvam o processo cognitivo, a volição e a afetividade.

Entretanto, para admitir a idealização de uma mensagem “moralizante”, precisamos raciocinar empreendendo esforço necessário à harmonização dos distintos elementos da nossa estrutura mental:

a)     Cognição, procedendo ao encadeamento lógico de nossos conhecimentos e experiências e explorando ao máximo um conjunto de faculdades subsidiárias (atenção, percepção, memória e imaginação);
b)    Volição estimulada por desejo autêntico e específico propósito; e
c)     Afetividade sob controle, tentando harmonizar a relação entre os sentimentos e emoções e, na medida do possível, reduzir suas intensidades e durações, minimizando, assim, suas influências sobre o desejo ― impulso psíquico determinante da atividade volitiva.

Creio, porém, que, nos processos de compreensão e consequente aceitação de um “conceito científico” das chamadas ciências exatas, o “controle da afetividade” não precisa ser exercido com o mesmo rigor aplicado quando da interpretação de um “conceito moral”, visto que, no caso científico, tendemos a mobilizar os sentimentos pelas suas faces positivas (otimistas). Por exemplo: a coragem sobrepondo-se ao medo, podendo assumir características de arrojo; a alegria afastando elementos geradores de tristeza e desânimo, podendo atingir grau de euforia.

Na busca pelo aperfeiçoamento moral, nem sempre podemos imprimir no desejo sentimentos com a mesma intensidade a que estamos habituados (ou viciados) a manifestá-los, pois isso pode se constituir em verdadeiras armadilhas mentais. E é por isso que, ao tentar nos conhecer a nós mesmos, podemos fracassar sem perceber os subterfúgios em que nos enredamos, em função da intervenção de elementos subconscientes.

“Depois de ter dado abrigo ao Mal, ele não mais pedirá que você acredite nele” (Franz Kafka).

A luta para domar o Mal dentro de nós mesmos é, provavelmente, a mais importante virtude humana. Domar já seria um grande feito; extirpar é tarefa mais árdua, além de perigosa, pois aquele que entre nós for identificado como um autêntico purificado será consagrado líder dos demônios.

O esforço para praticar virtudes deve ser precedido pela luta contra possíveis deformações que possam ter-se incorporado aos nossos comportamentos. Se assim não procedermos, estaremos na condição de quem quer ter saúde sem combater uma grave enfermidade que já ameaça a sua vida.

Se algum de nós já não sente qualquer impulso para a prática do Mal, conforme os conceitos ditados pela nossa consciência, contrapondo-o ao que possa vir a ser o Bem, então esse alguém já não pertence à categoria humana, sublimou-se, já alcançou esferas muito mais elevadas, extrapolou a perfeição moral relativa à vida na Terra. Se estiver aqui entre nós, encontra-se na condição de missionário divino (Sócrates dizia, com todas as letras, que era um enviado de Deus, mas não se sentia um anjo purificado).

Como um missionário divino, santificado, poderia viver entre nós, almas potencialmente corruptas? Seria agindo como um ser ainda em conflito com a formação do seu caráter, como nos encontramos aqui na Terra? Não. Ele seria compreensivo, entenderia a fraqueza humana e, por isso, toleraria o convívio com o criminoso, mas sem justificar o crime cometido.

Desconfie das virtudes

Certa ocasião, eu ainda era muito jovem, meu analista me perguntou: “O ser humano ri porque se sente feliz, ou se sente feliz porque ri? Choramos porque ficamos tristes, ou ficamos tristes porque choramos?”

Naquele momento tive o impulso de dizer que rimos porque nos sentimos felizes e choramos porque ficamos tristes, mas me contive, pois outras indagações assomaram à minha alma semipensante: “O homem fica feliz por suas vitórias no campo de batalha, ou pela derrota do seu adversário? Ficamos tristes porque perdemos a batalha, ou porque o adversário venceu?”

Aparentemente, tudo isso aí tem o mesmo sentido. Mas as aparências enganam.

Aquele que se autoproclama honesto até no controle de suas mais irreprimíveis emoções diria que sua felicidade se concentra totalmente em suas próprias vitórias, conquistas, feitos, méritos e supostas virtudes pessoais. Jamais admitiria que um prazer mórbido insiste em comemorar o fracasso alheio; ou que, no recesso de sua consciência, lamenta o triunfo de um daqueles a quem ele chama de “amigo”.

Ao nos voltarmos para dentro de nós mesmos, busquemos, de imediato, entender que só evoluímos quando identificamos nossos próprios pecados; não, o dos outros. Se encontrar alguma virtude, desconfie, pois estamos vivendo a Era da Regra Três, em que menos vale mais, o avesso do avesso das inversões de valores: quanto mais idiota mais aclamado.


Às vezes algumas pessoas sentem-se tão incomodadas aqui nesta nave que erguem os olhos, estendem os braços para o céu e suplicam ao Piloto: “Pare o mundo, que eu quero descer!”. Prenhes de razão, pois há momentos em que tudo parece perdido. Mas eu tenho feito exatamente o contrário: peço a Ele que me dê mais um tempinho, me conceda só mais um átimo da eternidade. Preciso entender por que e para que estamos aqui. Por que quero saber?! Bom... é... para poder... é... quer dizer... Ah! Sei lá!

Fernando Soares Campos

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Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons

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PressAA



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